Treze anos depois do Brasil, Europa discute liberdade do jogador de futebol

A discussão sobre o desafio do esporte de proteger contratos sem esquecer que o atleta tem direitos inegociáveis voltou com força na Europa com o “Caso Diarra”. O que muitos não lembram é que uma discussão parecida foi levada ao principal Tribunal do trabalho no Brasil, o Tribunal Superior do Trabalho. A decisão sobre a liberdade do atleta de exercer sua profissão foi emblemática.

Oscar, então jovem promessa revelada pelo São Paulo Futebol Clube, buscava seguir sua carreira no Internacional. Impedido judicialmente de atuar por força de contrato, recorreu ao Tribunal Superior do Trabalho (TST). O caso chegou ao ministro Guilherme Caputo Bastos, que concedeu habeas corpus autorizando o jogador a trabalhar livremente. Em sua decisão, o ministro afirmou que o atleta não podia ser mantido “refém de um contrato”, pois isso contrariava princípios constitucionais como a dignidade da pessoa humana e o livre exercício da profissão. Oscar só conseguiu atuar novamente por força de uma decisão judicial, que reconheceu um direito tão básico quanto essencial: o de trabalhar.

“A obrigatoriedade da prestação de serviços a determinado empregador nos remete aos tempos de escravidão e servidão, épocas incompatíveis com a existência do Direito do Trabalho, nas quais não havia a subordinação jurídica daquele que trabalhava, mas sim a sua sujeição pessoal”, escreveu Caputo.

A decisão foi um marco. O Judiciário brasileiro lembrou ao sistema do futebol que o atleta é, antes de tudo, um trabalhador — e, como qualquer outro, deve ter assegurado o direito de decidir onde, como e para quem trabalhar.

“A obrigatoriedade da prestação de serviços a determinado empregador nos remete aos tempos de escravidão e servidão, épocas incompatíveis com a existência do Direito do Trabalho, nas quais não havia a subordinação jurídica daquele que trabalhava, mas sim a sua sujeição pessoal.” Escravidão no futebol!

Treze anos depois, esse mesmo debate chegou com força ao centro do futebol global. A Europa discute agora o “Caso Diarra” com o mesmo pano de fundo: a liberdade do jogador profissional diante de estruturas contratuais e regulamentos privados que, muitas vezes, limitam seu direito de circulação e o submetem a mecanismos mais próximos de uma lógica comercial do que de um regime jurídico trabalhista.

E dois pensadores do direito esportivo tratando do tema me fizeram voltar a refletir sobre a questão da escravidão no futebol trazida pelo ministro. Um deles é Rosalia Ortega, presidente do Instituto Iberoamericano de Direito Desportivo, que, em entrevista ao jornal espanhol Diário de Notícias, foi categórica: “os jogadores são reféns de cláusulas de rescisão. Deveriam lutar pela abolição”.

O outro texto é do pesquisador francês Antoine Duval, especialista em direito e esporte, que entende que o caso do jogador francês Lassana Diarra pode ser tão importante quanto o caso Bosman — um marco no direito desportivo europeu — “porque a decisão Diarra marca uma reviravolta crucial para o futebol, sua economia e até mesmo sua identidade”.

Essas leituras me levaram a uma constatação pouco explorada: o futebol nunca viu o atleta como um sujeito pleno de direitos, mas como ativo estratégico para um negócio.

Foi assim desde o século XIX, quando o jogo da elite inglesa se transformou em mercado e as classes populares passaram a integrá-lo como força de trabalho — mas sem poder.

Foi assim também depois do Caso Bosman, julgado pela Corte Europeia de Justiça em 1995, que garantiu o direito de livre circulação a jogadores cujo contrato havia se encerrado. Jean-Marc Bosman tinha 26 anos quando, após não renovar com o Liège por discordar de uma redução salarial, tentou se transferir para o clube francês Dunkerque. Mesmo sem contrato vigente, o clube belga exigiu pagamento para liberá-lo — valor que o clube francês não podia arcar. Bosman ficou sem contrato e sem clube. Preso.

Com o apoio de advogados, ingressou com ação no Tribunal de Justiça da União Europeia, com base no Tratado de Roma, que garante a livre circulação de trabalhadores entre os países da então Comunidade Europeia. Em 15 de dezembro de 1995, a corte deu ganho de causa a Bosman: reconheceu que a lex sportiva deve se submeter à lex publica, e determinou que atletas com contratos encerrados não podem ser impedidos de atuar por novos clubes.

A decisão derrubou uma das bases do sistema de transferências europeu e transformou o futebol. Três anos depois, o Brasil sancionou a chamada Lei Pelé (Lei 9.615/98), que entre outros pontos, extinguiu o “passe”, liberando o atleta ao fim do contrato — uma vitória para os direitos do trabalhador da bola.

Mas a liberdade não foi plena.

Para compensar a perda econômica dos clubes, a FIFA passou a admitir cláusulas compensatórias por rescisões antecipadas e, com isso, os contratos no futebol começaram a incluir multas milionárias e prazos longos. Só no futebol se faz um contrato esperando que ele seja rompido — desde que com indenização. Esse modelo, sob o discurso de proteger o equilíbrio financeiro e competitivo, muitas vezes esconde a manutenção de estruturas de controle sobre o jogador.

