Resumo
Este artigo analisa a influência da miscigenação brasileira na constituição física, cultural e simbólica dos atletas, com especial ênfase no futebol e na capoeira. A partir da obra de Gilberto Freyre e do conceito de lusotropicalismo, discutem-se os efeitos da confluência étnica e cultural na formação de estilos atléticos singulares, marcados pela criatividade, improviso e ginga, considerados traços distintivos do atleta brasileiro.
Palavras-chave: miscigenação; futebol; capoeira; lusotropicalismo; Gilberto Freyre; cultura corporal.
- Introdução
A identidade nacional brasileira é fruto de um complexo processo histórico de miscigenação entre indígenas, africanos e europeus. Essa fusão de raças e culturas deu origem a um corpo social e físico híbrido, cujas expressões mais visíveis manifestam-se na música, na dança, na religião e também no desporto.
Dentre essas manifestações, o futebol e a capoeira destacam-se como expressões culturais em que a influência da miscigenação se evidencia de modo notável.
A ideia do presente surgiu após uma breve exposição que fiz em Lisboa, no dia 24.04.2025, no qual me foi proposto falar acerca do lusotropicalismo. Desta forma, o presente artigo parte do referencial teórico de Gilberto Freyre, especialmente de sua tese do lusotropicalismo, para compreender como a mistura de povos influenciou a formação do atleta brasileiro[1].
A análise centra-se nas dimensões físicas e simbólicas dos corpos que praticam o futebol e a capoeira, ressaltando a presença de traços culturais herdados da matriz africana, indígena e europeia.
- Gilberto Freyre e o Lusotropicalismo: Corpo, Cultura e Identidade
Gilberto Freyre, em obras como Casa-Grande & Senzala (1933) e Sobrados e Mucambos (1936), defende a ideia de que o povo português, por sua história de mestiçagem e adaptação aos trópicos, teria uma maior capacidade de integração com outras culturas, resultando no conceito de lusotropicalismo.
Para o escritor pernambucano, o Brasil seria o exemplo por excelência dessa convivência harmônica, ainda que a realidade histórica revele tensões nem sempre reconhecidas por essa abordagem.
Nada obstante as críticas ao lusotropicalismo como ideologia conciliatória, seu valor enquanto interpretação cultural permite refletir sobre a plasticidade do corpo brasileiro como resultado de processos históricos de adaptação, resistência e sincretismo. No desporto, tais características se materializam em formas específicas de movimentação, expressão corporal e estilo de jogo.
- A Capoeira como Corpo-Luta-Música da Resistência Afro-brasileira
A capoeira, nascida no contexto da escravidão e da resistência negra, é um exemplo emblemático da síntese cultural brasileira. Ela combina elementos de luta, dança e música, estruturando-se como prática de resistência física e simbólica. A ginga, movimento base da capoeira, carrega não apenas uma função tática, mas também uma marca identitária que comunica ancestralidade e liberdade.
A formação do capoeirista envolve não apenas o domínio técnico do corpo, mas também uma compreensão rítmica e simbólica que remete à cultura africana. Nesse sentido, o corpo miscigenado do capoeirista brasileiro é um agente cultural, que representa, performa e ressignifica a história do país.
João Lyra Filho define a capoeira como uma forma altamente complexa de combate, cuja origem foi desenvolvida pelos escravos fugitivos, que precisavam desenvolver alguma vantagem para enfrentar os capitães do mato que andavam armados. Uma luta sem contato físico contínuo, em que rasteiras e golpes de cotovelo inesperados, giros rápidos e rodopios súbitos confundem o adversário.[2]
Em célebre parecer dirigido ao Ministério do Esporte, o jurista Álvaro Melo Filho define a capoeira[3] como uma expressão brasileira:
com plúrimas formas, fazendo uma simbiose entre desporto, defesa pessoal, cultura popular e música, tanto que, para Dias Gomes: “o capoeira é um artista e um atleta, um jogador e um poeta”. Em sede desportiva, a capoeira caracteriza-se como modalidade que utiliza golpes, movimentos ágeis, chutes, rasteiras, cabeçadas e acrobacias em solo ou aéreas, como ocorre em todas as artes marciais.
