O transfer ban e o direito do trabalho do atleta brasileiro

Por Higor Maffei Bellini

O transfer ban é uma sanção de natureza administrativa, prevista nos regulamentos da FIFA, especialmente no Regulations on the Status and Transfer of Players (RSTP), mais precisamente no item Artigo 12bis – Overdue Payables sendo este principal artigo que trata do transfer ban em casos de inadimplemento financeiro, especialmente quando clubes deixam de pagar salários ou outras obrigações a jogadores ou clubes. O que impede clubes de registrarem novos jogadores, nacionais ou estrangeiros, por um determinado período.

Essa penalidade costuma ser aplicada como forma de coerção para que clubes inadimplentes cumpram decisões arbitrais ou obrigações financeiras, sobretudo ligadas a dívidas com atletas ou outros clubes, vindas dos tribunais da entidade máxima do futebol mundial.

Embora legítimo do ponto de vista regulatório internacional, o transfer ban precisa começar a gerar discussões importantes sobre sua compatibilidade com os direitos fundamentais dos trabalhadores no esporte, especialmente em contextos locais específicos, como o futebol feminino brasileiro.

No Brasil, o direito ao trabalho é garantido como direito fundamental pela Constituição Federal. Quando um clube é proibido de registrar atletas em razão de uma sanção desportiva, as consequências recaem não apenas sobre a instituição, mas também, e principalmente, sobre os(as) jogadores(as) que não conseguem ser contratados ou exercer sua profissão.

A situação se agrava ainda mais no futebol feminino, onde a grande maioria dos contratos de trabalho ainda é de curta duração, posto que o mercado de transferências onerosas é praticamente inexistente, fazendo com que os clubes não tenham ganho financeiro com a transferência das atletas, obrigando os clubes a remontarem elencos inteiros a cada temporada. Nesse cenário, o transfer ban pode inviabilizar o funcionamento das equipes e comprometer a subsistência de dezenas de atletas.

Utilizo como ponto de partida o recente precedente criado pelo Tribunal Regional do Trabalho do Rio de Janeiro, que autorizou as jogadoras e o próprio clube a impetrarem mandado de segurança contra a sanção, que no caso veio da própria justiça do trabalho, e não da FIFA ou na Câmara Nacional de Resolução de Disputas – CNRD – examina-se até que ponto é admissível restringir o direito de registro de novas atletas como forma de coagir o clube devedor, quando essa medida afeta diretamente trabalhadoras que não participaram da relação que originou a dívida.

O Tribunal Regional do Trabalho do Rio de Janeiro, por meio da SDI-2 e sob relatoria do Desembargador José Mateus Alexandre Romano, conheceu e concedeu a segurança ao fazer a análise de um mandado de segurança que permitiu ao Duque de Caxias Futebol Clube, bem como a todas as atletas que estavam no polo ativo, também com impetrantes, inscrever novas atletas, apesar de uma proibição anterior decorrente de dívida trabalhista.

Esse mandado de segurança me fez ficar pensando em uma questão que é pouco explorada no direito do trabalho ligado ao esporte, que é o direito do atleta de futebol de poder trabalhar, o que acontece mediante o registro na entidade que organiza o esporte no Brasil, que passa a ser negado em razão de um transfer ban.

O atleta empregado jamais pode ser prejudicado pelas dívidas do seu empregador, já que o risco do negócio é do clube empregador e não do atleta. E não se diga que a proibição é apenas de registrar os jogadores e não de contratar, pois em termos práticos, ambos os institutos se confundem, pois ninguém contratará uma jogadora que não poderá inscrever para a utilizar nas competições, pagando o seu salário, correndo o risco dela se contundir em treinamento ou jogos amistosos e ter de arcar com a recuperação desta atleta.

É a mesma situação fatídica que acontece quando é imposta a pena de suspensão a um técnico, por um determinado número de jogos, que precisa ser cumprida, com ele registrado por alguma equipe, já que ninguém contratará uma pessoa, pagando salários, se não a puder utilizar de imediato, ainda mais se a pena de suspensão, nesse exemplo do técnico, for de praticamente o campeonato inteiro.

