As infrações em espécie no CBJD (parte IV): das infrações referentes à Justiça Desportiva

Chegamos à quarta da série de colunas tratando as infrações em espécie na Justiça Desportiva, a partir da qual nos ocuparemos das principais infrações previstas no capítulo compreendido entre os arts. 220 e 231 do Código Brasileiro de Justiça Desportiva (CBJD). Como a Constituição de 1988 elevou o esporte ao patamar constitucional e regulou a competência da justiça desportiva atrelada às questões envolvendo competições, disciplina e cumprimento de regulamentos, seria natural que o CBJD contasse com um capítulo específico que garantisse a efetividade da sua atuação e de suas decisões. Vale lembrar que, apesar da nomenclatura, a justiça desportiva é privada, não integrando a estrutura do Poder Judiciário. Funciona como uma espécie de contencioso administrativo especializado vinculado às Federações, consubstanciado no esforço das entidades de administração do desporto no sentido de assegurar o funcionamento do ecossistema piramidal do esporte sem intervenção estatal e, para tal, estrutura seus tribunais próprios para resolução dos conflitos.

O art. 220-A é tipo que alcança aqueles que têm o dever de colaborar com a justiça desportiva, prevendo como infração disciplinar o fato de deixar de colaborar com as autoridades desportivas na apuração de irregularidades ou infrações ou de deixar de comparecer ao órgão da Justiça Desportiva, injustificadamente, quando regularmente intimado. Quando oferecida denúncia pela Procuradoria e instaurado um processo disciplinar ou quando a Justiça Desportiva instaura inquérito desportivo para apurar informações quanto ao cometimento de infração disciplinar, pessoas eventualmente precisão ser convocadas para fornecer dados importantes que podem auxiliar no esclarecimento dos fatos. Nesse sentido, o dispositivo visa a punir, com multa e fixação de prazo para cumprimento da obrigação, quem se recusa a colaborar, caso contrário a efetividade da atuação da própria justiça desportiva ficaria comprometida.

De qualquer maneira, cumpre realçar que o referido comando é dirigido especialmente às eventuais testemunhas, não se aplicando aos informantes, às partes do processo ou aos investigados. Somente as testemunhas é que possuem obrigação legal de colaboração, diferentes das demais pessoas mencionadas, as quais são sujeitos parciais do processo. A limitação é reflexo da vedação à autoincriminação, no sentido de que ninguém é obrigado a produzir prova contra si mesmo. No mais, será preciso analisar, para efeito de denúncia com base no presente artigo, se aquele que deixou de colaborar é jurisdicionado ou não da justiça desportiva, conforme elenco do art. 1º do CBJD. Isto quer dizer, por exemplo, que se a autoridade desportiva requisita a entrega de imagens em determinado prazo junto à emissora detentora de direitos televisivos de dada competição para efeito de sua utilização como prova de vídeo e, tal determinação deixa de ser cumprida, o diretor da rede de TV não responderá desportivamente.

Em seguida, o art. 221 protege o ideal de justiça, impedindo o uso do sistema jurídico desportivo para um suposto denuncismo motivado por erro grosseiro ou sentimento pessoal (perseguição). Daí que a pessoa natural fica sujeita à pena de suspensão e as entidades de prática ou de administração do desportivo (clubes ou federações) responsáveis submetidas à pena de multa pelo fato de dar causa à instauração de processo disciplinar ou de inquérito desportivo por conta de sentimento pessoal ou erro grosseiro. A expressão grosseiro, por si só, já deixa claro que o tipo não pretende punir qualquer erro, que é da natureza humana, mas apenas aquele que tão evidente que qualquer pessoa, com um mínimo de atenção e diligência não cometeria naquelas circunstâncias.

O art. 222 trata de prestar depoimento falso junto à justiça desportiva, no sentido da subversão de fatos, o que poderia prejudicar a efetividade da atuação daquela. Qualquer julgamento pressupõe uma adequada apuração fática, especialmente na esfera disciplinar, o que, mais uma vez, conclama o dever de colaboração. Daí a pena de suspensão e, em caso de reincidência, banimento. Para esta infração, valem as mesmas considerações realizadas em relação ao art. 220-A. A incidência do presente tipo infracional está sempre atrelada a pessoas sem ligação direta com o evento desportivo (sujeitos imparciais), especialmente as testemunhas, mais uma vez por conta da vedação à autoincriminação. Isto faz com que eventuais informantes ou partes intimadas a prestar depoimento pessoal ficam excluídos da sua incidência.

No art. 223, com o escopo de preservar a autoridade das determinações e decisões da justiça desportiva e de combater a desobediência, fica prevista a infração no sentido de deixar de cumprir ou retardar o cumprimento de decisão da justiça desportiva ou de transação disciplinar desportiva, sujeitando o infrator à pena de multa ou de suspensão automática até o cumprimento da decisão (além de suspensão por prazo determinado) quando aquele for pessoa natural, além da possibilidade de banimento em caso de reincidência. Neste caso, a desobediência é encarada como um ato atentatório à dignidade da justiça desportiva, à similaridade daquilo que o direito processual comum associa às noções de litigância de má-fé ou de contempt of court (desacato ao tribunal).