Acerca deste tema, apresentei estas considerações quando da apresentação de minha dissertação de mestrado na Universidade Autónoma de Lisboa, que foi publicada posteriormente[4].
No século XIX, a prática era reprimida por policiais e magistrados, sob o argumento de se tratar de uma prática bárbara e perigosa.[5] Felizmente, os tempos persecutórios ficaram em um passado distante e no ano de 2007, a capoeira foi aclamada à condição de patrimônio imaterial brasileiro, com a chancela do Ministério da Cultura e atualmente está presente em mais de 150 países, conforme relata o doutor em História Social, Maurício Barros de Castro.[6]
Em sua obra clássica “Introdução ao Direito Desportivo”, o professor João Lyra Filho associou a capoeira ao futebol como forma de demonstrar um estado de cultura cuja sobrevivência se prolonga, de forma diluída, inclusive nos sintomas de vida “psicosocial dos pretos e mulatos”. Neste sentido, concluía o magistral professor que por meio de seus fundamentos e práticas, o desporto colocava ao vivo revelações de cultura que interessam à fixação do retrato do Brasil.[7]
- O Futebol Brasileiro: A Ginga como Estilo e Herança Cultural
O futebol brasileiro ganhou notoriedade mundial não apenas por títulos, mas pela estética do jogo. A chamada ginga — termo originado da capoeira — tornou-se sinônimo do estilo brasileiro, caracterizado por improviso, fluidez, criatividade e imprevisibilidade.
Esse estilo não é fruto apenas de técnica ou treinamento, mas de uma formação cultural que valoriza a inventividade corporal. A presença da miscigenação é visível na constituição física dos jogadores, na forma como se movimentam e na leitura intuitiva do jogo. Jogadores como Fredenreich, Pelé, Garrincha, Ronaldinho e Neymar exemplificam como o corpo brasileiro performa sua história por meio do desporto.
- Considerações Finais
Ao escrever acerca dos aspectos jurídicos da tourada em Portugal e da vaquejada no Brasil[8], mencionei que o desporto é um fenômeno antropológico cercado de complexidades, capaz de congregar categorias essenciais à existência humana em um espetacular dinamismo que envolve: corpo e movimento, rendimento e lazer, jogo e trabalho.
Para Fabrício Valserra, uma só palavra não é suficiente para definir desporto, pois este seria “toda função desinteressada, nobre e higiênica cujos fins consistem em dar espairecimento ao espírito, energia à vontade e beleza pujante ao corpo.”[9]
O desporto está diretamente ligado com a própria história do ser humano[10] e pode ser tratado como um instinto que move o homem a desenvolver harmoniosamente as suas faculdades corporais espirituais, através de exercícios que são constantemente aperfeiçoados e que também proporcionam prazer.
A miscigenação brasileira, enquanto processo social e histórico, produziu corpos plurais e criativos que encontram no desporto uma de suas formas mais visíveis de expressão. A capoeira e o futebol são práticas que transcendem o desporto: são manifestações culturais que revelam identidades, histórias e resistências.
A partir da perspectiva de Gilberto Freyre, é possível compreender como o lusotropicalismo, oferece uma chave interpretativa para analisar a complexidade do corpo atlético brasileiro — um corpo que joga, dança, luta e resiste
- Referências Bibliográficas
ASSUNÇÃO, Matthias Röhrig. Da “destrezadomestiço” a “ginásticanacional”: Narrativas Nacionalistas sobre a Capoeira. In Antropolítica – Revista Contemporânea de Antropologia da Universidade Federal Fluminense.
CASTRO, Maurício Barros. A Memória do Corpo na Narrativa de Mestre João Grande. In Antropolítica – Revista Contemporânea de Antropologia da Universidade Federal Fluminense.
