A decisão demorou, mas é histórica. No 74º Congresso da Fifa, realizado neste mês de maio, o Conselho da entidade aprovou oficialmente a criação da seleção feminina de refugiadas do Afeganistão, a Afghan Women’s Refugee Team (AWRT). A equipe será composta por jogadoras que conseguiram fugir do país após o retorno do regime talibã em 2021, quando o esporte feminino passou a ser brutalmente reprimido.
A Fifa promete desenvolver uma estratégia de apoio e desenvolvimento, com foco em treinos, estruturação, participação em torneios e, acima de tudo, segurança para as atletas. Inicialmente, a AWRT passará por uma fase piloto de um ano, com amistosos reconhecidos e torneios supervisionados. A seleção afegã não joga oficialmente desde 2018 e sequer aparece no ranking mundial da Fifa. Foi, inclusive, excluída do sorteio das Eliminatórias da Copa Asiática de 2026 — passo fundamental rumo à Copa do Mundo Feminina de 2027.
O reconhecimento da entidade é mais que simbólico. É resultado direto da mobilização internacional de atletas, jornalistas, ativistas e coletivos de direitos humanos, que pressionaram as entidades esportivas a não se calarem diante da opressão.
O Talibã e o silêncio forçado das mulheres
Desde que o Talibã voltou ao poder, em 2021, as mulheres afegãs têm enfrentado uma escalada de violações. Foram afastadas de escolas, universidades, empregos — e proibidas de praticar esportes. Em agosto, uma nova norma emitida pelo Ministério da Promoção da Virtude impôs restrições ainda mais severas, proibindo até mesmo a exposição da voz feminina em público. Cantar, ler em voz alta, discursar: tudo virou alvo. A nova “lei da virtude” exige o uso do véu integral, proíbe roupas justas ou claras, e criminaliza o simples ato de olhar para um homem fora do círculo familiar.
Relatos de apedrejamento, chicotadas públicas e punições sumárias foram denunciados por grupos de direitos humanos. Safia Arefi, líder da organização Women’s Window of Hope, resumiu o impacto:
“As mulheres afegãs estão enfrentando as profundezas da solidão.”
O crime de jogar futebol
Nilofar, jogadora de futebol, contou à revista DW que fugiu porque sabia que, se ficasse, o Talibã a encontraria, bateria e queimaria viva. Seu crime: jogar futebol e incentivar meninas a fazer o mesmo. Ela sobreviveu. Com ajuda de um soldado americano — que morreu na operação — escapou com outras oito colegas.
A judoca Friba Rezayee, primeira mulher a representar o país nos Jogos Olímpicos, vive no exílio. Ela relata que atletas escondidas no país mudaram de identidade para evitar serem presas, chicoteadas ou mortas.
“Se forem encontradas, é morte ou 100 chicotadas”, disse à RFI.
E ainda há muitas presas — física ou emocionalmente — ao medo. A capitã da seleção de vôlei, Muzhgan Sadat, viu 20 anos de construção ruírem após o retorno do Talibã.
“Agora as meninas se odeiam por ter feito parte de um time. Elas se culpam pela miséria de suas famílias”, desabafou Nilofar.
O esporte e a ONU: um dever de humanidade
Desde 2003, a ONU reconhece o esporte como instrumento de paz e desenvolvimento, por meio da Resolução 58/5. Em 2005, reafirmou esse entendimento na Resolução A/60/L.1. Ambas destacam que o esporte pode promover educação, saúde, tolerância e respeito aos direitos humanos.
“Nenhum Estado pode existir em total isolamento. A segurança coletiva depende da cooperação internacional”, diz o texto.
Ou seja, o esporte não é neutro. Não é apolítico. Ele é ferramenta de transformação — e não pode estar longe da luta pelos direitos humanos.
Afeganistão, Fifa e o dever de resistir
A oficialização da AWRT é resposta concreta à mobilização global. É um avanço, mas não suficiente. A pressão precisa continuar. Outras entidades, como o Comitê Olímpico Internacional, também devem ampliar seus mecanismos de proteção.
A religião e a soberania precisam ser respeitadas. Mas jamais podem ser escudo para regimes que negam dignidade às mulheres e atacam liberdades básicas, como o direito ao esporte.
É hora de ouvir os gritos abafados, reconhecer o esporte como resistência e garantir mecanismos de denúncia, apoio e visibilidade. Quando dirigentes se calam, é a sociedade civil, os atletas e os patrocinadores que devem se levantar.
Banimentos já foram usados em casos como o Apartheid na África do Sul. Ser diferente, hoje, é necessário — e precisa ser protegido.
Ajudar mulheres afegãs a jogar futebol não é um gesto apenas simbólico. É um ato de reparação, de coragem, de humanidade. Antes tarde do que mais tarde.
Crédito imagem: Heidi Wentworth-Ping / UNHCR
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