Como a regulamentação das bets vem auxiliando no combate à manipulação de resultados

Fernando Pedro Zandonadi Vasconcelos

Vitória Schelbauer Trentin

Ao final do mês de abril de 2025, teremos completado 4 (quatro) meses de um novo capítulo: o mercado regulamentado de apostas esportivas e jogos online no Brasil. Um marco importante que, sejamos sinceros, muitos teriam considerado impensável há apenas alguns anos. Contudo, aqui estamos, diante de uma nova perspectiva que se abre para o esporte e seus bastidores, com desafios e, principalmente, a busca incessante por um mercado transparente.

Entre erros, acertos e ajustes ainda necessários, olharemos neste artigo com especial atenção para aquele que, em nossa  humilde opinião, é o grande acerto da regulamentação das apostas esportivas no Brasil: a segurança jurídica,  que permite que  os operadores  de apostas assumam, de forma efetiva, o papel de combatentes contra a manipulação de resultados em eventos esportivos, tornando-se aliados do Estado no combate à corrupção no esporte. Um passo muito mais do que apenas necessário, mas uma obrigação para quem tem o seu negócio dependente da manutenção da integridade do esporte.

A cadeia de relacionamento que envolve o combate à manipulação de resultados em eventos esportivos deve ser colaborativa. Ela integra diversas partes essenciais para o funcionamento e integridade do sistema, desde o regulador atuando no cenário por meio da Secretaria de Prêmios e Apostas do Ministério da Fazenda (“SPA/MF”), passando pelas autoridades policiais, federações e confederações esportivas, empresas privadas que têm como objetivo o desenvolvimento de sistemas de integridade e consumidores até chegar aos operadores de apostas que ocupam a posição de destaque nesse jogo.

No contexto do futebol, por exemplo, as confederações e outras entidades esportivas preveem, em seus códigos de ética e conduta, disposições voltadas ao combate à manipulação de resultados.

O Código de Ética da Federação Internacional de Futebol (“FIFA”), bem como o Código de Ética e Conduta e Canal de Denúncias (manipulação em competições esportivas) da Confederação Brasileira de Futebol (“CBF”), vedam qualquer envolvimento de atletas vinculados às entidades do Sistema Nacional do Esporte com apostas esportivas.

Por sua vez, em nosso ordenamento jurídico, a Lei 14.597, de 14 de junho de 2023, conhecida como Lei Geral do Esporte, trata da prevenção e do combate à manipulação de resultados esportivos. Contudo, a aplicação efetiva dessas diretrizes e normas esbarrava na falta de mecanismos concretos de fiscalização e na impossibilidade do Estado de obter informações cruciais detidas pelas casas de apostas.

Ocorre que, antes da regulamentação entrar em vigor, em 1º (primeiro) de janeiro de 2025, a atuação de forma irregular dos operadores dificultava o trabalho das autoridades competentes no combate à manipulação de resultados, ou seja, todas as casas de apostas que ofereciam seus serviços para apostadores brasileiros tinham sua sede no exterior, geralmente em localidades, como, mas não limitadas a, Malta, Curação, Inglaterra.

Essa questão de territorialidade impactava o mercado de apostas de diversas maneiras, mas vamos focar especialmente na questão do combate à manipulação de resultados.

A extraterritorialidade era um dos maiores desafios e empecilhos para o trabalho da polícia brasileira, uma vez que existia uma dificuldade imensa dos agentes policiais de encontrarem responsáveis legais pelas casas de apostas, dado que  estas detêm informações indispensáveis para uma investigação policial de manipulação de resultados esportivos: volume apostado, localidade das apostas, registro e dados pessoais dos apostadores, apenas para citar alguns exemplos.

Inclusive a participação do delegado da Polícia Federal, Sr. Daniel Mostardeiro Cola, coordenador-geral de Repressão à Corrupção, Crimes Financeiros e Lavagem de Dinheiro da Polícia Federal, na CPI das Bets em meados de outubro de 2024 demonstra justamente essa dificuldade do período pré regulamentação, uma vez que o delegado afirmou que por vezes enviava ofícios solicitando informações para as casas de apostas (que ainda operavam fora do Brasil) e que esses ofícios sequer eram retornados com uma comunicação de recebimento.

