Quando se estuda a política nos sistemas esportivos de qualquer modalidade, é possível observar que a origem do próprio esporte influencia diretamente na dinâmica de poder dessas instituições.
Neste artigo serão abordados, de forma simplificada, a origem do poder nas formas como o esporte se organiza no mundo e como o fato do jogo eletrônico ter um dono impacta a dinâmica de poder no esporte eletrônico, especialmente na perspectiva do atleta.
No modelo europeu-continental
Nos esportes que seguem o modelo europeu-continental, tradicionalmente associativo-federativo por ter origem nas associações de classe na Europa pós revolução industrial.
A base do esporte europeu, cujo modelo se perpetua até hoje no sistema encabeçado pelo Comitê Olímpico Internacional, é o indivíduo-atleta que conjugou esforços com seus semelhantes a fim de formar associações para que a prática desportiva fosse melhor organizada, sempre com a finalidade de .
Como a base do sistema é o indivíduo-atleta, é também dele que o poder do modelo europeu-continental emana, contudo é possível observar através dos constantes escândalos de corrupção que essa lógica foi subvertida.
Alguns autores já utilizam o termo “déficit democrático” para descrever a usurpação do poder por agentes que priorizam o capital e/ou um projeto de poder pessoal em detrimento dos interesses do indivíduo base do sistema.
Como resposta aos escândalos, houveram alterações na estrutura associativa para que fossem melhor desenvolvidas ações de governança, compliance e accountability, mas que ainda estão longe de garantir ao indivíduo que seus interesses serão privilegiados.
Não ajuda o fato de que as Federações Internacionais reconhecidas pelo Comitê Olímpico Internacional possuem pouquíssima ou nenhuma concorrência, sendo evidente que sempre que se cogita a criação de alguma organização esportiva paralela, ela é rápida e violentamente rechaçada.
Por exemplo, resta claro que a FIFA exerce um monopólio – ou algo muito próximo disso – no futebol de rendimento em nível global e não há dúvidas de que ela concentra em suas mãos a maior parte do poder nesse sistema, ainda que alguns movimentos como a criação de uma superliga por times europeus descontentes com a forma que é gerida a modalidade emerjam de tempos em tempos.
No modelo norte-americano
O esporte na América do Norte se desenvolveu de maneira bastante diferente do resto do mundo e por isso possui uma dinâmica de poder muito diferente daquela observada no sistema esportivo encabeçado pelo Comitê Olímpico Internacional.
No norte do novo continente, pela noção de propriedade e de capital muito própria da região, a profissionalização dos times esportivos norte-americanos foi iniciativa de pessoas com intuito de empreender. Por isso times não são associações, mas uma pessoa jurídica com dono muito bem definido.
Os donos dos times entenderam que poderiam se unir para criar ligas e competições que favorecessem o espetáculo esportivo, e assim o fizeram.
Nesse contexto, resta claro que o atleta possui pouco ou nenhum poder na origem desse sistema esporte, vez que sempre se tratou de um empregado dos clubes e/ou liga. Ocorre que, posteriormente, os atletas se organizaram em associações próprias a fim de negociar coletivamente os seus direitos e o limite do poder dos clubes e ligas, especialmente do commissioner.
Hoje, a importância dos “Collective Bargain Agreement” para as ligas é muito relevante, pois além de ser capaz de manter a maior parte dos conflitos do sistema dentro de sua própria bolha, também garante que os interesses dos atletas sejam privilegiados.
A título de comparação, enquanto que na FIFA vários atletas que se manifestaram quanto ao movimento Black Lives Matter foram punidos, na NBA os jogadores de basquete foram capazes de se manifestar, inclusive suspendendo alguns jogos naquele período.
Evidente que o atleta nunca teve direitos de tomar decisões garantidas por estatutos ou regulamentos e que a concentração do poder nesse modelo está nas mãos dos clubes que constituem ligas. Contudo, a organização dos atletas em associações e a crescente percepção de que o atleta é parte importante do sistema e do negócio, fez com que conquistassem o poder necessário para conquistar os seus interesses.
Nos esportes-propriedade
Nos esportes que têm como base um jogo que é propriedade intelectual/industrial de alguém, como os jogos eletrônicos, ou que os métodos do jogo sejam de alguma forma patenteados, como acontece no Crossfit, essa propriedade dá às entidades de administração do desporto o poder no sistema.
Não apenas isso, mas também revoluciona a própria origem do desporto. Antes, os jogos tinham origem no folclore ou cultura de um povo e cabia aos indivíduos de alguma forma organizar melhor e – se for o caso – profissionalizar a prática do jogo competitivo.
Nos esportes-propriedades, de forma mais evidente nos esportes eletrônicos, muitas vezes a organização e profissionalização foi planejada antes mesmo de qualquer jogador-consumidor ter acesso ao jogo. É o caso do Valorant, projetado pela Riot Games desde o dia 0 de sua criação para ser um concorrente direto do Counter-Strike no mercado esportivo eletrônico.
Enquanto o poder no sistema europeu-continental se funda no indivíduo-atleta; no norte-americado, ele se funda nos clubes (entidades de prática desportiva; e no esporte-propriedade ele se funda nas entidades de prática do desporto.
Essa nova dinâmica e a forma como ela afeta as relações jurídicas do desporto ainda estão sendo observadas e estudadas, no entanto fica claro que o atleta possui agora uma dupla vulnerabilidade, pois aos olhos das entidades de administração, o atleta pode ser entendido como um instrumento para seus planos de enriquecimento; e aos olhos da entidade de prática, o atleta permanece como um empregado, categoria historicamente hipossuficiente.
Novas dinâmicas podem se aproveitar de velhas estratégias: a organização dos atletas em entidade representativa para que possam negociar coletivamente é pivotal para que o indivíduo-atleta tenha chances de fazer valer seus direitos e interesses nesse sistema.
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