A gestão do futebol brasileiro na UTI

Por Germano Siqueira
Conselheiro do Ceará Sporting Club e Juiz do Trabalho

O futebol brasileiro deixou de ser apenas um traço festivo da cultura nacional para se tornar um negócio bilionário que movimenta vultosos recursos públicos e privados, cercado por interesses diversos.

O Flamengo, por exemplo, saltou de R$477 milhões em receita bruta em 2018 para R$1,194 bilhão em 2024. O Palmeiras também evoluiu, alcançando R$1,2 bilhão em 2024, impulsionado por premiações, vendas e acordos comerciais. Clubes intermediários demonstraram crescimento, como o Ceará Sporting Club, que  passou de uma receita de R$31 milhões em 2017 para uma projeção de R$230 milhões em 2025, e o Fortaleza Esporte Clube, que cresceu de  R$24 milhões em 2017 para R$387 milhões neste ano de 2025.

Com o agigantamento desse mercado, o legislador brasileiro buscou avançar na modelagem jurídico-institucional desse segmento aprovando a Lei Geral do Esporte, lei essa que  define princípios modernos de gestão, alguns deles extraídos do art.37, da CF, como transparência financeira e administrativa (publicidade),conformidade com as leis” (o mesmo que princípio da legalidade), moralidade (transcrição literal do princípio constitucional) e da responsabilidade dos dirigentes esportivos, inclusive criminalizando pioneiramente a corrupção privada na administração esportiva (art. 165).

A Lei também veda repasses de recursos públicos a entidades cujos dirigentes ultrapassem dois mandatos consecutivos de quatro anos (art. 18-A, III, da Lei Pelé e art.36,IV, da LGE) , buscando reforçar o caráter de gestão profissional, democrática e transparente, compatível com o seu alto interesse social.

Apesar desses avanços, a estrutura administrativa do futebol brasileiro permanece dominada por práticas arcaicas, com pouca transparência e ausência de responsabilização de dirigentes que descumprem as regras éticas de gestão previstas em lei e até mesmo nos estatutos de clubes e federações.

Além de alguns clubes que insistem em desprezar as regras de transparência e moralidade, a grande maioria das federações estaduais segue na mesma toada e continuam imersas em completa opacidade. Poucas divulgam informações financeiras, sendo uma das exceções a Federação Paulista de Futebol, que registrou quase R$90 milhões de receitas em 2023 ao passo que a Confederação Brasileira de Futebol (CBF) arrecadou R$1,314 bilhão naquele mesmo ano, mesmo assim possuindo mais de R$2 milhões em dívidas protestadas em cartório, reflexo da  desordem institucional que se abate sobre ela.

A Federação Cearense de Futebol é outro exemplo de anacronismo, sendo comandada por membros da mesma família há décadas. Mauro Carmélio, atual presidente,  está no quinto mandato consecutivo, que vai até 2029, totalizando 20 anos de poder. Antes dele, o seu tio, Fares Lopes,  dirigiu a instituição entre 1993 e 2004.

O mesmo padrão se repete em federações como a paulista e a do Rio de Janeiro, que tiveram pouquíssimos presidentes ao longo de mais de 30 anos. A FPF foi presidida por  Eduardo Farah (1988 a 2003​), Marco Polo Del Nero ( 2003 a 2015​) e Reinaldo Carneiro Bastos, este último de  2015 até o presente momento, enquanto a FERJ foi comandada  por Eduardo Viana (1985–2006) e Rubens Lopes da Costa Filho, que assumiu a presidência em 2007 e permanece no cargo até hoje.

A CBF, nesses mesmos trinta anos passados, foi presidida por Ricardo Teixeira de 1989 a 2012, sendo que ele e os seus sucessores foram envolvidos em graves escândalos de corrupção, principalmente no contexto do FIFA Gate. Ricardo Teixeira  foi indiciado nos EUA e denunciado no Brasil por corrupção, lavagem de dinheiro e evasão de divisas, mas nunca foi extraditado. José Maria Marin foi preso na Suíça, em 2015, extraditado, condenado nos EUA a quatro anos de prisão por corrupção, cumprindo parte da pena. Marco Polo Del Nero também foi indiciado nos EUA e banido do futebol pela FIFA, mas evitou a prisão ao não sair do Brasil. Rogério Caboclo, embora não envolvido no FIFA Gate, foi afastado por denúncias de assédio moral e sexual. Já Ednaldo Rodrigues não responde a processos criminais, embora tenha enfrentado questionamentos jurídicos sobre sua eleição, posteriormente revertidos pelo STF.

