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A proibição do TPO no futebol e o Direito da União Europeia

Por Pedro Henrique Mendonça

1. O TPO e sua proibição

A sigla TPO, tão comumente utilizada no futebol, significa “third-party ownership”; em tradução livre, remete à propriedade, por um terceiro, de direitos econômicos vinculados a determinado jogador. Cuidava-se de um dos principais mecanismos de investimento no futebol, bem como de importante artifício utilizado por clubes para reforçar o elenco. O uso do verbo no pretérito perfeito não é por acaso: desde 2015, essa prática é proibida pela FIFA.

A vedação ao TPO vem na esteira de uma preocupação de longa data da FIFA quanto à influência de terceiros na tomada de decisões relacionadas a transferências de jogadores. Já em 2007, o Regulamento de Status e Transferência de Jogadores (no original, Regulations on the Status and Transfer of Players – RSTP) passou a contar com o artigo 18bis, que proíbe clubes de celebrar contratos que permitam a terceiros o exercício de qualquer tipo de influência que afete a independência dos próprios clubes. Em outras palavras, esse dispositivo visa impedir que quaisquer pessoas além do atleta e do(s) clube(s) envolvido(s) no negócio jurídico possam interferir na sua celebração.

Essa regra não proibia, no entanto, a prática do TPO – evidentemente, desde que o terceiro, detentor dos direitos econômicos vinculados ao jogador, não interviesse nas decisões de clube e atleta quanto a possíveis transações. Esse foi o contexto em que a FIFA criou o artigo 18ter do RSTP, o qual veda expressamente que qualquer clube ou atleta celebre contrato com um terceiro por meio do qual esse terceiro adquira o direito de receber, total ou parcialmente, valores relacionados a transferências futuras de um jogador.

Ocorre que tanto o TPO quanto sua proibição, positivada pelo artigo 18ter, são temas muito controversos. De um lado, críticos do mecanismo aduzem que sua prática efetivamente gerava influência indevida de terceiros sobre transferências, bem como afetava o desenvolvimento sustentável dos clubes¹. Sob outro prisma, defensores do TPO argumentam que sua vedação é injustificada² e reduz a capacidade de diversos clubes de atrair e reter talentos (especialmente em países em que o mecanismo era utilizado em larga escala, como Brasil³, Portugal, Espanha, Grécia, Holanda e Turquia)⁴, culminando no aumento da disparidade entre clubes e ligas no globalizado mercado do futebol⁵.

Além desses aspectos práticos, a vedação ao TPO também trouxe à baila discussões jurídicas. Nesse âmbito, talvez a principal controvérsia diga respeito à compatibilidade do artigo 18ter com o Direito da União Europeia (UE) – fator que já ensejou importantes alterações em normas da própria FIFA e que encontra no Caso Bosman seu mais famoso exemplo. E o principal caso acerca do tema foi levado à apreciação da Corte Arbitral do Esporte (CAS): após ser punido pela Comissão Disciplinar da FIFA com fulcro nos artigos 18bis e 18ter do RSTF, o clube belga RFC Seraing apelou⁶ à CAS, aduzindo a ilegalidade da proibição ao TPO em função de sua incompatibilidade em relação a liberdades fundamentais da UE.

2. As liberdades fundamentais da UE

O Tratado sobre o Funcionamento da União Europeia (TFUE) estabelece as quatro liberdades fundamentais a serem observadas naquela região: (i) livre circulação dos trabalhadores (artigos 45 a 48); (ii) liberdade de estabelecimento (artigos 49 a 55); (iii) livre prestação de serviços (artigos 56 a 62); e (iv) livre circulação de capital (artigos 63 a 66).

O RFC Seraing alegou que três delas foram afrontadas pela proibição do TPO (sendo a liberdade de estabelecimento a única exceção), e que as razões apresentadas pela FIFA para a criação do artigo 18ter não refletiam nenhum interesse público legítimo que pudesse justificar a restrição a tais liberdades. Em acréscimo a isso, o clube aduziu que, ainda que os interesses arguidos pela FIFA fossem legítimos, a vedação ao TPO não seria medida razoável e proporcional para alcançá-los. Por conseguinte, seria inadmissível a limitação imposta às liberdades de circulação dos trabalhadores, de prestação de serviços e de circulação de capital.

