Não é novidade que o Brasil é o maior exportador de talentos do futebol mundial. Casos como Neymar, Vini Jr. e Endrick — todos saindo do país ainda muito jovens — escancaram esse fenômeno. Com o avanço das Sociedades Anônimas do Futebol (SAFs) e do modelo de multi-club ownership, o interesse de investidores e olheiros estrangeiros sobre atletas da base brasileira nunca foi tão intenso.
Nesse cenário, clubes que investem na formação precisam de proteção jurídica e segurança econômica. É aqui que entra o Certificado de Clube Formador (CCF), emitido pela CBF.
Criado em 2012, o CCF surgiu como resposta à evasão precoce de talentos e à necessidade de reconhecer oficialmente os clubes que atuam de forma estruturada na formação esportiva. Mais do que um selo de qualidade, o certificado é uma ferramenta de defesa e sobrevivência para as entidades que apostam na base. Ele consolida um sistema que resguarda o investimento do clube e garante condições adequadas de desenvolvimento para os atletas em formação.
O CCF é o reconhecimento oficial, emitido pela CBF, de que a entidade desportiva cumpre rigorosamente os requisitos legais para atuar na formação de atletas em processo de desenvolvimento.
A base normativa está no artigo 99 da Lei Geral do Esporte (LGE) (Lei nº 14.597/2023), que estabelece parâmetros técnicos, educacionais, médicos e estruturais que devem ser observados de forma cumulativa. Esses requisitos refletem diretamente o princípio da proteção integral da criança e do adolescente (CF, art. 227; ECA, arts. 4º e 7º), e buscam impedir abusos, negligências e improvisações nos centros de formação.
Para ser certificado como organização esportiva formadora, o clube deve:
I – Fornecer:
Programas de treinamento nas categorias de base;
Complementação educacional ao atleta em formação.
II – Comprovar, cumulativamente:
a) Que o atleta está inscrito na entidade há pelo menos 1 ano;
b) Participação do atleta em competições oficiais da modalidade;
c) Oferta de assistência completa, incluindo:
Educacional;
Psicológica;
Médica;
Fisioterapêutica;
Odontológica;
Alimentação;
Transporte;
Convivência familiar.
d) Manutenção, quando tiver alojamentos de atletas, com estrutura que assegure:
Higiene;
Segurança;
Salubridade;
Alimentação equilibrada.
e) Existência de corpo de profissionais qualificados em formação técnico-esportiva;
f) Compatibilização da carga horária de treinos (no máximo 4 horas/dia) com os horários escolares ou de curso profissionalizante;
g) Gratuidade na formação, com todas as despesas custeadas pelo clube;
h) Participação em pelo menos duas categorias oficiais da modalidade, anualmente;
i) Proibição de que o período de seleção coincida com o horário escolar;
j) Realização de exames médicos admissionais e periódicos, com prontuário arquivado;
k) Garantia de convivência familiar, com visitas regulares à família do atleta;
l) Oferta de programas contínuos de orientação e prevenção contra abuso e exploração sexual;
m) Capacitação dos profissionais da formação para atuação preventiva e protetiva, de acordo com os direitos infantojuvenis;
n) Instituição de ouvidoria própria para denúncias de maus-tratos ou abusos;
o) Estímulo à participação do atleta em atividades culturais e de lazer;
p) Apresentação anual de laudos técnicos dos alojamentos ao Ministério Público, expedidos pelos órgãos competentes.
Além disso, conforme o §2º do mesmo artigo, cabe à organização esportiva nacional que administra a modalidade (CBF, no caso do futebol) a responsabilidade de emitir o certificado, mediante a análise de documentos e vistorias que comprovem o cumprimento de todos esses critérios.
A relação jurídica entre o atleta e o clube pode assumir duas naturezas distintas: desportiva (quando se trata de atleta amador) ou trabalhista e desportiva (no caso do atleta profissional).
O atleta é considerado profissional somente após a assinatura do Contrato Especial de Trabalho Esportivo (CETE), instrumento previsto no art.99 da LGE.
