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A difícil arte de ser mulher dentro e fora das quatro linhas de jogo

“Tempo rei, ó tempo rei, ó tempo rei

Transformai as velhas formas do viver”

(Tempo Rei, Giberto Gil, 1984)

O futebol foi construído como um esporte masculino. Um território. Um espaço exclusivo. A cultura ao derredor do futebol é marcadamente impermeável ao feminino. Cântico de torcida, bordões e expressões empregadas pela mídia especializada, enfim, tudo mais que o acompanha está associado ao mundo masculino.

Apesar disso, pouco a pouco, as mulheres têm retomado o que já foi seu também um dia. É isso mesmo, no começo o futebol não era propriedade exclusiva do masculino, teve grande contribuição feminina para sua acolhida como esporte do povo.

A história da participação de mulheres não é recente, ao contrário do que alguns possam crer, ela renasce após um sufocamento por longas décadas, que deixou naturais sequelas; porém, que não foi capaz de extirpar das mulheres o prazer de torcer e jogar futebol.

Os primeiros registros de futebol de mulheres datam de 1895, na Inglaterra, onde existiam muitos clubes. Inclusive, num deles, o Dick Kerr’s Ladies, durante um Boxing Day, em 1920, chegou a atuar para mais de 53.000 espectadores. Porém, a Football Association (FA), no ano seguinte, proibiu que as mulheres jogassem futebol porque era bastante inadequado para elas e não deveria ser encorajado[1]. Apesar disso, a luta das mulheres voltar a praticar o futebol prosseguiu e, em 1969, fundou-se a Women Football Association (WFA), reunindo 44 equipes, que organizou torneios (Women’s FA Cup Final) e partidas internacionais. Somente em 1983, apesar da proibição ter sido revogada em 1971, a FA convidou a WFA para se filiar, passando a se desenvolver com mais vigor o futebol praticado por mulheres.

No Brasil, a participação da mulher no futebol se inicia como torcedora, como se colhe da pena de Mário Filho[2]. Não há registro históricos mais confiáveis que indiquem com exatidão quando teria ocorrido a primeira partida entre mulheres. Mas, certamente, isso ocorreu com a massificação do futebol na sociedade[3], tal qual na Inglaterra.

Apesar isso, já na década de 40, na Era Vargas, editou-se o decreto-lei n. 3.199, que proibia que mulheres praticassem esportes que fossem incompatíveis com a sua condição e natureza[4]. Lógico que o futebol, apesar de não ser expressamente nominado, se revelou como o objeto de vedação da sua prática pelas mulheres. Naturalmente, isso não impediu que jogassem, sobretudo naqueles recônditos inalcançados pelo Estado. Na década de 60, durante o período gris de nossa país, a proibição foi expressa, sendo somente revogada em 1979[5].

Todavia, foi fundamental para construção de conceito de que futebol é coisa para homem. Inúmeras gerações cresceram embaladas por este arraigado preconceito. Sim, uma verdadeira discriminação, que tolhia das mulheres o interesse pelo futebol, de torcer ou jogar. A elas isso não deveria importar. Era um verdadeiro clube do Bolinha[6].

Mesmo após a revogação do decreto, não houve um relevante incentivo para que o futebol de mulheres pudesse efetivar-se, seja no espectro do desporto educacional, participação ou de alto rendimento.

A participação da mulher no “mundo do futebol”, dentro ou fora das quatro linhas, vem, gradativamente, aumentando e sendo comum vê-la em posições mais estratégicas e com efetivo poder de decisão. Não é uma tarefa das mais fáceis, nem mesmo o caminho percorrido foi livre de tormentas e espinhos ou sequer chegou ao seu ponto final.

No último dia 14 de julho, deste ano, os Tribunais de Justiça Desportiva do Futebol de todo o país apresentaram as suas novas composições e já se percebe, ainda que tímida, uma mudança.

