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A lei de incentivo fiscal e a sociedade anônima do futebol

Após inúmeros debates em sua relatoria o Projeto de Lei n° 5.516/2019 foi enviado para sanção presidencial, ocorrida em 6 de agosto de 2021, dando origem a Lei n° 14.193/2021 (Lei da SAF – Sociedade Anônima do Futebol) com vetos a determinados dispositivos. Cumpre destacar que entre esses estava o artigo 30 caput e seu parágrafo único com a seguinte redação:

Art. 30. É autorizado à Sociedade Anônima do Futebol e ao clube ou pessoa jurídica original captar recursos incentivados em todas as esferas de governo, inclusive os provenientes da Lei nº 11.438 de 29 de dezembro de 2006.

Parágrafo único: Os recursos na forma do caput deste artigo poderão ser empregados para o pagamento de dívidas trabalhistas, para entidades cuja receita bruta anual esteja limitada ao montante definido no art.7ºdesta Lei.

A Mensagem de veto nº 388 ao PL que instituiu a SAF afirmava, em suma, que a sanção aos respectivos dispositivos não poderia ocorrer porque acarretaria renúncia de receita assim como negativo impacto orçamentário e financeiro. Dessa forma, erigiam-se as suas respectivas disposições como verdadeiras violações a dispositivos legais constantes no Ato das Disposições Constitucionais Transitórias (ADCT), da Lei de Responsabilidade Fiscal (LRF) e da Lei de Diretrizes Orçamentárias de 2021 (LDO).

 

A propositura legislativa estabelece que seria autorizado à Sociedade Anônima do Futebol e ao clube ou à pessoa jurídica original captar recursos incentivados em todas as esferas de governo, inclusive os dispostos na Lei nº 11.438, de 29 de dezembro de 2006.

Entretanto, embora a boa intenção do legislador, a medida  acarretaria em renúncia de receita, sem o cancelamento equivalente de outra despesa obrigatória e sem que estivesse acompanhada de estimativa do seu impacto orçamentário e financeiro, em violação ao disposto no art. 113 do Ato das Disposições Constitucionais Transitórias, além de que contrariaria o disposto no art. 14 da Lei Complementar nº 101, de 4 de maio de 2000 – Lei de Responsabilidade Fiscal, e nos art. 125, art. 126 e art. 137 da Lei nº 14.116, de 31 de dezembro de 2020 – Lei de Diretrizes Orçamentárias 2021.

Ademais, o dispositivo da forma como proposto também contraria o interesse público, pois geraria insegurança jurídica, tendo em vista que sua redação é vaga ao admitir que a Sociedade Anônima do Futebol e as demais entidades relacionadas no referido dispositivo poderiam ‘captar recursos incentivados em todas as esferas e governo’, de forma que seu alcance seria de difícil compreensão. O Congresso Nacional no uso de sua competência legislativa concedida pela Constituição Federal de 1988, precisamente em seu Artigo 66, §4, por maioria dos votos derrubou parcialmente alguns vetos, mantendo no texto da Lei 14.193/2021 o artigo 30 caput em sua integralidade.

Após a derrubada parcial dos vetos, em 27 de setembro de 2021, o artigo 30 da Lei n° 14.193/2021 passou a vigorar com a seguinte redação: “Art. 30. É autorizado à Sociedade Anônima do Futebol e ao clube ou pessoa jurídica original captar recursos incentivados em todas as esferas de governo, inclusive os provenientes da Lei nº 11.438 de 29 de dezembro de 2006”. Nestes termos, fica claro que a Sociedade Anônima do Futebol, Clubes (Associações civis sem fins lucrativos) e as Pessoas Jurídicas Originais (Clube-empresa) estão autorizados a captar recursos provenientes da Lei n° 11.438/2006.

