Proteger o apostador é responsabilidade de quem?

Por Heloísa Diniz

Quando se trata de jogos e apostas, uma das mais legítimas preocupações diz respeito à proteção dos usuários frente às suas externalidades negativas, com especial atenção ao risco do jogo patológico e à exposição de crianças e adolescentes.

Diante desse cenário, ganha força o debate sobre os impactos que a publicidade dessa atividade pode gerar na vida da população. Questiona-se se o caminho mais eficaz para mitigar seus efeitos negativos estaria na ampliação das restrições à divulgação desse tipo de entretenimento. Neste artigo, proponho uma reflexão mais profunda: talvez a resposta não esteja em criar novas normas, mas sim em combater aqueles que insistem em ignorá-las.

Atualmente, a publicidade de apostas no Brasil é regulada por três principais normas: a Lei nº 14.790/2023, a Portaria SPA/MF nº 1.231/2024 e o Anexo X do Código Brasileiro de Autorregulamentação Publicitária (CONAR). Os três instrumentos orientam a atuação das plataformas legalizadas, que devem seguir padrões éticos, incluir mensagens de jogo responsável, respeitar restrições etárias e submeter-se à fiscalização da Secretaria de Prêmios e Apostas (SPA).

No entanto, não me parece que o cumprimento de tais regramentos pelos operadores autorizados, embora imprescindível, seja suficiente para lograr o objetivo final da regulação: a proteção efetiva da população. Isso porque o ainda insistente mercado ilegal atua de forma bastante intensa na contramão desses esforços.

Não há que se falar em uma verdadeira aplicação das normas de proteção enquanto a maioria dos usuários ainda estiver vinculada a plataformas que operam à margem da lei. Em um cenário onde 154 marcas licenciadas se sujeitam às regras de publicidade responsável — em contraponto a 10 mil ilegais que ignoram qualquer norma de proteção — a principal prejudicada é, inevitavelmente, a população.

Portanto, para que a regulamentação atual seja efetiva e o ambiente de publicidade evolua com segurança, dois movimentos são indispensáveis no combate ao mercado ilegal:

  1. Fortalecimento da capacidade de fiscalização da SPA

A Secretaria de Prêmios e Apostas (SPA) é financiada por recursos oriundos das outorgas e das taxas de fiscalização pagas pelos operadores autorizados. Cada operador contribui com R$ 30 milhões a título de outorga e recolhe, mensalmente, uma taxa que varia de R$ 54.419,56 a R$ 2.112.981,60, conforme o porte econômico da empresa.

Esses valores são fundamentais para viabilizar a atuação plena da SPA como órgão regulador. O aporte efetivo desses recursos permite à Secretaria estruturar-se adequadamente, investindo na capacitação de pessoal, na aquisição de tecnologias de monitoramento, na automação de processos e na ampliação de sua capacidade sancionadora.

Se tal condição não se verifica, é pertinente observar se os valores arrecadados estão, de fato, sendo integralmente repassados à SPA e se a atual dotação orçamentária permite que a Secretaria exerça, com a robustez necessária, seu papel institucional em um setor de tamanha complexidade.

  1. Cooperação de todo o ecossistema relacionado

Outro elemento que considero indispensável no enfrentamento ao mercado ilegal é a cooperação dos demais atores que integram o ecossistema digital e de apostas, especialmente diante de eventuais limitações operacionais e estruturais da SPA. A proteção do ambiente regulado não pode recair exclusivamente sobre os operadores licenciados — é essencial envolver instituições de pagamento, plataformas digitais e redes sociais que, ainda que indiretamente, contribuem para a viabilidade da atuação de operadores não autorizados.

Recentemente, a SPA notificou 22 instituições financeiras por prestarem serviços a sites ilegais, em conformidade com o art. 21 da Lei nº 14.790/2023. Como resposta, foi publicada a Portaria SPA/MF nº 566/2025, que reforça a proibição de tais operações e cria um canal de denúncia específico para esse fim.

É importante ressaltar que, sem a intermediação das instituições de pagamento, os operadores ilegais sediados no exterior não conseguiriam viabilizar depósitos ou saques em moeda local. Em outras palavras, quando instituições financeiras e fintechs operam sem os devidos filtros e diligências, elas tornam-se justamente o elo que conecta o consumidor brasileiro ao ambiente do jogo ilegal.

Diante disso, é imprescindível engajar o sistema financeiro no esforço regulatório do setor de apostas, considerando sua capacidade técnica e seu dever legal de adotar medidas de prevenção à lavagem de dinheiro e verificação da idoneidade de seus clientes.

Além disso, é urgente enfrentar a exposição de crianças e adolescentes à publicidade inadequada veiculada nas plataformas digitais. Embora muitas redes sociais e aplicativos declarem ser destinados ao público adulto, mecanismos eficazes de verificação de idade ainda não são implementados por essas plataformas, permitindo que menores criem contas com simples autodeclarações inverídicas. Como resultado, crianças são impactadas por conteúdos sensíveis que deveriam ser restritos a maiores de 18 anos. Nesse caso, a fragilidade não decorre de uma falha das normas que regulam os produtos anunciados, mas sim da ausência de filtros eficazes nas próprias plataformas de publicidade.

Retomando o ponto central deste artigo — de que a discussão sobre a publicidade de apostas está ancorada na preocupação com a saúde do jogador e com a proteção de crianças e adolescentes — é importante reforçar que o setor regulado não busca, e tampouco se beneficia, do vício em jogos. Ao contrário: o jogo patológico compromete a sustentabilidade do mercado no longo prazo, mina a confiança do consumidor e fragiliza a credibilidade do ambiente regulado.

O enfrentamento das externalidades negativas associadas aos jogos é de interesse comum tanto das casas de aposta, como de todos os demais que visam a proteção da população. A busca por essa proteção, a seu turno, passa necessariamente pelo combate ao mercado ilegal, que opera sem regras, sem controle e sem qualquer compromisso com o bem-estar dos usuários.

No entanto, essa batalha não pode ser enfrentada pelo setor de apostas isoladamente. Trata-se de uma responsabilidade compartilhada também com aqueles que, direta ou indiretamente, ainda que sem intenção, contribuem para a permanência do mercado ilegal no território nacional.

É hora de superarmos o falso maniqueísmo que coloca o mercado legal de apostas em pólo oposto ao bem-estar público. O verdadeiro inimigo é o ambiente sem normas, onde o risco é regra e a proteção é inexistente.

Portanto, unir esforços em torno de uma agenda regulatória madura, fiscalizável e cooperativa é, a meu ver, o caminho mais sólido e viável para garantir a proteção da população brasileira.

Crédito imagem: Getty Images

Nos siga nas redes sociais: @leiemcampo


Heloísa Diniz

Cientista Política, Mestre em Ciência Política e Pós-Graduada em Direito Legislativo. Com 10 anos de experiência em articulação de políticas públicas e monitoramento dos Poderes Legislativo e Executivo, foi Assessora Legislativa na Câmara dos Deputados e Coordenadora de Public Affairs em consultorias privadas. Atualmente, é Diretora de Regulatório da Associação de Bets e Fantasy Sport (ABFS), com atuação na pauta de esportes eletrônicos, jogos online, apostas esportivas e plataformas digitais, além de Consultora de Regulatório e Public Affairs na empresa Rei do Pitaco.

Compartilhe

Você pode gostar

Assine nossa newsletter

Toda sexta você receberá no seu e-mail os destaques da semana e as novidades do mundo do direito esportivo.