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A normalização do absurdo

Por Renato Gueudeville

“Não há nada de tão absurdo que o hábito não torne aceitável.”

Cícero – Filósofo Romano

O momento mais perigoso na vida de um ser humano é quando ele perde a capacidade de se indignar.

Nós vivemos em uma época em que somos bombardeados diariamente de fatos, notícias, ideias, discussões. Material farto de boas coisas e farto também de muita notícia ruim.

Se morrem 41 mil brasileiros em 2021 por assassinato, essa é uma notícia que não nos aflige.

Em 2019 registramos um feminicídio a cada 7 horas no Brasil. Um a cada quatro assassinatos de pessoas trans no mundo é cometido no nosso país. Nada disso tira o nosso sono.

O Monitor da Violência, parceria do Fórum Brasileiro de Segurança Pública com o portal G1, faz o acompanhamento mensal dos homicídios, latrocínios e lesões corporais no país. Abaixo, o infográfico nos traz o painel do ano passado.

O mapa acima retrata a predominância nos altos índices em regiões mais pobres do país. A taxa média no mundo está em torno de 6 homicídios para cada 100 mil pessoas e nos países desenvolvidos esses índices são menores do que 2 homicídios.

Na última quinta-feira (24/02), o ônibus do Bahia sofreu um atentado quando o time seguia para Arena Fonte Nova para o jogo contra o Sampaio Correia, pela Copa do Nordeste. Uma bomba explodiu, de um total de três que foram lançadas em direção ao veículo. Dois atletas ficaram feridos. O goleiro, Danilo Fernandes, teve diversos ferimentos pelo corpo, alguns inclusive, próximos aos olhos. Um carro, conduzido por uma mulher, também foi atingido danificando boa parte da lateral.

Um dia depois, a delegação do Náutico passou por sérios problemas quando desembarcava em Recife, após a eliminação da Copa do Brasil. A torcida organizada foi para lá com as intenções habituais desses grupos após resultados em campo ruins: agredir, agredir e agredir.

Vivemos uma época em que essa notícia repercute por 2 ou 3 dias e depois morrerá no “Cemitério das notícias graves que não abalam mais ninguém”.

É inevitável que teremos marginais em todas as torcidas brasileiras. Eles estão em todos os segmentos da sociedade, levando dinheiro de gente honesta com arma em punho ou com colarinho branco. A pergunta é: o que faremos para punir definitivamente esses atos?

Todo clube de futebol no Brasil convive com tais ameaças. Jogadores, comissões técnicas, dirigentes, funcionários, seguranças … todos esses personagens já viveram o absurdo de ser constrangido, ameaçado e violentado em algum momento das suas carreiras. Experimente colocar no Google a frase torcedores ameaçam jogadores e constate o amplo leque de situações em todos os clubes brasileiros.

Não precisa ir muito longe para lembrar de setembro de 2020, onde torcidas organizadas do Corinthians protagonizaram cenas terríveis com os jogadores e demais funcionários do clube, no desembarque em Guarulhos. Gritaria, empurrões, dedos em riste. Cássio, um dos maiores ídolos da história do clube, foi um dos mais agredidos.

Flamengo perdeu a Supercopa para o Atlético Mg no último domingo e lá estava um grupinho de uma das principais organizadas do clube, esperando no aeroporto. O elenco precisou sair por um acesso alternativo.

Alguns deles já vivem até com maior frequência, coisa de 2 vezes por ano, a depender de como seu time está indo na temporada. O Bahia teve seu CT invadido há pouco mais de 1 mês atrás por integrantes da maior torcida organizada do clube. Mesmo roteiro: gritaria, dedos em riste e ameaças a jogadores e diretoria do clube.

O que leva a essa massa de marginais a afrontar todo um sistema dessa forma?

A primeira causa que nos leva à reflexão é sempre a impunidade. Se o sistema não pune, ele é retroalimentado. Não há barreiras e o comportamento de manada (alguns desses são mais primitivos do que muito gado) segue sua toada. A mesma impunidade que faz ­­com que o crime compense no colarinho branco e no marginal de arma em punho.