A FIFA, por sua vez, rechaçou qualquer incompatibilidade entre a norma e as liberdades fundamentais da UE. Nesse sentido, indicou que eventuais restrições à livre circulação dos trabalhadores ou à liberdade de prestação de serviços seriam meramente indiretas, e complementou que não haveria nenhuma limitação à livre circulação de capital, uma vez que a proibição do TPO não impede outros tipos de investimento por terceiros no futebol.

Ainda em sua defesa, a FIFA listou os objetivos que teria buscado alcançar com a criação do artigo 18ter:
(i) preservar a estabilidade dos contratos de trabalho dos atletas;
(ii) assegurar a autonomia dos clubes e dos jogadores em relação às transferências;
(iii) resguardar a integridade no futebol e nas competições;
(iv) evitar conflitos de interesse; e
(v) promover transparência em relação às transferências.

A Corte Arbitral inicialmente reconheceu que a vedação ao TPO efetivamente restringe liberdades fundamentais da UE. Não obstante, com base em precedentes do Tribunal de Justiça da União Europeia (TJUE), pugnou que tal restrição não necessariamente enseja a ilegalidade do dispositivo em discussão: a norma pode ser considerada válida desde que busque alcançar um objetivo legítimo e seja necessária e adequada para tanto.

Com base nesse entendimento firmado pelo TJUE, portanto, a CAS passou a examinar cada um dos objetivos elencados pela FIFA. E a conclusão foi favorável à Federação Internacional: os objetivos por ela alegados foram interpretados como legítimos, e o artigo 18ter considerado como adequado e necessário para alcançá-los. A decisão baseou-se na premissa de que o TPO gerava riscos ao futebol, tais como (i) a participação de investidores desconhecidos (referidos como “opacos”), que não podiam ser adequadamente controlados pelas entidades reguladoras do esporte; (ii) a ameaça à liberdade profissional dos atletas, que poderiam ser transferidos a partir de interesses puramente especulativos; (iii) conflitos de interesse e manipulação de resultados (match-fixing) em função de investimentos de uma mesma pessoa em mais de um clube na mesma competição; e (iv) o risco ético caso os interesses dos investidores sejam estritamente especulativos e desvinculados da natureza esportiva.

Portanto, assim como a própria proibição do TPO, a decisão proferida pela CAS também se revelou polêmica. E os pontos fulcrais da questão são justamente aqueles abordados pelo Tribunal Arbitral: os objetivos alegados pela FIFA são realmente legítimos? A proibição do TPO era realmente necessária e adequada para alcançá-los?

São essas as perguntas que buscaremos responder a seguir, analisando brevemente cada um dos cinco objetivos aduzidos pela FIFA como pilares do artigo 18ter.

3. Os objetivos da FIFA

3.1. A estabilidade dos contratos de trabalho dos atletas

Se a FIFA considerava que o TPO gerava qualquer tipo de instabilidade nos contratos de trabalho dos atletas, naturalmente seria de se esperar que sua proibição levasse a uma queda no número de transferências de jogadores. Destarte, de modo a verificar o real efeito do artigo 18ter nesse âmbito, vale analisar os dados fornecidos pela própria FIFA em seus relatórios anuais sobre transferências internacionais.

De acordo com o Relatório do Mercado de Transferências Global (no original, Global Transfer Market Report) de 2017⁷, em 2014 houve 13.156 transferências internacionais. No ano seguinte, cujo mês de maio marcou o início da vedação ao TPO, a quantidade aumentou para 13.601. Em 2016, chegou-se à marca de 14.591 transferências internacionais.

O mesmo relatório apresenta, ainda, dados interessantes sobre a natureza das transferências internacionais realizadas: em 2016, 66% delas envolveram jogadores sem contrato, ou seja, nelas não incidiu nenhum pagamento pela aquisição de direitos econômicos por um clube a outro; por outro lado, apenas 12% das transferências realizadas foram permanentes e envolvendo aquisição onerosa de direitos econômicos. Ademais, a comparação desses números com os dos anos anteriores revela que a proporção de transferências onerosas permanentes em 2016 (primeiro ano em que a proibição do TPO vigorou de janeiro a dezembro) foi superior à de 2015, e também acima da média observada entre 2010 e 2015.