Embora tenhamos expressamente na Lei da SAF a possibilidade de os clubes assim constituídos aproveitar as benesses fiscais da Lei n° 11.438/2006, fato é que o referido diploma legal estabelece em seu artigo 3º, inciso V, que para fins desta lei considera-se proponente a pessoa jurídica de direito público ou de direito privado com fins não-econômicos de natureza esportiva.

Por algum tempo arrastou-se um debate se os clubes constituídos sob modelo Associativo exerciam atividade econômica ou não, muito desse imbróglio se deu por conta das isenções tributárias experimentadas. Acredito ser fato inequívoco que a referida controvérsia jamais seria objeto de discussão em relação aos clubes quando constituídos como sociedade empresária, seja através do já posto Clube-empresa ou através da SAF – modelo trazido recentemente pela Lei n° 14.193/2021.

No meu sentir, a redação mais técnica do artigo 3º, inciso V da Lei nº 11.438/2006, seria ter cunhada a expressão “sem fins lucrativos”. De todo modo, a nomenclatura fica em segundo plano, pois em nada teria o condão de ajudar os clubes de futebol constituídos como Sociedade Anônima, pelo contrário, tornaria impossível o clube constituído como Sociedade Anônima fazer uso da Lei n° 11.438/2006, visto que inexistiriam argumentos para sustentar que uma SAF possa exercer atividade sem fins lucrativos.

Vale ressaltar que atividade com fins não-econômicos em nada se confunde com atividade sem fins lucrativos. Em meu entendimento, todos os clubes exercem atividade econômica, independentemente do modelo constituído, a diferença reside se exercem atividade econômica com ou sem fins lucrativos. Para ilustrar, temos o caso do Clube de Regatas do Flamengo, constituído no modelo associativo sem fins lucrativo com receita anual de aproximadamente 1 bilhão de reais, como dizer que este clube com receita extremamente vultosa não exerce atividade econômica, em verdade, vejo tal retórica no mínimo como falaciosa.

Desse modo, nada mais justo que tal prerrogativa fiscal mais benéfica seja usufruída pelos clubes constituídos como Sociedade Anônima, por alguns motivos: a) pela literalidade trazida no artigo 30 da Lei n° 14.193/2021; b) por uma questão de isonomia em relação ao tratamento dado aos clubes associativos; c) por entender que o aproveitamento da Lei n° 11.438/2006 teria o condão de reafirmar o relevante papel social que os clubes de futebol possuem independente do modelo de sua constituição, bem como externar de forma prática a função social que toda sociedade empresária ou não precisa demonstrar.

Aliado a todos estes argumentos, temos ainda o disposto no §4º do Artigo 1º da Lei n°  14.193/2021, estabelecendo de forma expressa que a Sociedade Anônima do Futebol para fins da Lei Pelé considera-se uma entidade de prática desportiva, “§ 4º. Para os efeitos da Lei nº 9.615, de 24 de março de 1998, a Sociedade Anônima do Futebol é uma entidade de prática desportiva”.

Tal definição possui grande relevância, visto que a SAF entendida com tal integra o Sistema Nacional do Desporto (SND), sendo condição primordial para figurar como beneficiária de isenções e repasses de recursos públicos federais da Administração Direta e Indireta, nos termos do artigo 18 da Lei n° 9.615/1998 c/c com o disposto no inciso II do Artigo 217 da Constituição Federal de 1988.

Art. 18. Somente serão beneficiadas com isenções fiscais e repasses de recursos públicos federais da administração direta e indireta, nos termos do inciso II do art. 217 da Constituição Federal, as entidades do Sistema Nacional do Desporto que:

I – possuírem viabilidade e autonomia financeiras;

III – atendam aos demais requisitos estabelecidos em lei;

IV – estiverem em situação regular com suas obrigações fiscais e trabalhistas;

V – demonstrem compatibilidade entre as ações desenvolvidas para a melhoria das respectivas modalidades desportivas e o Plano Nacional do Desporto.

Parágrafo único.  A verificação do cumprimento das exigências contidas nos incisos I a V deste artigo será de responsabilidade do Ministério do Esporte.