Onde estão as autoridades policiais que não conseguem desenvolver um trabalho preventivo de inteligência na identificação desses indivíduos? Já possuímos tecnologia de reconhecimento facial que poderá ser utilizada como ferramenta importante nesse combate, câmeras de vigilância cada vez mais espalhadas por todas as cidades, seguranças privadas dos estádios.

Onde está a Lei para que casos como esses sejam levados a Júri e a consequente proibição deles entrarem em estádios no país pelo resto da vida? Aliás, uma lista de gente desse tipo deveria ter compartilhamento internacional, uma espécie de Lista da Interpol do Futebol. Alguém esqueceu de Oruru, quando alguns torcedores do Corinthians soltaram um sinalizador e mataram um adolescente boliviano de 14 anos?  Torcedores como esses deveriam ser banidos do futebol para sempre.

Agora vamos um pouco mais a fundo na questão. Quantas pessoas que você conhece (portanto, do seu ambiente de amizades) defendem que os jogadores recebam esse tipo de pressão quando seu clube está mal? Conheço vários. Os argumentos são os mais desprezíveis possíveis e turbinados muitas vezes por certos tipos de influenciadores e de veículos de mídia que precisam do “quanto pior, melhor”, “quanto mais sangue, mais vampiro”.

E o sistema (jogadores, agentes, técnicos, clubes, federações e confederações) o que tem feito? Quando esses players se reuniram na mesa e discutiram seriamente o que fazer para combater a violência no futebol?

Talvez seja querer demais. O futebol por essas bandas nunca foi tratado como um produto. Ninguém despreza seu produto a ponto de deixar a marginalidade expulsar cada vez mais famílias de dentro dos estádios. Os clássicos já são de torcida única, pois é mais fácil proibir do que construir soluções perenes em que cada ator faça a sua parte.

Nós precisamos acabar também com aquele discurso do tipo: “não é torcedor, é um bandido”. Errado! É torcedor e é bandido. Ou encaramos esse fato de forma séria (tratando delinquente como delinquente, mas entendendo que eles estão presentes, sim, em todas as camadas), ou vamos perder o foco da solução.

O futebol não é uma ilha. Ele é um pouco do melhor e do pior de cada um de nós.

Vamos esperar acontecer alguma tragédia para que as providências sérias e contundentes sejam tomadas? Lembrem: esse é um país que vem banalizando, todos os dias, as mais diversas apresentações da violência. Não contem com a indignação traumática e breve das tragédias para que as providências sejam tomadas. Não neste país.

Os vácuos deixados pelos donos do produto estão abertos. O mesmo vácuo que permitiu que dirigentes inescrupulosos habitassem o futebol brasileiro durante décadas, é ele mesmo que permite a banalização da violência no futebol. E natureza não aceita vácuo. Os bandidos estão ocupando espaço e tirando as pessoas de bem do espetáculo.

No momento em que eu escrevo esse artigo, chegam três notícias:  a primeira é que o ônibus do Grêmio foi apedrejado há poucos instantes por torcedores do Inter na chegada do Beira Rio. Alguns jogadores atingidos, inclusive o volante Villasanti sendo levado ao hospital com ferimentos no rosto, pescoço e pernas. Foi constatado um traumatismo craniano e uma concussão cerebral.

A segunda é que alguns torcedores do Paraná invadiram o campo, aos 41 minutos do 2º tempo, para agredir os jogadores, após a derrota do time para o União Beltrão pelo campeonato paranaense. A polícia precisou expulsar os invasores do gramado.

A terceira é que um ônibus do Cascavel foi apedrejado após o time perder o jogo contra o Maringá pelo mesmo campeonato.

Todos os eventos acima no mesmo dia, em intervalo de horas. Nós já estamos perdendo esse jogo.

São somente mais algumas notícias graves que serão enterradas em algumas horas naquele cemitério mencionado anteriormente.

A barbárie está em campo, dentro dos nossos “Coliseus”, e todos nós continuamos pedindo pão e circo.

Crédito imagem: Felipe Oliveira/Bahia

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Renato Gueudeville é administrador de empresas com MBA em Finanças Corporativas, conselheiro consultivo, gestor com conhecimento em reestruturação empresarial e atuação pelas principais instituições financeiras do país. Acredita que no mundo da bola, fora da gestão não há salvação. É sócio do Futebol S/A.

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