Apesar de autônomos e independentes das entidades de administração do desporto, os tribunais desportivos, nos termos do art. 52 da Lei Pelé, são marcados pela dependência econômica em relação às federações, o que é vital ao seu funcionamento e, ao mesmo tempo, representa curioso paradoxo. É, de fato, difícil conciliar dependência econômica com plena autonomia e independência de atuação. Seria fundamental que tal estrutura fosse repensada. Em qualquer sistema jurídico, frise-se, não se resguarda apenas a efetiva independência, mas também a aparência de independência. De qualquer forma, no estado atual das coisas, o art. 226 prevê como infração disciplinar o fato de a federação respectiva, depois de notificada pelo Presidente do TJD ou do STJD, deixar de prover os órgãos da Justiça Desportiva com os recursos humanos e materiais necessários ao seu pleno funcionamento, sujeitando o Presidente da federação à suspensão até o efetivo cumprimento da obrigação. Daí que a federação precisa disponibilizar, a título ilustrativo, um local privativo para a realização das sessões presenciais de julgamento e para a instauração da secretaria do tribunal, disponibilizar funcionários em número compatível om o volume de demanda de cada modalidade esportiva, computadores, papel, internet de alta velocidade e assinatura de softwares adequados à realização das sessões de julgamento que porventura sejam realizadas de forma virtual.

No art. 228, o Código sanciona aquele que foi punido desportivamente por decisão da justiça desportiva, mas que, durante o período de suspensão, permanece exercendo sua atividade. Por exemplo, um dirigente suspenso não pode assinar contratos de trabalho com atletas em nome do clube enquanto perdurar a punição. Aquele que for denunciado com base no referido artigo fica sujeito à suspensão por até 180 dias, sem prejuízo do cumprimento da pena anteriormente imposta. Como se nota, trata-se de uma aplicação especializada da infração de desobediência, cuja aplicação pressupõe que o punido exerça atividade durante a suspensão imposta naquela mesma modalidade esportiva atrelada à atuação do tribunal desportivo (exceto nos caso de doping, os tribunais não são multiesportivos) como forma de preservação da eficácia “territorial” de suas decisões, à semelhança do que se aplica em relação às regras de competência no direito processual comum. Isto faz com que, tomando por base o exemplo anterior, um dirigente punido pelo STJD do futebol possa normalmente celebrar contratos em nome do clube com atletas do basquete.

Por fim, chegamos ao art. 231, consubstanciada na previsão mais importante e polêmica deste capítulo do CBJD. Como vimos, a Constituição Federal atrelou, no art. 217, a competência da justiça desportiva às questões referentes à disciplina e competições. Isto não significa que a justiça desportiva seja competente para apreciar qualquer conflito que tenha relação com o esporte. A justiça comum (em sentido amplo) continua competente para apreciar questões trabalhistas envolvendo o desporto ou disputas contratuais amplas que não se refiram ao dia a dia das competições, tais como aquelas envolvendo direitos televisivos, fornecimento de material esportivo, naming rights, etc., sendo que tais conflitos, naturalmente, são arbitráveis. Assim sendo, a princípio, não haveria nenhum tipo de conflito de competência entre a justiça comum e a justiça desportiva e restaria reconhecida a especialidade desta última em temas envolvendo o esporte (fora sua inegável maior celeridade), evitando-se que liminares concedidas pelos tribunais ordinários atrapalhassem o andamento das competições.

Ocorre que, no sentido de concretizar a inafastabilidade do controle jurisdicional, o Constituinte também inseriu no art. 217, §1º, a previsão de que o acesso ao Poder Judiciário só será admitido para as ações relativas à disciplina e competições após o esgotamento das instâncias desportivas próprias. Foi exatamente desta previsão que surge a justificativa da existência do art. 231 do CBJD, que pune com multa e exclusão do campeonato o clube que pleitear (ou se beneficiar de medidas obtidas por terceiros) matéria relativa à disciplina e competições (como discutir rebaixamento ou escalação irregular de atleta, por exemplo) junto ao Poder Judiciário antes de esgotadas as instâncias esportivas.

O escopo da previsão é de evitar a conduta banal dos clubes de buscar a justiça comum, que sabidamente é mais lenta e não detém conhecimento aprofundado sobre os assuntos esportivos, os resultados que eventualmente não foram obtidos dentro de campo. Ademais, como o conceito de torcedor no Brasil é muito amplo, associado à noção de apreciador amplo do esporte (art. 182 da LGE), busca-se também evitar que os clubes lancem mão de iniciativas de torcedores no mesmo sentido, como se atuassem como laranjas daqueles.

Pois bem, então após esgotadas as instâncias desportivas, poderiam os clubes, livres da incidência da infração prevista no art. 231 do CBJD, discutir questões envolvendo disciplina e competições junto ao Poder Judiciário? Isto também não causaria distúrbios no andamento das competições? A previsão do 217, §1º, da CF, talvez com a melhor das intenções, fez exsurgir um conflito de competência que a princípio inexistiria. Isto porque, na perspectiva no sistema esportivo associativo piramidal e privado, que busca incessantemente operar sem ou com a mínima intervenção estatal, a FIFA insere em seu Estatuto (art. 51) a previsão de que as Federações a ela vinculadas devem replicar em seus regulamentos a previsão de que os clubes devem se eximir de acessar os tribunais ordinários (e também demover os seus torcedores), sob pena de desfiliação. Qual norma prevalece? A previsão constitucional do art. 217, que goza internamente de supremacia hierárquica, ou a previsão estatutária da FIFA, que é privada? Não há uma resposta válida a priori. Normalmente quando um clube aciona a Justiça Comum para discutir disciplina e competições (já foram vários os casos, inclusive no futebol nacional), a FIFA pressiona suas federações para que acordos possam ser costurados e as ações sejam objeto de desistência. Tudo para que, internamente, o sistema dê conta da resolução de seus conflitos por meio de seus próprios tribunais ou dos tribunais arbitrais reconhecidos, como é o caso do Tribunal Arbitral do Esporte (TAS).

Encontro marcado na próxima semana para a quinta parte das infrações!

Crédito imagem: Getty Images

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