Obrigar os operadores de apostas com licença para atuar no Brasil a estarem com endereço físico no país foi uma medida fundamental.  A manipulação de resultados é, por característica própria e talvez única entre os crimes relacionados à corrupção no esporte, um caso em que o impacto também recai sobre as casas de apostas, uma vez que são as maiores vítimas, justamente por serem as responsáveis pelo pagamento das premiações objeto das apostas manipuladas.

Entretanto, apesar de vítimas, os operadores de apostas são também os personagens com maior poder de auxiliar as autoridades policiais e a obrigatoriedade de endereço físico no Brasil garante, portanto, que o Estado sabe onde encontrar os responsáveis pelas casas de apostas licenciadas no país para solicitar informações sobre investigações em curso

Para além das formalidades de constituição das empresas no Brasil, o grande acerto do regulador foi entender que as casas de apostas são (ou ao menos deveriam ser) as maiores interessadas em combater a manipulação de resultados no esporte.

Assim sendo, o atual cenário regulamentado proporciona, entre direitos e deveres, uma série de medidas que, quando aplicadas pelas casas de apostas, contribuem não apenas para a proteção do operador em relação à recusa do pagamento das premiações das apostas indicadas com fundada suspeita de manipulação, como também fomentam a cooperação entre a cadeia de relacionamento entre órgãos do Estado e operadores de apostas, fundamentalmente na troca de informações que, ao final do dia, serão elemento chave nas investigações policiais de casos de manipulação de resultados .

Para exemplificar justamente essa ideia de direitos e deveres que o regulador impôs para as bets, trazemos para análise os artigos 20 e 35 da Lei 14.790/2023 (“Lei das Bets”), vejamos:

Art. 20. São nulas de pleno direito as apostas realizadas com a finalidade de obter ou assegurar vantagens ou ganhos com a manipulação de resultados e a corrupção nos eventos reais de temática esportiva.

Parágrafo único. Podem ser suspensos os pagamentos de prêmios oriundos de apostas investigadas sobre as quais recaia fundada dúvida quanto à manipulação de resultados ou corrupção nos eventos de temática esportiva.

Aqui o regulador acerta ao garantir o direito dos operadores de não realizarem o pagamento de apostas sobre as quais recaia fundada dúvida em relação à integridade daquela aposta no contexto de manipulação de resultados; ou seja, existe um claro incentivo econômico para que as casas de apostas invistam em tecnologia de monitoramento para eventos esportivos suspeitos de manipulação, uma vez que a própria legislação assegura para a casa de aposta o direito de não realizar o pagamento sempre que existir uma fundada suspeita de manipulação de resultados.

Em contrapartida, os operadores, apesar de terem assegurado o direito de não realizar os pagamentos nos casos acima, precisarão cooperar diretamente com Estado através da troca de informações, e é justamente nisso que se apoia o texto do art. 35 da Lei das Bets:

Art. 35. O agente operador comunicará ao Ministério da Fazenda e ao Ministério Público os indícios de manipulação de eventos ou resultados que identificar ou que lhe forem reportados.

Parágrafo único. A comunicação de que trata este artigo será feita no prazo de 5 (cinco) dias úteis, contado a partir da data em que o agente operador identificar ou tomar ciência do indício de manipulação, observado o disposto na regulamentação.

O art. 35 tem ainda um papel quase que “escondido” e que acaba sendo fundamental na dinâmica do mercado de apostas brasileiro, especialmente na proteção do consumidor (apostador), uma vez que, ao obrigar a casa de aposta a comunicar indícios de eventos suspeitos de manipulação, o Estado inibe que o operador de apostas faça um abuso do seu direito garantido no art. 20, de forma que, ao acionar o seu direito de não realizar pagamentos para casos com fundada suspeita de manipulação, a casa de apostas precisará, automaticamente, comunicar também os órgãos reguladores, nos termos do art. 35 que mostramos acima.

Toda essa dinâmica estabelecida pelo regulador, gera uma cadeia de “espelhamento”, uma vez que toda aposta cancelada por um operador (em casos de manipulação de resultados) deverá, obrigatoriamente, ter como “espelho”, isto é, como contrapartida obrigatória, uma comunicação detalhada dos fatos ao órgão regulador, o que acaba gerando como consequência básica um comprometimento da casa de aposta a investigar de forma responsável e minuciosa uma aposta antes de realizar o seu cancelamento por questões relacionadas à manipulação de resultados.