Embora reflitam exclusivamente transferências internacionais, esses dados são evidentemente representativos da totalidade de transferências realizadas em todo o mundo, e nos levam a duas conclusões inevitáveis. Primeiramente, a vedação ao TPO não reduziu o número de transferências; ao contrário do que se poderia esperar, a quantidade aumentou. Por conseguinte, pode-se dizer que o artigo 18ter não gerou impacto positivo na estabilização dos contratos de trabalho dos atletas. Em segundo lugar, proibir o TPO não ensejou nenhuma alteração no perfil das transferências: as transferências “a custo zero” já correspondiam à maioria absoluta do total, e assim se mantiveram. Nesse sentido, é forçoso observar que, se o TPO eventualmente ensejava interferências nas decisões de clubes e atletas em função do desejo dos investidores em transferências lucrativas, os efeitos da criação do artigo 18ter estariam restritos a apenas cerca de 10% das transferências internacionais – isto é, aquelas que envolvem pagamentos em contraprestação à aquisição de direitos econômicos.

Portanto, não é razoável admitir que o TPO ameaçasse a estabilidade contratual em um mercado no qual mais de dois terços dos contratos de trabalho são executados até o fim de suas vigências (ou resolvidos por comum acordo entre as partes), e somente 12% das transferências podem ser eventualmente lucrativas para os detentores dos direitos econômicos dos atletas. Em outras palavras, resta cristalino que (i) a estabilidade dos contratos de trabalho dos atletas não é objetivo legítimo para a violação de liberdades fundamentais e que (ii), ainda que o fosse, a proibição do TPO não se afigura como medida adequada para resguardar e aprimorar tal estabilidade.

3.2. Independência e autonomia de clubes e atletas

Afirmar que o TPO fragilizava a independência e a autonomia de clubes e atletas ao decidir sobre uma transferência é, no mínimo, controverso. A nosso ver, essa conclusão parece ignorar alguns aspectos fundamentais do sistema de transferências vigente.

É imperioso ressaltar, de início, que a influência de terceiros em relação a transferências já era vedada pelo artigo 18bis desde 2007. Portanto, a vedação ao TPO revela-se desnecessária se o objetivo é meramente evitar esse tipo de influência – o que se ratifica pelo fato de que a própria FIFA já decidiu por aplicar sanções a diversos clubes com fulcro no artigo 18bis⁸.

Ademais, o sistema de transferências vigente requer o consentimento por escrito do atleta como condição sine qua non para a concretização de qualquer transferência. Essa regra básica deriva não apenas da Lex Sportiva, mas também usualmente das normas trabalhistas em vigor no país em que se celebra o contrato de trabalho. Destarte, suscitar dúvidas acerca da autonomia do jogador para escolher seu empregador implica em questionar (a nosso ver, indevidamente) (i) a natureza jurídica da relação estabelecida entre clube e atleta e (ii) o direito do atleta à livre circulação.

A argumentação esposada pela FIFA também peca ao se referir à independência dos clubes. Se um clube decide contratar com um terceiro, está exercendo de forma plena sua independência na condução de seus negócios; logo, quando um clube concorda em negociar direitos econômicos com investidores, presume-se que esse é o modelo que melhor atende aos interesses do próprio clube – sobretudo no que tange à formação de uma equipe competitiva. Ao contrário da premissa adotada pela FIFA, os clubes não eram “vítimas” dos investidores no mecanismo do TPO; eles eram parceiros. Nesse sentido, resta claro que a possibilidade de eleger o modelo mais adequado de contratar jogadores (seja via TPO, seja de outra forma) tratava-se de inequívoca demonstração da autonomia dos clubes em sua administração, em conformidade com sua situação financeira e com a conjuntura econômica da liga e do país em que estão inseridos.

Por todo o exposto, o objetivo alegado pela FIFA de preservação da independência e da autonomia de clubes e atletas revela-se infundado e ilegítimo, remanescendo injustificada a violação às liberdades fundamentais da EU.