DAMATTA, Roberto. Universo do futebol: esporte e sociedade brasileira. Rio de Janeiro: Pinakotheke, 1982.
LYRA FILHO, João. Introdução ao Direito Desportivo. 1ª edição. Irmãos Pongetti Editores: Rio de Janeiro, 1952
FREYRE, Gilberto. Casa-Grande & Senzala. 51. ed. Rio de Janeiro: Record, 2006.
VALSERRA, Fabricio. Historia del Deporte. Editora Plus Ultra: Madrid-Barcelona, 1944
VEIGA, Mauricio de Figueiredo Corrêa da. A Tourada em Portugal e a Vaquejada no Brasil. Aspectos Jurídicos. Brasília: Editora Nobilitar, 2021
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[1] A ideia central do lusotropicalismo é que os portugueses, devido às suas características culturais, históricas e religiosas, teriam uma aptidão especial para o convívio harmonioso com povos de outras raças e culturas, especialmente nos trópicos.
[2] LYRA FILHO, João. Introdução ao Direito Desportivo. 1ª edição. Irmãos Pongetti Editores: Rio de Janeiro, 1952 – p. 55.
[3] O art. 22, da Lei n. 12.288/2010, é contundente ao afirmar que “a capoeira é reconhecida como desporto de criação nacional, nos termos do art. 217 da Constituição Federal.” De acordo com Álvaro Melo Filho, deve ser destacado que a Capoeira é o único desporto que tem reconhecimento e supedâneo explícito em ditame legal, dentre mais de uma centena de modalidades desportivas praticadas no Brasil. Outrossim, importante repontar, nesse passo, que enquanto na maioria das modalidades desportivas o praticante domina um objeto (bola, bicicleta, barco, raquete, etc), nos “desportos de combate”, entre os quais se insere a capoeira, dominar o adversário é o fim último – o objeto é neste caso um ser que age e reage, um ser que pensa e que sente. Nos “desportos de combate” não há um elemento dinâmico (ser humano) e um elemento físico (objeto), pois existem dois elementos dinâmicos, autônomos, criativos, dispondo de uma motricidade intencional, que se opõem e confrontam até se designar um superior ao outro segundo certos parâmetros. O fato de ambos procurarem a vitória, de um procurar submeter o outro confinado pelos critérios pré-determinados, o fato de um procurar dominar o outro segundo certas regras, o fato de um ter de se superiorizar ao outro para ser declarado vencedor encontra, de fato, a sua origem no universo guerreiro.
[4] VEIGA, Mauricio de Figueiredo Corrêa da. A Tourada em Portugal e a Vaquejada no Brasil. Aspectos Jurídicos. Editora Nobilitar, Brasília, 2021 – p. 38/43.
[5] ASSUNÇÃO, Matthias Röhrig. Da “destrezadomestiço” a “ginásticanacional”: Narrativas Nacionalistas sobre a Capoeira. In Antropolítica – Revista Contemporânea de Antropologia da Universidade Federal Fluminense – p. 21.
[6] CASTRO, Maurício Barros. A Memória do Corpo na Narrativa de Mestre João Grande. In Antropolítica – Revista Contemporânea de Antropologia da Universidade Federal Fluminense – p. 43.
[7] LYRA FILHO, João. Introdução ao Direito Desportivo. 1ª edição. Irmãos Pongetti Editores: Rio de Janeiro, 1952 – p. 55.
[8] VEIGA, Mauricio de Figueiredo Corrêa da. A Tourada em Portugal e a Vaquejada no Brasil. Aspectos Jurídicos. Editora Nobilitar, Brasília, 2021 – p. 21/22.
[9] VALSERRA, Fabricio. Historia del Deporte. Editora Plus Ultra: Madrid-Barcelona, 1944 – p. 15.
[10] Afirma Fabrício Valserra que: “El deporte es tan viejo como el mundo” (VALSERRA: 1944 – p. 14). Pinturas rupestres demonstram que manifestações desportivas, tais como a dança, foram registradas nos primórdios, em cavernas.