O art. 217 da CF, que operou a inédita constitucionalização do desporto no Brasil, prevê, dentre suas disposições, a autonomia das entidades desportivas. Este é o tema da coluna desta semana, que além de buscar desbravar o significado de tal previsão, envidará inseri-la em seu devido contexto histórico.
Em verdade, o modelo idealizado pelo Constituinte em 1987 representou uma necessária ruptura com o aquele inaugurado pelo Decreto-Lei n. 3199/1941, editado durante o Estado Novo e mantido, em linhas gerais, nos governos autoritários posteriores. A partir do referido diploma, ficou como nítido como, historicamente no Brasil, sempre houve uma relação diretamente proporcional entre governos antidemocráticos e uma maior intervenção estatal no esporte.
O DL 3199/1941 representou a primeira sistematização legal do desporto no Brasil, instituindo suas bases organizacionais iniciais e refletindo de modo claro os valores do nacionalismo e a tendência de centralização do poder. Qualquer vestígio de liberalismo no esporte foi suprimido. A intervenção do Estado no domínio esportivo foi a fórmula utilizada para concretizar o ideário de que o progresso viria por meio da “mão forte” do Estado forte (ditatorial), fazendo com que o esporte ficasse sujeito aos ditames políticos da época. O esporte, especialmente o futebol, seria apropriado como instrumento de promoção da “brasilidade” e do sentimento de patriotismo.
Foi instituído o Conselho Nacional dos Desportos (CND), sob o controle direto da Presidência da República, responsável por promover, fiscalizar e incentivar o esporte no Brasil. Dentre suas principais atribuições, estavam chancelar os estatutos de clubes e federações, autorizar a participação das agremiações em competições internacionais e até fiscalizar e cancelar jogos femininos, posto que o Decreto, surrealmente, não permitia às mulheres a prática de modalidades esportivas “incompatíveis com a sua natureza” (art. 54). No mais, os clubes exerceriam função patriótica (art. 48), com vedação do lucro e a necessidade de utilização de recursos públicos para efeito de fomento. Estavam lançadas as bases para a organização amadorística do futebol nacional via estatização altamente atuante, que mal se esforçava para ao, menos, ser dissimulada, solapando a autonomia das entidades desportivas.
A referida sistemática só começa a mudar efetivamente a partir da década de 80, quando se ensaiou a abertura “lenta, gradual e segura” que começou a pavimentar o caminho para a abertura democrática e culminou na promulgação da Constituição Cidadã de 1988. Nos ensinamentos de Álvaro Melo Filho, a maior motivação do constituinte para elevar o desporto ao patamar constitucional foi a exatamente a autonomia desportiva, tudo no sentido de propiciar às entidades uma organização mais plástica e um flexível mecanismo de funcionamento que permitisse o eficiente alcance de seus objetivos institucionais. A partir de então, gozando de patamar hierárquico superior, a previsão da autonomia desportiva não pode ser suprimida por atuação do legislador ordinário, sob de pena de eventual regulação ser retirada do sistema por conta dos mecanismos de controle de constitucionalidade. Caso o legislador tenha por escopo, por exemplo, que os clubes passem a se organizar como empresas, não pode obrigá-los a tal como ocorrido na redação original da Lei Pelé, mas apenas criar incentivos para tal transformação, como foi feito na atual Lei das SAF´s.
O atual modelo liberal de regramento do esporte garante uma esfera natural de autodeterminação das entidades, preservando-se a pureza dos preceitos puramente desportivos. A própria estrutura piramidal governada pela FIFA (no caso do futebol), que se caracteriza como um sistema associativo voluntário, privado, desterritorializado, autorregulado, que executa suas próprias normas (self-executing) e que resolve os conflitos desportivos por meio de seus próprios tribunais, preserva ao máximo o valor da autonomia das entidades associadas. Trata-se de sistema que busca operar sem ou com mínima intervenção estatal, exatamente para evitar que a cadeia esportiva seja contaminada com valores políticos ou de outra natureza estranhos ao esporte. Entretanto, ficam preservadas as clássicas áreas de responsabilidade estatal, como ordem e segurança pública e aspectos trabalhistas. Isto quer dizer que as entidades desportivas não podem lançar mão da sua autonomia como um pretexto ou carta branca como cometer ilegalidades, visto que tal preceito não conta com o mesmo alcance das noções de soberania e independência, que normalmente são aplicáveis às Nações e aos poderes do Estado.
A autonomia significa, então, que às entidades desportivas restam assegurados três aspectos fundamentais : a) autogoverno, que é a prorrogativa de escolha dos próprios dirigentes e de regular normas internas de conduta; b) auto-organização, que se refere ao poder de editar seus próprios atos constitutivos e de instituir seus órgãos diretivos internos; c) autorregulação, no sentido de editar suas próprias normas de funcionamento e executá-las. A previsão do art. 217 da CF, vale frisar, é de aplicabilidade imediata, embora admita regulamentação instrumental.
A boa notícia é que a autonomia desportiva, aos poucos, vai ganhando ainda maior espaço de desenvolvimento e aplicação. A Lei Geral do Esporte (Lei 14.597/2023) é claramente uma legislação de caráter liberal e conta com várias previsões no sentido da preservação da esfera de autodeterminação das entidades desportivas, o que possibilitou aprofundar, ainda mais, a noção de autonomia. No mesmo sentido caminhou a Lei 15.041/2024, que garantiu maior autonomia às entidades desportivas ao incluir o Comitê Olímpico do Brasil (COB), o Comitê Brasileiro de Clubes (CBC) e o Comitê Paralímpico Brasileiro (CPB) como subsistemas do Sistema Nacional do Esporte (SINESP), que lhes garantirá maior liberdade para planejar e executar suas atividades, desde que incluam em suas práticas critérios de gestão eficiente, transparência, participação e controle social, conforme previsto na LGE. O Supremo Tribunal Federal, por sua vez, também vem indicando uma possível ressignificação e intensificação da autonomia desportiva em julgados recentes. O tema é palpitante e merece acompanhamento.
Crédito imagem: Pali Rao/IStock/Getty Images
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