 Assim, o aspecto inovador da decisão foi reconhecer que as próprias atletas, interessadas diretas na inscrição para competições, poderiam figurar como impetrantes no mandado de segurança. Esse entendimento reforça a ideia de que as jogadoras não são meras espectadoras, mas partes ativas e diretamente afetadas por sanções que impedem a formação de elencos.​

Esse precedente é particularmente significativo no contexto do futebol feminino brasileiro, onde é comum que clubes desfaçam seus elencos ao final de cada temporada e necessitem contratar novas jogadoras para o início da seguinte. A imposição de um transfer ban pode, portanto, inviabilizar a participação do clube em competições, afetando diretamente o direito ao trabalho das atletas e a sustentabilidade das equipes.​

A decisão do TRT-RJ destaca a necessidade de uma abordagem mais equilibrada na aplicação de sanções como o transfer ban, considerando as especificidades do futebol feminino no Brasil. Medidas alternativas que garantam o cumprimento das obrigações financeiras dos clubes, sem comprometer o direito ao trabalho das atletas e a continuidade das atividades esportivas, devem ser consideradas pelas entidades responsáveis pela organização do futebol.​

Desta forma, a aplicação do transfer ban pode colidir com o direito ao trabalho das atletas, estando de um lado o direito da atleta internacional, que buscou a proteção da Fifa, para conseguir ter reconhecido o seu crédito e, do outro, as novas atletas que precisam ser inscritas, para poderem ser contratadas e receber o seu salário.

Ao impedir que clubes registrem novas jogadoras, a sanção administrativa afeta diretamente as oportunidades de emprego das atletas, muitas das quais não têm relação com as dívidas que originaram a punição, até mesmo porque são meras empregadas dos clubes, não tendo qualquer tipo de poder de gestão.

Essa situação, enfrentada pelos clubes devedores, levanta sérios questionamentos sobre a proporcionalidade e a eficácia do transfer ban como instrumento de coerção, para obrigar ao pagamento de dívidas trabalhistas, no futebol feminino brasileiro, em razão das suas atuais características. Onde muitos clubes ​ainda se escondem por detrás do véu do falso amadorismo, para não registrar o contrato de trabalho das atletas, sob o olhar benevolente da CBF, que, a apenas dois anos do início da Copa do Mundo no Brasil, coloca em seus regulamentos que o Campeonato Brasileiro pode ser disputado por equipes profissionais e não profissionais.

Diante desse cenário, é fundamental que as entidades responsáveis pela organização do futebol tenham um olhar especial para a realidade do futebol feminino, onde uma atitude como essa pode fazer com que um clube deixe de existir em razão de não poder inscrever atletas em número suficiente para montar um elenco para a próxima competição e considerem as especificidades do futebol feminino no Brasil ao aplicar sanções como o transfer ban.

Medidas alternativas, já que as decisões vindas da FIFA ou até mesmo no caso brasileiro da CNRD, são meramente administrativas e têm a sua eficácia em medidas internas, que somente são aplicadas em razão da subordinação que existe no meio do futebol, que faz com que seja possível a proibição de determinada equipe de participar de competições oficiais, das entidades que estão no meio da família do futebol, poderiam ser examinadas, para obrigar o clube a pagar as suas dívidas, sem que isso impactasse de forma negativa na vida das atletas, que podem acabar sendo não contratadas pelo clube devedor, ou sendo dispensadas em razão da impossibilidade de serem inscritas.

A realidade do futebol feminino no Brasil faz com que medidas criadas, pensando em times masculinos, com contratos de trabalho a longo prazo, talvez na Europa, tenham consequências nefastas e que acabam por inviabilizar a continuidade dos clubes, já que aqui a inscrição de atletas não necessariamente se trata de reforço para uma equipe já estruturada, mas pode ser a criação de um novo elenco para aquele novo ano.

E sem que o clube possa inscrever jogadores, esse poderá não ter condições de estar na competição, o que retira dele a possibilidade de receber repasse de verbas, dos entes públicos, como estado ou município, bem como das próprias entidades que administram o futebol, ou ainda de patrocinadores, colocando aquelas novas atletas em situação de desemprego, já que o seu novo empregador, ao não poder inscrever atletas para ter uma equipe, pode deixar de participar de competições ou até mesmo se desfiliar da entidade esportiva, encerrando as suas atividades.

E, uma vez que o clube encerre as suas atividades, mesmo que acabe não se desfiliando, isso impedirá a atleta de receber os seus créditos, pois, se não há mais qualquer atividade futebolística no clube, não haverá motivos para ele fazer o pagamento do crédito da jogadora, que, a depender do tempo em que tudo isso ocorra, poderá enfrentar a questão da prescrição do seu crédito perante a justiça brasileira, mas isso será tema para outro texto.

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