Art. 217. É dever do Estado fomentar práticas desportivas formais e não-formais, como direito de cada um, observados:

II – a destinação de recursos públicos para a promoção prioritária do desporto educacional e, em casos específicos, para a do desporto de alto rendimento;

Assim, se o meu entendimento prevalecer e os clubes de futebol constituídos como Sociedade Anônima aproveitarão das benesses da Lei de Incentivo ao Esporte (Lei n° 11.438/2006) somente o tempo dirá. Importante frisar que ao entender pela não aplicabilidade da referida lei em prol dos clubes SAF, certamente, perderá a sociedade com um todo, haja vista que a grande maioria dos clubes associativos sequer fazem uso da lei de forma significativa, isso por conta de não preencher os requisitos objetivos trazidos como condicionantes para gozo da respectiva benesse, resultado das velhas práticas que a Lei da SAF visa instituir em nosso futebol de forma contrária.

 

 

 

REFERÊNCIAS

BRASIL. Constituição (1988). Constituição da República Federativa do Brasil de 1988. Brasília, DF: Presidência da República, 2021. Disponível em: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/constituicao/constituicao.htm. Acesso em 27 de jan. de 2022.

BRASIL. Presidência da República. Mensagem nº 388, de 9 de julho de 2020. Comunico a Vossa Excelência que, nos termos previstos no § 1º do art. 66 da Constituição, decidi vetar parcialmente, por contrariedade ao interesse público e inconstitucionalidade, o Projeto de Lei nº 5.516, de 2019, que “Institui a Sociedade Anônima do Futebol e dispõe sobre normas de constituição, governança, controle e transparência, meios de financiamento da atividade futebolística, tratamento dos passivos das entidades de práticas desportivas e regime tributário específico; e altera as Lei nº 9.615, de 24 de março de 1998, e Lei nº 10.406, de 10 de janeiro de 2002 (Código Civil)”. Disponível em: https://www2.camara.leg.br/legin/fed/lei/2021/lei-14193-6-agosto-2021-791635-veto-163271-pl.html. Acesso em 27 de jan. de 2022.

BRASIL. Senado Federal. Projeto de Lei n° 5.516, de 2019. Cria o Sistema do Futebol Brasileiro, mediante tipificação da Sociedade Anônima do Futebol, estabelecimento de normas de governança, controle e transparência, instituição de meios de financiamento da atividade futebolística e previsão de um sistema tributário transitório. Brasília, DF: Senado Federal, 2019. Disponível em: https://www25.senado.leg.br/web/atividade/materias/-/materia/139338. Acesso em 27 de jan. de 2022.

BRASIL. Lei nº 9.615, de 24 de março de 1998. Institui normas gerais sobre desporto e dá outras providências. Disponível em: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/l9615consol.htm. Acesso em: Acesso em 27 de jan. de 2022.

BRASIL. Lei nº 11.438, de 29 de dezembro de 2006. Dispõe sobre incentivos e benefícios para fomentar as atividades de caráter desportivo e dá outras providências. Disponível em: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_ato2004-2006/2006/lei/l11438.htm. Acesso em: 27 de jan. de 2022.

BRASIL. Lei nº 14.193, de 6 de agosto de 2021. Institui a Sociedade Anônima do Futebol e dispõe sobre normas de constituição, governança, controle e transparência, meios de financiamento da atividade futebolística, tratamento dos passivos das entidades de práticas desportivas e regime tributário específico; e altera as Leis nºs 9.615, de 24 de março de 1998, e 10.406, de 10 de janeiro de 2002 (Código Civil). Disponível em: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_Ato2019-2022/2021/Lei/L14193.htm. Acesso em: 27 de jan. de 2022.

CASTRO, R. R. M. Comentários à lei da SOCIEDADE ANÔNIMA DO FUTEBOL – LEI N° 14.193/2021. São Paulo: Editora Quartier Latin do Brasil, 2021.

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