Cada vez mais a presença de mulheres, com preparado técnico elevado, na atuação perante estas cortes. No TJD/RJ, por exemplo, a Dra. Renata Mansur foi aclamada Presidente; no TJD/SE, a Dra. Conceição Vasconcelos, consagrou-se como Vice-presidente, por escolha unânime dos seus pares. No Tribunal Maior, o STJD, ratificou-se a Comissão Disciplinar Feminina, que foi instalada ainda na gestão anterior[7].

Não é uma jornada tranquila a inserção e atuação da mulher neste mundo da bola, sempre existem queixumes sobre uma meritocracia e se a garantia de sua presença nesses espaços não seria uma injusta benesse. Esse é um discurso, penso, que nega realidades. Como expus anteriormente as mulheres têm um hiato no campo muito grande em relação ao homem, que lhe impediu que prosseguir desde as origens do esporte e construir uma cultura do futebol praticado por mulheres[8]. A primeira Copa do Mundo de Futebol praticado por homens ocorreu em 1930, enquanto a edição destinada às mulheres ocorreu em 1991, um lapso superior a 60 anos.

Sabe-se que a falta de estrutura, campeonatos e cultura desportivo ao derredor disso é fundamental para a estagnação do futebol de mulher e, com isso, a criação de um mercado cada vez mais com a sua participação, nos mais diversos postos de trabalho existentes (técnica, diretora de clubes ou federações, etc.).

Portanto, o estímulo à participação de mulheres para além do campo de jogo é deveras importante com forma de se conceder a idealizada igualdade de condições. Nisso, a existência, no âmbito da Justiça Desportiva, de Comissões Disciplinares Feminina é uma medida útil a tal finalidade, pois estimulará e criará novos quadros.

Observe-se que a FIFA inseriu como uma das suas metas o desenvolvimento do futebol de mulheres – quiçá, a conciliação com o passado –, incluindo como obrigatório que as equipes que pretendem obter licença para disputar as suas competições contemples equipes femininas.

Com isso, houve um efeito cascata, adotando-se isso no âmbito da Conmebol e da CBF. Mas, ainda existem defeitos que precisam ser sanados, não se promoveu uma efetiva profissionalização da modalidade, porque não há exigência de que se firmem contratos de trabalho como no masculino, por exemplo, assim, clubes optam por ter times de mulheres que percebem bolsas de auxílios. O descaso com o desenvolvimento do futebol de mulheres é ululante, sendo uma realidade o inadimplemento de salários[9] e outros casos de desprezo em relação à modalidade[10].

Não obstante este cenário, há evidente sinal de evolução, que dependerá, ainda, de insistência, inventividade e resiliência. As pressões externas para que o futebol de mulheres não evolua existirão sempre, apesar de crer que se trata de produto mercadológico diferente e que tem um público próprio.

De forma idêntica se trata da evolução da trajetória das mulheres em postos de comando na gestão esportiva, na alta administrações de clubes e entidade de administração do esporte e, também, nas esferas diversas da Justiça Desportiva.

Há o que se comemorar, e não me refiro especificamente aos postos alcançados, o que vale é a jornada caminhada, a cada passo dado fica mais difícil de se voltar para o funesto passado. Em recente Webinar realizado pela Comissão de Direito Desportivo da OAB/SE, minha querida amiga Mariana Chamelette, invocando Gilberto Gil, nos remeteu à estrofe de “Tempo Rei” que constei como epígrafe desta coluna.

E, por fim, em meio àqueles debates sobre esse tema, fui recordado, por Cristiano Possídio, da letra de “Super Homem”, letra feita em 1979 (ano em que se revogou no Conselho Nacional de Desportos a proibição das mulheres jogarem futebol), do citado Gilberto Gil, que se aplica aqui:

Um dia vivi a ilusão de que ser homem bastaria

Que o mundo masculino tudo me daria

Do que eu quisesse ter

(…)

Quem sabe o super-homem venha nos restituir a glória

Mudando como um deus o curso da história

Por causa da mulher

……….

[1] Disponível em: <http://www.thefa.com/womens-girls-football/history#:~:text=The%20FA%20banned%20women’s%20football,Women’s%20international%20had%20been%20played>. Acessado em 20 jul. 2020.

