A estratégia do Flamengo para reduzir tributação nos EUA: uma análise à luz do direito tributário internacional

Por Leonardo Roesler

A proposta apresentada pelo Clube de Regatas do Flamengo para constituir uma empresa temporária nos Estados Unidos, com o objetivo de mitigar a carga tributária incidente sobre os valores recebidos da FIFA durante a Copa do Mundo de Clubes, suscita relevantes questões jurídicas e fiscais, que merecem ser analisadas com rigor técnico e sob a perspectiva do direito tributário internacional.

Inicialmente, importante mencionar que a operação pretendida pelo Flamengo está amparada na liberdade de organização empresarial, consagrada tanto no ordenamento jurídico brasileiro quanto no norte-americano. Não se trata de evasão fiscal, mas sim de uma estratégia de elisão tributária lícita, cujo objetivo é estruturar juridicamente uma entidade que, por sua natureza e local de residência fiscal, possa ser submetida a um regime mais favorável de tributação. Essa prática, conhecida como “tax planning”, é comum em operações internacionais, sobretudo em ambientes que envolvem tributação na fonte sobre rendimentos pagos a não residentes.

Nos termos do Código Tributário Nacional (art. 109 e seguintes), o Brasil adota o princípio da legalidade estrita em matéria tributária, o que significa que a forma como o contribuinte estrutura sua atividade não pode ser desconsiderada pela autoridade fiscal se não houver violação à lei. A simples adoção da forma jurídica mais vantajosa, mesmo que com o propósito de pagar menos tributo, é admitida, desde que não configure fraude ou simulação. A operação idealizada pelo Flamengo, portanto, à primeira vista, está dentro dos limites da legalidade, especialmente porque se trata de fato gerador ocorrido em jurisdição estrangeira, sujeito à legislação local.

Nos Estados Unidos, os pagamentos realizados por pessoas jurídicas domiciliadas em território americano a entidades estrangeiras, quando ausente tratado para evitar a dupla tributação, estão sujeitos à retenção de imposto federal à alíquota de 30%, conforme estabelecido no “Internal Revenue Code” (IRC), em seu § 1441. O Brasil não possui, até a presente data, convenção bilateral com os EUA para fins de eliminação da bitributação, o que leva à aplicação automática da alíquota cheia. Ademais, sobre tais pagamentos podem incidir impostos estaduais, municipais e taxas administrativas, cuja carga total pode elevar significativamente a tributação efetiva da operação.

Ao criar uma empresa local, domiciliada nos Estados Unidos, presumivelmente uma “Limited Liability Company” (LLC) ou C Corporation, o Flamengo objetiva alterar a residência fiscal da entidade recebedora dos valores pagos pela FIFA. Isso significa que, em vez de os pagamentos serem realizados diretamente ao clube no Brasil, eles seriam direcionados à empresa constituída nos EUA, que, por sua vez, repassaria os recursos ao clube brasileiro por meio de dividendos, distribuição de lucros ou prestação de serviços.

É importante destacar que a estrutura da empresa constituída deverá seguir todas as formalidades societárias exigidas pelo direito americano, incluindo obtenção de “Employer Identification Number” (EIN), abertura de conta bancária, contrato social e comprovação de substância econômica, sob pena de ser desconsiderada pela autoridade fiscal local (disregarded entity). A operação, portanto, exigirá não apenas formalidade jurídica, mas também robustez documental que comprove a efetiva existência e atividade da entidade.

Além disso, do ponto de vista do direito brasileiro, a Receita Federal poderá, eventualmente, analisar a operação à luz do artigo 116, parágrafo único, do CTN, inserido pela Lei Complementar nº 104/2001, que permite a desconsideração de atos ou negócios jurídicos simulados ou realizados com o propósito exclusivo de dissimular a ocorrência do fato gerador ou a natureza dos elementos constitutivos da obrigação tributária. Contudo, a aplicação dessa norma exige processo administrativo próprio, com ampla defesa e contraditório, sendo ônus da Fazenda Nacional comprovar o propósito exclusivamente evasivo da operação, o que, em se tratando de estrutura empresarial legítima no exterior, dificilmente se configuraria como fraude.

A comparação entre os dois sistemas tributários revela uma distinção fundamental: enquanto o Brasil tributa a renda mundial das pessoas jurídicas domiciliadas no país (princípio da universalidade), os Estados Unidos aplicam regras de “withholding tax” sobre pagamentos a estrangeiros, com elevado grau de rigidez e pouca margem de negociação quando inexiste tratado bilateral. Assim, a alternativa encontrada pelo Flamengo se insere no escopo de uma reorganização internacional com o objetivo de evitar retenções excessivas e preservar parte significativa de sua receita.

É imperioso também mencionar que a prática em questão, embora pouco comum no meio esportivo brasileiro, é rotineiramente adotada por empresas multinacionais, atletas, artistas e entidades de outros países em situações análogas. A FIFA, inclusive, já recomendou a clubes e federações que busquem assessoramento jurídico e fiscal para estruturar suas operações de forma a evitar a retenção plena nos EUA, diante da ausência de isenção legal por parte daquele governo.

Por fim, vale frisar que o sucesso dessa estratégia dependerá de criteriosa execução jurídica, contábil e fiscal, tanto na constituição da entidade americana quanto na operacionalização dos repasses para o Brasil. A repatriação desses recursos poderá ser feita, por exemplo, por meio de distribuição de lucros isenta de IRRF, caso respeitadas as regras da Lei nº 9.249/95 e os tratados sobre controle de capitais e lavagem de dinheiro. Eventual descuido poderá expor o clube a riscos fiscais e reputacionais relevantes.

Por fim, a operação idealizada pelo Flamengo é juridicamente viável, revela sofisticação no uso de instrumentos de planejamento tributário internacional e representa uma tendência irreversível de profissionalização da gestão desportiva no Brasil. Cabe agora aos demais clubes e entidades do setor acompanharem o desdobramento da medida e, se for o caso, adotarem modelos semelhantes, sempre com base em fundamentos legais sólidos e em consonância com as melhores práticas de governança fiscal global.

Crédito imagem: Flickr

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Leonardo Roesler

Advogado tributarista e sócio do RCA Advogados. Ampla expertise na confluência entre Direito, Administração e Finanças. Atua como Conselheiro Certificado pelo Instituto Brasileiro de Governança Corporativa, exercendo funções nos conselhos de administração de pequenas e médias empresas. Mestre em Administração e Finanças pela Ohio University.

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