É esse sistema que o Caso Diarra desestabiliza.

Diarra foi proibido de atuar por um novo clube por não ter quitado valores relacionados a cláusulas indenizatórias da rescisão de seu contrato anterior. O Tribunal entendeu que essa limitação à inscrição do jogador violava o direito à livre circulação e ao trabalho, princípios fundamentais assegurados pela Carta de Direitos Fundamentais da União Europeia (CDFUE), pela Declaração Universal dos Direitos Humanos (DUDH) e pelo art. 6º do Pacto Internacional sobre Direitos Econômicos, Sociais e Culturais (PIDESC). Também no plano interamericano, esse entendimento encontra base no art. 6.1 da Convenção Americana sobre Direitos Humanos (CADH), que proíbe qualquer forma de escravidão ou servidão.

Como lembrou Duval, “esse mercado transnacional era uma fonte regular de abusos para jogadores (se você olhar além do um por cento da elite da bola), tráfico de crianças, corrupção e evasão fiscal. Não era uma construção institucional que deveríamos celebrar e querer proteger. Derrubar esse mercado é em si um feito enorme, que afeta profundamente como vivenciaremos o futebol e perceberemos os jogadores no futuro. Não mais como bens que os clubes devem comprar a um preço baixo e vender a um preço alto, mas como humanos em quem um clube deve investir para mantê-los trabalhadores felizes”.

O Tribunal Europeu de olho no caso

A questão é muito séria e pouca gente tem se dado conta. E desencadeou outra discussão. Você já percebeu que o acesso a justiça é limitado dentro do esporte por conta das regras de resolução de conflito? A Europa esta discutindo e questionando essa força que o esporte tem.

Afinal, uma associação privada tem colocado freios ao direito universal de acesso à justiça, no Brasil protegido pela Constituição Federal, no art 5º, inciso XXXV.

A Europa esta revendo a força desse poder do futebol de limitar radicalmente esse acesso a justiça, principalmente em função de violação a direitos humanos.

O poder da FIFA de estabelecer regras ou tomar decisões sem intervenção judicial está sendo questionado e será em breve reavaliado pelo Tribunal de Justiça da União Europeia (TJUE).

Hoje, uma regra ou decisão da FIFA pode ser revisada por meio de uma arbitragem final perante o TAS (Tribunal Arbitral do Esporte), sediado na Suíça, com possibilidades limitadas de recurso junto ao tribunal suíço.

O que está em jogo é até que ponto o TJUE ou tribunais nacionais da UE podem anular uma decisão do TAS aplicando o direito da União Europeia, mesmo que a decisão do TAS seja considerada definitiva dentro do movimento jurídico privado do esporte.

Atualmente, a jurisprudência da UE em tais casos estabelece que apenas as leis fundamentais da União (como as relativas à concorrência ou à liberdade de trabalhadores) devem ser aplicadas. Houve uma série de casos desse tipo, incluindo os relacionados à fracassada Superliga Europeia e à multa de 10 milhões de euros imposta ao jogador Lassana Diarra, como estamos vendo.

No livro sobre histórias que mudaram o esporte que estou escrevendo mostro que mudanças surgem a partir de provocações. Pesquisando, me vem uma análise que pode ser importante para essa questão. Como a arbitragem esportiva seria forçada, ou seja, para participar de esporte, poder trabalhar, é indispensável aceitar os métodos de resolução de disputas da cadeia esportiva, me parece justo que os tribunais estatais entendam que a revisão de direitos fundamentais precisa ser mesmo obrigatória.

No entanto, um Parecer emitido em 16 de janeiro de 2025 pela Advogada-Geral do Tribunal de Justiça da União Europeia (TJUE) adota uma posição diferente, defendendo que o direito da UE deve ser aplicado a todas e quaisquer violações do direito da União, sejam elas fundamentais ou não.

Isso pode ser transformador.

A lição é clara: o jogador é um trabalhador. E tem direitos.

A decisão europeia no Caso Diarra é uma advertência à FIFA e a todas as entidades esportivas. Ela não destrói o sistema — apenas mostra que ele precisa de ajustes para respeitar direitos fundamentais. A FIFA, como no pós-Bosman, buscará formas de preservar sua estrutura, mas terá que se alinhar à legalidade e à dignidade de quem joga.

A justiça não se opõe à estabilidade dos contratos, à formação de atletas ou à solidariedade entre clubes. Pelo contrário. Mas quando a autonomia do esporte se transforma em escudo para práticas abusivas, é o Direito que precisa intervir — para lembrar que, mesmo dentro das quatro linhas, há princípios que não podem ser ignorados.

A escravidão acabou. Faz tempo, como lembrou o ministro Caputo. Ainda bem. Mas a liberdade plena do trabalhador da bola ainda precisa ser garantida — e defendida. Em campo e nos tribunais.

Crédito imagem: AFP

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