[2] Ao relatar a composição do estádio de futebol, no começo de tudo no Brasil,  pontuava: “Na geral, olhando de longe a arquibancada, cheia de moças, uma corbeille segundo a comparação de um cronista mundano” (Filho, Mário. O Negro no Futebol Brasileiro, 5. ed. 2010, Ed. Mauad, p. 41).

[3] O início da prática do futebol feminino no Brasil ocorreu de forma contrária ao que aconteceu no masculino. Segundo Reis e Arruda (2011), as primeiras mulheres a praticar esse esporte não foram as moças da elite, mas um grupo de mulheres das classes mais baixas. Não se tem uma data exata de quando o futebol feminino teria se iniciado, mas é certo que entre 1913 a 1940, cada vez mais as mulheres deixavam as arquibancadas para se aventurar dentro dos campos de futebol como jogadoras. (Lima, Nilsângela Cardoso e Sousa, Maria Gleyciane Barbosa de. (In)visibilidade das mulheres nos campos de futebol: quebra de tabus e ampliação de sua presença no espaço público mediante a prática do esporte profissional in Revista Eptic, vol. 18, n. 1, janeiro-abril 2016, ISSN 1518-2487).

[4] Art. 54. Às mulheres não se permitirá a prática de desportos incompatíveis com as condições de sua natureza, devendo, para este efeito, o Conselho Nacional de Desportos baixar as necessárias instruções às entidades desportivas do país. Disponível em: <https://www2.camara.leg.br/legin/fed/declei/1940-1949/decreto-lei-3199-14-abril-1941-413238-publicacaooriginal-1-pe.html>. Acessado em 20 jul. 2020.

[5] Disponível em: <https://www.huffpostbrasil.com/entry/mulheres-proibicao-futebol-brasil_br_5cf9dd47e4b06af8b5060a3b#:~:text=A%20historiadora%20explica%20que%20o,era%20aceito%20para%20uma%20mulher>. Acessado em 20 jul. 2020.

[6] Expressão que nasce inspirada na história em quadrinhos “Luluzinha”, criada Marjorie Henderson Buell. “Bolinha” é garoto, amigo da protagonista, que preside um clube onde era proibido o acesso de meninas.

[7] Tive oportunidade de escrever a respeito quando da sua criação. Disponível em: <https://www.linkedin.com/pulse/um-gola%C3%A7o-em-prol-do-futebol-feminino-e-feminismo-nova-milton-jord%C3%A3o>. Acessado em 20 jul. 2020.

[8] Aliás, tenho empregado essa expressão, inclusive valendo-me da observação feita por Aline Pelegrino (Ex-atleta de futebol e integrante da Seleção Brasileira, atualmente é Diretora de Futebol Feminino da Federação Paulista de Futebol), no Webinar organizado pela Comissão de Direito Desportivo da OAB/SE – Mulheres em campo: Qual nosso destino?-, pois, pondera ser a mesma modalidade (não há distinção de regras ou tamanho de campo, etc., como em outras modalidades) e serve como meio de se afastar do rótulos que apõe ao nome “feminino”.

[9] Disponível em: <https://www1.folha.uol.com.br/esporte/2020/05/atletas-denunciam-clubes-a-cbf-por-falta-de-ajuda-ao-futebol-feminino.shtml>. Acessado em 20 jul. 2020.

[10] Causou eco manifestação do Presidente do E.C. Vitória que, em entrevista, confirmou que não aplicou o valor que a CBF repassara ao clube visando lastrear custos com o futebol feminino, alegando que o dinheiro pertencia ao clube, portanto, dentro da sua autonomia, poderia gastá-lo como bem quisesse. Disponível em: <https://www.metro1.com.br/noticias/esportes/93448,paulo-carneiro-se-irrita-ao-falar-de-verba-do-futebol-feminino-quem-manda-no-vitoria-sou-eu>. Acessado em 20 jul. 2020.

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