O CETE só pode ser assinado a partir dos 16 anos de idade, com validade máxima de 3 anos no futebol (LGE, art. 99, caput).
Antes da profissionalização, o atleta é considerado não profissional, ou seja, amador. Nesse caso, o vínculo com o clube é exclusivamente desportivo, sem natureza trabalhista.
O grande risco para os clubes formadores está justamente aqui: o atleta amador sem contrato de formação pode se desligar do clube a qualquer momento. Essa previsão consta do art. 29 do Regulamento Nacional de Registro e Transferência de Atletas de Futebol (RNRTAF/CBF):
“O atleta não profissional sem contrato de formação registrado na CBF […] poderá solicitar, a qualquer momento, o desligamento do clube.”
Portanto, o atleta pode, por iniciativa própria ou influenciado por terceiros, se desligar do clube formador sem indenização ou qualquer contrapartida financeira. Isso representa uma perda total do investimento feito na sua formação.
A formação de atletas envolve um investimento contínuo e estruturado. Os custos vão muito além de uniformes e treinos: incluem moradia, alimentação, assistência educacional, psicológica, médica, transporte, competições, salários de equipe técnica e materiais pedagógicos. Trata-se, juridicamente, de formação com finalidade econômica e social, cuja proteção é assegurada por lei.
Para que esse esforço não se perca, o art. 99, §5º da LGE estabelece um direito de indenização ao clube formador (que possui o certificado), nas seguintes hipóteses:
a) Quando o atleta se recusar a assinar o primeiro Contrato Especial de Trabalho Esportivo (CETE), mesmo após contrato de formação válido e registrado;
b) Quando o atleta se vincular a outra organização esportiva sem autorização expressa do clube formador;
c) Quando houver frustração do direito de preferência na renovação do contrato profissional, nas condições previstas nos §§7º a 11.
Essa indenização está limitada a 200 vezes os gastos comprovadamente efetuados com a formação do atleta. A apuração deve ser feita com base no que foi formalmente especificado no contrato de formação (art. 99, §6º, IV).
O §5º, II, ainda determina que esse valor:
- Inclui tudo o que foi efetivamente investido: bolsas de aprendizagem, moradia, alimentação, despesas com profissionais, educação, transportes etc.;
- Deve ser pago pela nova entidade desportiva contratante, que responde solidariamente com o atleta.
Esse modelo de proteção jurídica busca desestimular o aliciamento precoce e garantir que o clube formador não seja lesado em seu patrimônio técnico e financeiro, o que está em consonância com os princípios da função social do desporto e da proteção ao investimento na formação esportiva.
Outro instrumento essencial de proteção do clube formador é o direito de preferência na renovação do primeiro contrato profissional, previsto nos §§7º a 11 do art. 99 da LGE.
Esse mecanismo jurídico confere segurança contratual e paridade de condições ao clube que, após formar o atleta e assinar o primeiro CETE, deseja continuar contando com o jogador.
Como funciona:
- Até 45 dias antes do fim do contrato, o clube formador deve apresentar uma proposta de renovação contratual ao atleta.
- Essa proposta deve indicar as novas condições de vínculo e os valores salariais.
- O atleta terá 15 dias corridos para responder.
- Se não responder, a aceitação será presumida (aceitação tácita).
- Se outro clube quiser contratar o atleta, deverá:
- Enviar a proposta completa (inclusive os valores);
- Notificar o clube formador e a federação;
- Permitir que o clube formador iguale as condições da proposta (direito de preferência).
Caso o atleta recuse a renovação mesmo com o clube igualando a oferta, surge automaticamente o direito de indenização para o clube formador, conforme o §11.
Essa indenização, diferente da prevista no §5º, será equivalente a 200 vezes o valor do salário mensal constante da proposta recusada, o que confere lastro objetivo e proporcionalidade à reparação.
Além disso, todas as propostas e respostas devem ser publicadas nos meios oficiais da federação ou da CBF em até 5 dias (art. 99, §10), o que assegura transparência, controle e publicidade dos atos negociais, evitando manobras ocultas ou assédio silencioso.
