Por Thamires Hermida e Roberta Cardoso Farias
A Lei 14.193/2021, conhecida como Lei da Sociedade Anônima do Futebol (SAF), trouxe a possibilidade de transformação dos clubes associativos em empresas. No entanto, devido à especificidade do futebol, a própria legislação previu tratamentos diferenciados para as SAFs, afastando muitas regras aplicáveis às empresas tradicionais.
Ainda assim, a Lei da SAF abordou apenas os pontos mais relevantes, e diversas questões práticas só começaram a surgir com a efetiva aplicação da legislação. É nesse contexto que o papel do Poder Judiciário se torna fundamental para interpretar e adaptar normas gerais à realidade dos clubes de futebol.
Neste artigo, abordamos uma importante decisão proferida pelo Tribunal Regional do Trabalho da 12ª Região, relacionada ao Programa de Jovem Aprendiz.
O programa de jovem aprendiz e a aplicação nos clubes de futebol
Criado pela Lei 10.097/2000, o Programa de Jovem Aprendiz determina que empresas de médio e grande porte contratem aprendizes em número equivalente a, no mínimo, 5% e, no máximo, 15% do seu quadro de funcionários que desempenham funções que exigem formação profissional. A base de cálculo para a contratação de aprendizes é estabelecida pelo artigo 429 da CLT e detalhada pelos Decretos 5.598/2005 e 9.579/2018.
Tais decretos destacam que não integram nessa base de cálculo as funções que exigem habilitação técnica ou superior, bem como os cargos de direção, confiança, gerência e trabalho temporário.
Para definir quais funções demandam formação profissional, a legislação determina a utilização da Classificação Brasileira de Ocupações (CBO), elaborada pelo Ministério do Trabalho e Emprego (MTE). A CBO reconhece e classifica as ocupações do mercado de trabalho brasileiro, servindo como referência para a fiscalização trabalhista.
Além disso, as normas que regulam a atividade do menor aprendiz, vedam a realização de horas extras e trabalho noturno, o que se torna a contratação inviável para os Clubes, dada as particularidades da atividade do futebol.
Nos últimos anos, Auditores Fiscais do Trabalho passaram a considerar todos os atletas de futebol – sejam profissionais ou da base – como integrantes da base de cálculo da cota de aprendizes, elevando significativamente o número de contratações obrigatórias para os clubes.
A atipicidade da profissão de jogador de futebol
A profissão de jogador de futebol apresenta peculiaridades significativas em comparação com um trabalhador convencional. Os atletas possuem um regime jurídico próprio, com normas específicas previstas na Lei Pelé (Lei 9.615/1998) e na Nova Lei Geral do Esporte (Lei 14.597/2023). Além disso, trabalham em horários diferenciados e estão sujeitos a uma alta rotatividade no elenco, o que afeta diretamente a estabilidade do quadro de funcionários.
A exigência de que clubes de futebol utilizem toda a sua equipe de atletas como base de cálculo para a cota de aprendizes ignora a constante oscilação do plantel. O mercado do futebol é dinâmico, com transferências frequentes e mudanças no elenco ao longo da temporada. Caso o atleta de futebol profissional seja incluído nessa base de cálculo, essa rotatividade tornaria extremamente difícil para o clube manter, nos termos da lei, um número fixo de aprendizes durante um único exercício social.
Apesar disso, a fiscalização trabalhista tem adotado uma interpretação excessivamente ampliativa, fundamentada apenas na CBO, sem considerar as características específicas da atividade esportiva.
A decisão do TRT-12 em favor do Figueirense SAF
Diante dessa situação, o Tribunal Regional do Trabalho da 12ª Região decidiu favoravelmente ao Figueirense Futebol Clube SAF, anulando um auto de infração que considerava todo o elenco de jogadores como base de cálculo para a cota de aprendizes.
O Desembargador Relator equiparou os jogadores de futebol a trabalhadores temporários, o que os exclui da base de cálculo da cota de aprendizes, conforme o artigo 54, inciso I, do Decreto 11.479/2023. Ele destacou a alta rotatividade dos atletas e as dificuldades operacionais que os clubes enfrentariam para manter um número fixo de aprendizes ao longo do ano.
COTA LEGAL DE APRENDIZ. CLUBE DE FUTEBOL (SAF). ATLETA. JOGADOR DE FUTEBOL. INCORREÇÃO DA BASE DE CÁLCULO. NULIDADE DO AUTO DE INFRAÇÃO E MULTAS. RECURSO ORDINÁRIO. CONHECIMENTO. Deve ser conhecido o recurso que preenche os pressupostos legais de admissibilidade. (TRT da 12ª Região; Processo: 0001129-68.2023.5.12.0036; Data de assinatura: 26-02-2025; Órgão Julgador: Gab. Des. Marcos Vinicio Zanchetta – 5ª Turma; Relator: MARCOS VINICIO ZANCHETTA)
A decisão do TRT-12 é um importante precedente para os clubes de futebol, pois reconhece a incompatibilidade da profissão de atleta com a base de cálculo da cota de aprendizes. Essa interpretação garante maior segurança jurídica às SAFs e clubes associativos, evitando penalizações indevidas e permitindo que as exigências do Programa de Jovem Aprendiz sejam aplicadas de forma razoável e coerente com a realidade do futebol.
O caso do Figueirense demonstra a importância do Poder Judiciário na adaptação das normas ao contexto do esporte, especialmente em um setor que opera sob regras e dinâmicas próprias. A expectativa é que essa decisão contribua para futuras interpretações mais equilibradas sobre o tema, evitando que clubes sejam prejudicados por uma aplicação excessivamente rígida da legislação geral.
Crédito imagem: Thomas Northcut | Getty Images
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Thamires Hermida – Advogada especialista em Direito Desportivo, advogada no Departamento Jurídico e de Registros do Figueirense SAF e finalizando LLM em Direito Desportivo Internacional pelo ISDE – Madrid.
Roberta Cardoso Farias – Advogada especialista em Direito Desportivo, Gerente Jurídica do Figueirense Futebol Clube SAF, Presidente da Comissão de Direito Desportivo do Instituto dos Advogados de Santa Catarina.