A introdução do árbitro de vídeo, conhecido como VAR, no futebol brasileiro trouxe a expectativa de maior justiça nas decisões de campo. Trata-se de uma ferramenta tecnológica pensada para corrigir erros claros e evidentes cometidos pela arbitragem, garantindo maior precisão em lances capitais, como gols, pênaltis, cartões vermelhos diretos e erros de identificação.
Contudo, o que se verifica, com certa frequência, é que os próprios membros do VAR cometem equívocos graves ao deixarem de recomendar revisões em lances notoriamente controversos e passíveis de correção.
A atuação do VAR não é uma função auxiliar ou periférica. Os árbitros de vídeo, embora não estejam fisicamente no campo de jogo, exercem uma função oficial e decisiva na arbitragem da partida.
Seus atos (ou omissões) têm potencial de alterar diretamente o resultado do jogo. Ainda assim, o que se nota na prática é a ausência de responsabilização disciplinar desses profissionais, mesmo diante de falhas evidentes e admitidas pelas comissões de arbitragem.
O Código Brasileiro de Justiça Desportiva (CBJD), em seu artigo 1º, §1º, inciso V, expressamente inclui como sujeitos do Código “os membros da equipe de arbitragem”. A redação é clara ao ampliar o alcance das normas disciplinares a todos os integrantes envolvidos na condução da arbitragem, e não apenas ao árbitro principal e seus assistentes.
Esse dispositivo, portanto, abrange também os árbitros de vídeo que compõem o VAR, já que eles participam formal e oficialmente da equipe de arbitragem da partida, sendo inclusive listados na súmula e submetidos às diretrizes da Comissão Nacional de Arbitragem.
Esse enquadramento não é meramente teórico. O CBJD prevê um conjunto de infrações diretamente relacionadas à conduta da arbitragem, a partir do artigo 259. Essas infrações foram historicamente aplicadas ao árbitro de campo, mas não há qualquer obstáculo jurídico para que sejam igualmente aplicadas aos membros do VAR, uma vez que não há distinção normativa entre os tipos de árbitros.
O artigo 259 do CBJD pune o ato de “deixar de observar as regras da modalidade”. Quando um árbitro de vídeo deixa de recomendar uma revisão em um lance que, conforme o protocolo do VAR, deveria obrigatoriamente ser analisado, há clara violação das regras que regem sua função. O §1º desse artigo, inclusive, permite a anulação da partida se houver erro de direito relevante o suficiente para alterar o resultado do jogo, o que pode se aplicar a omissões graves do VAR.
O artigo 261-A trata especificamente da omissão no cumprimento das obrigações da função por parte de qualquer membro da equipe de arbitragem. Trata-se de infração disciplinar típica, com pena de suspensão de quinze a noventa dias, podendo ser cumulada com multa. Sua redação é aberta, e se ajusta perfeitamente aos casos em que o árbitro de vídeo não cumpre o protocolo técnico estabelecido.
Já o artigo 266 trata da omissão ou deturpação no relato das ocorrências da partida. Quando o VAR omite fatos relevantes, não os comunica de forma precisa ou dificulta a punição de infratores, incorre nesta infração. Por fim, o artigo 263 prevê punição ao árbitro que, mesmo não estando em condições de atuar, não comunica tal fato à autoridade competente. Isso pode ser aplicado, por exemplo, em casos de árbitros de vídeo que atuem de maneira displicente, emocionalmente abalados ou sob interferências externas que comprometam sua isenção técnica.
O sistema disciplinar desportivo, portanto, já oferece ferramentas normativas suficientes para responsabilizar os membros da arbitragem por condutas técnicas inadequadas, incluindo os árbitros de vídeo. O que falta é a efetivação desses dispositivos no plano prático.
A Procuradoria dos Tribunais de Justiça Desportiva, tanto em âmbito estadual (TJD) quanto nacional (STJD), tem o dever de atuar não apenas sobre os árbitros de campo, mas também sobre os demais membros da equipe de arbitragem. Quando falhas técnicas são constatadas e reconhecidas pela Comissão de Arbitragem da CBF, especialmente aquelas que alteram o resultado da partida ou comprometem a regularidade da competição, a Procuradoria deve promover as denúncias cabíveis com base nos artigos acima mencionados.
A ausência de responsabilização do VAR tem produzido um grave vácuo de autoridade no sistema disciplinar do futebol. Quando se pune apenas o árbitro de campo e se ignora o papel decisivo (e muitas vezes determinante) dos membros do VAR nos equívocos cometidos, cria-se uma espécie de zona de impunidade dentro da arbitragem. Isso compromete a legitimidade do sistema, fragiliza a confiança dos clubes e atletas, e acirra o sentimento de injustiça por parte dos torcedores.
O argumento de que o VAR apenas sugere e não decide não é suficiente para afastar sua responsabilidade. A função do árbitro de vídeo é, justamente, detectar lances que escapam à visão do árbitro de campo e garantir que ele tenha a oportunidade de rever decisões cruciais. Quando essa sugestão é omitida em situações que exigem revisão — conforme os critérios técnicos estabelecidos —, ocorre um descumprimento direto das regras do jogo, com consequências desportivas concretas. A responsabilidade, portanto, deve ser partilhada.
A modernização das ferramentas tecnológicas exige também a modernização das práticas interpretativas e aplicativas do direito desportivo. O CBJD é suficientemente aberto e principiológico para alcançar as novas realidades da arbitragem contemporânea. A resistência em aplicar suas normas aos membros do VAR revela não uma limitação normativa, mas uma omissão institucional.
A responsabilização disciplinar dos árbitros de vídeo, com fundamento no CBJD, é perfeitamente cabível e necessária. Ela atende ao princípio da legalidade, respeita a isonomia entre os membros da arbitragem e reforça a credibilidade do sistema de justiça desportiva.
Ignorar a atuação do VAR no contexto da responsabilidade disciplinar é fechar os olhos para uma realidade que já impacta diretamente os campeonatos nacionais.
É preciso que as autoridades desportivas abandonem a ideia de que o VAR é um ente meramente técnico, isento de controle disciplinar. Ele é, de forma incontestável, parte da equipe de arbitragem. Como tal, deve responder por seus atos e omissões. E isso, à luz do CBJD, não apenas é possível — é imprescindível.
Crédito imagem: MihailDechev | Getty Images
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