Bets não são brincadeira: A urgência de proteger o futebol da indústria do vício

Na década de 1990, a publicidade de cigarros foi banida dos estádios, das televisões e das camisas de futebol. Não se tratava de uma questão econômica — as empresas do setor eram (e ainda são) extremamente lucrativas. Tratava-se de saúde pública.

Os dados epidemiológicos apontavam uma tragédia: doenças, mortes, internações, uma geração inteira afetada. A decisão do Estado foi clara: lucro nenhum justifica a banalização de um vício que mata. O que vemos hoje com as bets é a repetição do mesmo roteiro — só que com um agravante. A adição que se estimula hoje vem travestida de diversão, escondida sob o véu do entretenimento digital e potencializada por algoritmos e inteligência artificial.

A recente reportagem da Folha de S. Paulo, publicada em 8 de junho de 2025, escancara o tamanho do problema. Durante as transmissões do Campeonato Brasileiro, o torcedor médio é impactado por dezenas de inserções publicitárias de casas de apostas, muitas vezes durante momentos decisivos das partidas.[1]

São logotipos nos uniformes, placas nos estádios, narrações patrocinadas, QR Codes pulando na tela, odds sendo anunciadas ao vivo e até expressões que já viraram rotina — como “esse escanteio pode mudar seu jogo!”. A bola quase some no meio do tsunami de estímulos. A transmissão virou vitrine publicitária. O jogo virou pano de fundo. É o cassino que se impõe sobre o esporte.

Essa banalização da propaganda de apostas normalizou um produto extremamente nocivo à saúde mental e financeira da população. Assim como o cigarro no passado, a publicidade das bets aposta pesado na associação emocional: lucro fácil, emoção intensa, pertencimento.

Mas por trás da tela colorida, esconde-se um mecanismo viciante que leva muitos torcedores — especialmente jovens — à ruína. É o vício sem cheiro de fumaça. A compulsão silenciosa. A promessa de ganho rápido vira dívida impagável. E com ela vêm a ansiedade, a depressão, a vergonha e o isolamento. A associação direta entre apostas e superendividamento é inegável — e já foi reconhecida em estudos internacionais e por órgãos como a Organização Mundial da Saúde.

A fragilidade da legislação brasileira escancarou as portas para um modelo predatório. Desde que as apostas de quota fixa foram autorizadas em 2018, o país se tornou um paraíso para empresas internacionais do setor. Elas operam sob licenças estrangeiras, com pouca ou nenhuma fiscalização local.

A regulamentação federal, publicada parcialmente apenas em 2023, foi tímida e já nasceu ultrapassada. Não há limites objetivos para a publicidade. Não há controle de conteúdo, nem horário de exibição. Resultado: o futebol brasileiro foi totalmente capturado.[2] Clubes endividados passaram a depender dos contratos milionários oferecidos pelas bets — e aceitaram, sem resistência, estampar suas marcas até nos uniformes da base.[3]

A consequência mais grave disso tudo é a perda de integridade esportiva. Quando o patrocinador do campeonato é também a empresa que lucra com cada cartão amarelo, escanteio ou falta, há um conflito de interesses gritante. O torcedor se pergunta: será que aquele pênalti foi legítimo? Aquela substituição foi técnica ou orientada por alguma “informação quente” de bastidores? A sombra da manipulação de resultados paira sobre o futebol brasileiro. E ela é alimentada por esse ecossistema doentio, no qual o jogo é apenas mais um dado na planilha de especulação.

No exterior, o alarme já foi acionado. O Reino Unido, epicentro inicial da explosão das bets, iniciou o recuo. A Premier League anunciou o fim do patrocínio de casas de apostas nas camisas dos clubes.[4] A Espanha proibiu a associação direta entre apostas e atletas.[5]

E o Brasil? Aqui, seguimos apostando no vácuo regulatório. Nem a CBF e nem o Congresso Nacional assumiram até agora a responsabilidade de conter esse avanço.

O que precisamos é de uma proibição completa da publicidade de bets em ambientes esportivos — assim como se fez com o cigarro. Nada de nomes em camisas. Nada de slogans em entrevistas. Nada de odds durante transmissões. E, sobretudo, nada de marketing dirigido a crianças, adolescentes e jovens.

O argumento de que “basta apostar com responsabilidade” é tão cínico quanto dizer “fume com moderação”. Ambos os produtos se alimentam de vício. Ambos produzem dependência. Ambos enriquecem poucos às custas da miséria de muitos.

Além do necessário enfrentamento legislativo, é urgente que as categorias de base do futebol brasileiro incorporem à sua formação pedagógica o combate ao vício em apostas e à banalização da manipulação de resultados.

Muitos adolescentes vinculados a clubes já apostam regularmente, muitas vezes com acesso a contas de terceiros ou burlando sistemas de verificação de idade. Esse ambiente de tolerância — ou pior, de normalização — amplia a vulnerabilidade de jovens atletas a esquemas de corrupção, fraudes e coação por parte de agentes externos. A ausência de orientação institucional sobre o tema transforma os centros de formação em terreno fértil para a contaminação moral e financeira de jogadores ainda em desenvolvimento.

Cabe aos clubes, federações e à CBF estabelecer protocolos obrigatórios de educação preventiva, inserindo nos currículos das categorias de base conteúdos sobre integridade esportiva, ética profissional e os riscos do vício em jogos.

É inadmissível que atletas menores de idade estejam expostos a um universo onde apostas são tratadas como brincadeira — quando, na verdade, representam riscos jurídicos, disciplinares e morais gravíssimos. Jogador, em qualquer nível, não pode apostar. E isso precisa ser ensinado, reforçado e fiscalizado desde os primeiros passos no futebol profissional. A omissão nesse ponto é um risco institucional que compromete não só o futuro do esporte, mas também a vida e a carreira desses jovens.

O esporte deve ser ferramenta de inclusão, saúde e cidadania. Não pode continuar servindo como isca para o vício em jogo. Não podemos aceitar que o futebol brasileiro — nossa maior paixão popular — vire garoto-propaganda de uma indústria que lucra com a esperança alheia. O que está em jogo, mais do que escanteios e cartões, é a saúde mental de uma geração inteira. E contra isso, não dá para ficar em cima do muro.

Crédito imagem: Freepik
Nos siga nas redes sociais: @leiemcampo

[1] https://www1.folha.uol.com.br/esporte/2025/06/torcedor-tem-mais-chance-de-ver-bets-do-que-a-bola-rolando-no-campeonato-brasileiro.shtml

[2] https://ge.globo.com/futebol/futebol-internacional/noticia/2025/03/11/todos-os-clubes-do-brasileirao-2025-sao-patrocinados-por-bets.ghtml

[3] https://www.uol.com.br/esporte/futebol/ultimas-noticias/2024/04/04/por-que-corinthians-usa-marca-de-apostas-no-sub-17-e-outros-clubes-evitam.htm

[4] https://ge.globo.com/futebol/futebol-internacional/futebol-ingles/noticia/2023/04/13/clubes-da-premier-league-concordam-em-retirar-patrocinio-de-casas-de-apostas-da-frente-da-camisa.ghtml

[5] https://www.espn.com.br/futebol/brasileirao/artigo/_/id/12076122/proibicoes-punicoes-severas-altas-cifras-como-inglaterra-espanha-estados-unidos-regulam-apostas-esportes

Compartilhe

Você pode gostar

Assine nossa newsletter

Toda sexta você receberá no seu e-mail os destaques da semana e as novidades do mundo do direito esportivo.