Além dos mecanismos legais trazidos no próprio texto da lei, é importante enfatizarmos também que as Portarias temáticas editadas pela Secretaria de Prêmios e Apostas (SPA) também abordaram questões relacionadas à manipulação de resultados, reforçando as ideias trazidas pela Lei das Bets. Nesse sentido, vale o destaque para o art. 26, inciso III item b) e art. 55 da Portaria 1.231 da SPA/MF, que trata, dentre outros assuntos, sobre direitos e deveres de apostadores e também dos operadores de apostas:

Art. 26 São direitos do agente operador de apostas:

III – suspender, enquanto durar o processo de apuração, as atividades de contas gráficas de apostadores quando houver fundada suspeita: […]

b) de fraude em apostas por meio da manipulação de resultados ou corrupção nos eventos esportivos;

Art. 55. Caso os indícios de descumprimento se confirmem, o agente operador de apostas deverá:

I – anular as apostas manipuladas ou fraudadas;

II – restituir o valor das apostas dos apostadores não envolvidos no descumprimento e que tenham sido lesados; e

III – suspender por prazo determinado ou encerrar a conta dos apostadores envolvidos no descumprimento.

Parágrafo único. Em caso de encerramento de conta do apostador que tenha praticado fraude comprovada mediante processo de apuração, o agente operador de apostas poderá reter o valor depositado pelo apostador até o limite dos danos causados.

Regras como as dispostas nos regulamentos das entidades esportivas, conforme comentado, bem como as previsões contidas na Lei Geral do Esporte, por mais bem-intencionadas que fossem, esbarravam na ausência de um aliado para dar força à aplicabilidade dessas disposições. Sem dados, sem acesso e sem respostas.

A regulamentação mudou esse roteiro. O art. 20 da Lei das Bets, juntamente com o art. 26, inciso III, alínea “b”, e o art. 55 da Portaria SPA/MF nº 1.231/24, ao conferirem aos operadores o direito de declarar a nulidade e suspender apostas sobre as quais recaia fundada suspeita de manipulação de resultados, estabeleceram um suporte fundamental para a atuação responsiva das casas de apostas. Esse arcabouço, somado ao dever de notificar os órgãos competentes, conforme disposto no art. 35 da Lei das Bets, cria uma base normativa robusta.

O novo papel atribuído aos operadores reflete a mudança necessária na postura do setor e a atual estrutura permite às casas de apostas assegurar que eventuais irregularidades sejam comunicadas com agilidade às autoridades, estabelecendo um fluxo de informação essencial para o devido processo de apuração. Tais disposições não só garantem o cumprimento da regulamentação, mas também reforçam o papel dos operadores como aliados estratégicos no combate à manipulação de resultados em eventos esportivos.

Com esse suporte bem definido, as práticas de integridade, antes vistas como um conceito abstrato, tornaram-se um fator central para o funcionamento do mercado.

Fato é que muitos operadores, senão a maioria, carregam um passado controverso. Por anos, atuavam à margem da regulamentação, sem controle, sem diálogo. E mesmo agora, diante do novo papel atribuído aos operadores, alguns parecem não compreender o peso da responsabilidade que recai sobre uma casa de apostas. Pequenas atitudes podem revelar muito. A escolha de um operador em manter em sua plataforma eventos ou atletas sob suspeita de manipulação, por exemplo, diz mais do que qualquer discurso institucional.

Por outro lado, para muitos, chega o momento de redirecionar a narrativa. Operadores que investem em tecnologia de monitoramento, que cumprem a legislação, que cooperam com o Estado no repasse das informações e que retiram apostas suspeitas de forma transparente e justificada, são aliados. Não vilões. E, diante do tamanho da indústria do esporte, essa aliança é estratégica.

Combate à corrupção no esporte não é assunto apenas para os bastidores desse grande jogo político que acontecia fora de campo, como costumava ser. É pilar de confiança. É fator econômico. É um fator que ditará as regras do mercado em um futuro próximo. É o que mantém o espetáculo vivo, emocionante e legítimo.

Este artigo é, acima de tudo, um convite para que torcedores, apostadores, apaixonados pelo esporte e, sobretudo, operadores passem a encarar com seriedade o que acontece dentro e fora das quatro linhas. Que possamos olhar para as regras de integridade do esporte não como uma obrigação burocrática, mas como um ativo fundamental. Porque, se o esporte é paixão nacional, então proteger sua credibilidade é também um dever coletivo.

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