3.3. A integridade no futebol e nas competições

Não há dúvidas de que a integridade é fundamental ao esporte. Afinal, trata-se de elemento indispensável à manutenção de um de seus valores essenciais: a incerteza dos resultados. Não se discute, portanto, a importância da preservação da integridade; não obstante, cabe a dúvida: em tempos de manipulações de resultados e tantas outras denúncias, seria o TPO a real ameaça à integridade no futebol?

O futebol é cercado de intervenções realizadas por terceiros. Nesse sentido, pode-se apresentar como exemplo a atividade dos intermediários, sujeitos que não compõem o núcleo de personagens essenciais ao futebol, composto por atletas, clubes, ligas e federações. Ainda assim, os intermediários exercem atividade de grande importância, com participação direta em transferências e negociações de contratos de trabalho. Em função disso, poder-se-ia presumir que os intermediários fossem capazes de influenciar indevidamente decisões de clubes e atletas, em tratamento similar ao que se deu em relação aos investidores. No entanto, a FIFA tomou decisão diametralmente oposta (e absolutamente correta): ao invés de simplesmente vedar as atividades de intermediação, optou por regulá-las, de modo a minimizar os riscos de interferência indevida.

Ademais, a FIFA parece também não se preocupar com questões concernentes à propriedade de clubes. Não há regulamentos específicos para transações envolvendo aquisição de clubes, e a normatização do tema limita-se à exigência de informações quanto à estrutura do clube como requisito para licenciamento⁹. Certamente, cuida-se de abordagem muito mais suave do que aquela adotada em relação ao TPO – embora o exercício de influência no comando de clubes seja potencialmente muito mais perigoso para a integridade do futebol do que eventual influência em relação a um atleta específico.

Não por acaso, diversos clubes belgas foram adquiridos por investidores estrangeiros nos últimos anos¹⁰. Ainda que a liga belga não esteja entre as mais prestigiadas da Europa, o país oferece ótimas condições para que investidores desenvolvam variadas estratégias de negócio por meio da aquisição do controle de clubes. Como exemplos dessas estratégias, destacam-se (i) a possibilidade de desenvolver jovens atletas para posteriormente atuarem em clubes maiores controlados pelo mesmo grupo, (ii) valer-se das regras de cidadania do país para permitir que jogadores não europeus possam adquirir passaporte europeu em período de tempo relativamente mais curto que em outros países, e até mesmo (iii) a criação de reality show no âmbito do clube para divulgação em outros países. As abordagens são variadas, mas o fato é que o contexto belga ratifica que o controle de clubes por terceiros pode ser uma ameaça muito maior à integridade do esporte do que o TPO; afinal, parece-nos claramente menos perigoso ao futebol que um clube use o TPO como mecanismo para reforçar seu elenco do que tê-lo controlado por investidores cujos objetivos sejam absolutamente dissociados do benefício ao próprio clube.

Também no que tange a patrocínios, verificam-se situações que podem fragilizar a integridade no futebol. Exemplos disso são o caso de clubes envolvidos numa mesma competição serem patrocinados por uma única empresa, e até mesmo a hipótese de clubes que são patrocinados pela mesma empresa patrocinadora da competição¹¹. Além disso, destaca-se ainda o fato de que alguns clubes¹², ligas e até mesmo federações nacionais¹³ são patrocinados por empresas que exploram apostas em resultados esportivos – o que não nos parece o cenário mais adequado para a alegada preocupação da FIFA de preservar a integridade, especialmente considerando as possíveis conexões entre apostas e manipulação de resultados.

Não se quer dizer aqui que atividades de intermediários, aquisições de clubes por investidores e contratos de patrocínio devam ser vedados pela FIFA. Pelo contrário, entendemos que são aspectos inerentes ao futebol moderno, enquanto importante atividade econômica consolidada em todo o mundo. O que se pretende demonstrar, portanto, é que a FIFA admite – com razão – diversas formas de interferência de terceiros no futebol, e que deveria regular o TPO (como faz em relação aos intermediários), em vez de proibi-lo.

Destarte, a proibição do TPO com fulcro em alegada ameaça à integridade no futebol e nas competições afigura-se injustificadamente severa e dissonante da postura da FIFA em relação a todos esses outros aspectos. Assim, não resta outra conclusão senão a de que, mais uma vez, não se justificam as restrições impostas às liberdades fundamentais da EU.