E mesmo assim, com violação clara e expressa da lei, clubes, federações e a CBF continuam a receber indevidamente recursos e incentivos públicos, sem nenhuma fiscalização.

Essa perpetuação no poder compromete a renovação administrativa e, por outro lado, favorece práticas ilícitas de blindagem interna. Um exemplo simbólico desse cenário foi a recente desistência de Ronaldo Nazário de concorrer à presidência da CBF. Segundo ele, 23 das 27 federações simplesmente se recusaram a sequer ouvi-lo, evidenciando a concentração de poder nas mãos de dirigentes comprometidos com a manutenção do status quo. Coincidentemente, às vésperas da eleição, a “mesada” paga pela CBF a presidentes de federação saltou de R$50 mil para R$215 mil, com benefícios como “décimo sexto salário”, conforme noticiado pela revista Piauí, apontando para sérios indícios de compra de votos.

Segundo a mesma matéria, a farra institucional também se expressa em abusos como viagens luxuosas bancadas pela CBF a amigos e políticos durante a Copa do Catar, com passagens em classe executiva e gastos abusivos em cartões corporativos, além  apontar para a possibilidade de tráfico de influência, inclusive em relação a integrantes do Judiciário, completando um balaio de distúrbios que merece ser apurado com rigor.

Enquanto isso, jornalistas que repercutiram essas críticas, como Dimas Coppede, Gian Oddi, Paulo Calçade, Pedro Ivo Almeida, Victor Birner e William Tavares, foram suspensos por um dia , pela ESPN , em caso evidente de censura que pode ter decorrido de reclamações da CBF junto àquela empresa jornalística.

As críticas sobre a frouxidão fiscalizatória e sobre a integridade do mercado brasileiro partem também de André Cury, agente de jogadores, que declarou em matéria do site Globo Esporte ter R$200 milhões a receber de clubes como Corinthians, São Paulo e Atlético-MG, criticando o amadorismo e a irresponsabilidade dos dirigentes. Comparando com a Europa, destacou que lá, mesmo existindo clubes associativos como Real Madrid e Barcelona, há normas rígidas que imputam responsabilidade patrimonial pessoal aos dirigentes.

Ao contrário do que afirma André Cury, entretanto, o Brasil  tem um marco regulatório que possibilita responsabilização efetiva dos dirigentes mas,  na prática, essas regras são raramente aplicadas, em parte pela ineficiência e omissão da Autoridade Pública de Governança de Futebol (APFUT), agência ineficiente liderada por um ex-atleta sem formação específica em gestão esportiva, e em outra medida porque, internamente, assembleias dos clubes e federações, que deveriam exercer controle rigoroso, inclusive afastando dirigentes por atos temerários ou fraudulentos, são geralmente omissas e permissivas , algumas até mesmo irregularmente constituídas e conduzidas.

Externamente, o Ministério Público limita suas ações a questões periféricas, como violência de torcidas, negligenciando o núcleo do problema, que é a má gestão institucionalizada e os possíveis desvios de conduta dos dirigentes esportivos.

Nesse cenário, a perpetuação de dirigentes quase vitalícios,a ausência de prestação de contas adequada, descumprimento de regras de conformidade e moralidade, de escândalos financeiros e a negligência das instituições públicas, acabam construindo um sistema que favorece o clientelismo, a impunidade, os desvios morais tendo como resultado  a decadência do futebol brasileiro no cenário internacional, evidenciada pelos fracassos em seguidas Copas do Mundo e em competições mundiais interclubes.

Enquanto houver omissão institucional e permissividade, o futebol brasileiro, apesar do seu potencial econômico e técnico, continuará distante de alcançar novas conquistas esportivas e o que deveria ser  motivo de orgulho do povo brasileiro permanecerá refém de uma estrutura corrupta e retrógrada, restando como único caminho a mudança dos padrões de fiscalização interna e externa da gestão esportiva o que não é apenas desejável , mas urgente e inadiável, em nome do interesse público e do resgate do futebol brasileiro.

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