Assim, esse modelo impede que o clube formador seja apenas “ponto de passagem”. O direito de preferência permite que ele retenha seus talentos de forma justa, ou seja compensado adequadamente pela perda do atleta, o que fortalece a sustentabilidade da base e combate a evasão precoce e predatória.
Ademais a LGE foi taxativa ao disciplinar a estrutura da formação esportiva no Brasil. O §14 do art. 99 é claro:
“Somente poderá manter alojamento para os atletas em formação a organização esportiva formadora certificada na forma do §2º deste artigo.”
Ou seja, manter alojamento de atletas da base sem possuir o CCF é expressamente proibido por lei. Trata-se de uma cláusula de exclusividade legal, que impõe um dever de certificação como condição para alojar atletas menores de idade.
A manutenção de alojamento envolve a guarda direta de crianças e adolescentes fora de seu núcleo familiar. Isso impõe ao clube uma responsabilidade civil, administrativa e institucional. Quando esse alojamento é realizado sem supervisão legal e fora das diretrizes da certificação, o risco ultrapassa o campo esportivo e alcança o âmbito dos direitos fundamentais da criança e do adolescente, regidos pelo art. 227 da Constituição Federal e pelo Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA).
Assim, um clube que mantém alojamento sem estar certificado como formador incorre em diversos ilícitos, com consequências sérias:
- Fiscalização e interdição imediata por órgãos de controle como o Ministério Público, Conselhos Tutelares, Vigilância Sanitária ou Corpo de Bombeiros;
- Aplicação de multas administrativas por violação ao ECA e à legislação esportiva;
- Ações civis públicas por dano moral coletivo ou violação aos direitos infantojuvenis, com possibilidade de sanções como interdição de instalações, suspensão de atividades, e até indenizações;
- Desmonte da equipe de base, principalmente se os atletas forem de fora do estado, pois o fim do alojamento impede a permanência física dos jogadores, obrigando o clube a se retirar de competições ou a romper a formação de categorias inteiras;
- Risco de esvaziamento institucional, perda de credibilidade com patrocinadores, famílias e federações.
Além da ilegalidade do alojamento, clubes que não têm o CCF não podem registrar contratos de formação, pois esse vínculo jurídico só é permitido a entidades certificadas (LGE, art. 99, §2º e §13).
Na prática, isso significa:
- O clube não tem direito à indenização se o atleta se transferir;
- Não exerce direito de preferência na assinatura do primeiro contrato profissional;
- O atleta pode se desligar a qualquer momento, conforme art. 29 do Regulamento Nacional de Registro e Transferência de Atletas (RNRTAF/CBF);
- O clube fica desprotegido contra assédio de clubes rivais e investidores estrangeiros, sendo reduzido a mero formador informal, sem nenhuma contrapartida legal.
Mesmo diante dessa proibição legal, muitos clubes seguem mantendo alojamento irregularmente, sem o devido certificado emitido pela CBF.
Um aspecto curioso – e preocupante – é que diversos clubes tradicionais do futebol brasileiro ainda não possuem o CCF, exigido pela Lei Geral do Esporte para manter alojamento de atletas da base. Enquanto isso, outras equipes menos conhecidas, com estrutura mais recente, já conseguiram a certificação.
O alojamento de atletas menores exige rigor técnico, jurídico e estrutural. O CCF não é uma formalidade burocrática — é o instrumento legal que dá legitimidade à prática. Manter alojamento sem esse certificado é mais do que arriscado: é ilegal e pode comprometer a base, o nome e até a existência do clube.
Portanto, quem não possui o CCF não pode, legalmente, manter alojamento para atletas de base. Isso significa que, a qualquer momento, o clube pode ser obrigado a desativar sua estrutura de formação, dispensar jogadores, interromper projetos esportivos e perder anos de investimento. Além disso, sem o CCF, o clube também abre mão de direitos como a indenização por formação e a preferência na assinatura do primeiro contrato profissional. É um prejuízo esportivo, jurídico e financeiro que nenhum clube pode se dar ao luxo de ignorar.
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