3.4. Conflitos de interesse

Este aspecto guarda muitas similaridades em relação ao anterior, que trata da integridade. Por conseguinte, alguns dos exemplos mencionados no item 3.3 podem ser usados também para retratar conflitos de interesse.
Nesse sentido, destaca-se a possibilidade de que dois clubes participantes de uma mesma competição sejam patrocinados ou controlados por uma mesma empresa ou grupo econômico. Essa hipótese foi tema de discussão no âmbito da UEFA Champions League: o FC Red Bull Salzburg (FCS), da Áustria, e o Rasenballsport Leipzig (RB Leipzig), da Alemanha, classificaram-se para a edição 2017/2018 da competição, e ensejaram controvérsia em função das suspeitas de que ambos seriam controlados pela mesma empresa¹⁴. Consoante já exposto, a FIFA não dispõe de nenhuma regra que previna clubes controlados pelo mesmo grupo de competirem entre si – uma abordagem extremamente mais tolerante do que aquela destinada ao TPO.

Felizmente, no entanto, o artigo 5 do próprio regulamento da UEFA Champions League 2017/2018¹⁵, relativo à integridade da competição, abordava essa hipótese, dispondo acerca da impossibilidade de que uma pessoa, física ou jurídica, exercesse o controle de mais de um clube participante de suas competições. Em função disso, submeteu-se à apreciação da UEFA¹⁶ o caso acima aludido. A decisão final foi no sentido de que ambos os clubes poderiam participar da competição, baseada na premissa de que “a Red Bull não exerce influência decisiva sobre o FCS”, uma vez que “a relação entre Red Bull e FCS configura-se como mero patrocínio”¹⁷.

Outra possibilidade de conflitos de interesse envolve diretamente os próprios atletas. Na medida em que pré-contratos são cada vez mais comuns como meio de assegurar futuras transferências, é plenamente possível que um jogador compita contra seu futuro clube após a assinatura de um pré-contrato entre eles. Cuida-se de situação que se verifica na prática, e que é plenamente tolerada pela FIFA, uma vez que o artigo 18(3) do RSTP permite a celebração de negócios nesse formato nos seis meses anteriores à data de encerramento do contrato de trabalho vigente com o atual clube. Evidentemente, essa disposição é absolutamente positiva e benéfica aos atletas (assegurando-lhes um período de seis meses para buscar ativamente um novo empregador); não obstante, em determinados casos concretos pode ensejar evidentes conflitos de interesse na atuação do atleta representando seu atual clube contra seu futuro clube.

As hipóteses ora referidas evidenciam que conflitos de interesses são, muitas vezes, inerentes ao futebol. Isso se ratifica sob uma perspectiva econômica (visto que os clubes precisam dos recursos advindos de contratos de patrocínio), sob o prisma legal (uma vez que a livre movimentação dos trabalhadores é reforçada pela possibilidade de que os jogadores negociem pré-contratos antes do fim da vigência do contrato de trabalho existente) ou mesmo com base em aspectos puramente esportivos (afinal, é desejo natural dos atletas se transferirem para equipes nas quais possam atuar mais e/ou ter mais chances de conquistar títulos). Ademais, revela-se cristalino que o TPO não está entre as principais causas dos conflitos de interesse – o que consubstancia a inadequação de sua proibição como forma de combater tal problema.

3.5. Transparência nas transferências

De modo a tentar justificar a proibição do TPO como meio de desenvolver maior transparência nas transferências de atletas, a FIFA arguiu que diversos investidores eram “opacos” – isto é, o real beneficiário não seria identificável em função da estrutura societária da empresa detentora dos direitos econômicos. Esse argumento foi acatado pela CAS, sob o fundamento de que a FIFA não teria competência para regular a atividade de terceiros que não lhe são direta ou indiretamente filiados; desse modo, a proibição do TPO seria a alternativa possível para afastar os problemas de transparência decorrentes das estruturas societárias dos investidores.

Ora, a conclusão manifestada pela CAS é claramente equivocada. Os investidores não se distinguem, por exemplo, dos intermediários: nenhum deles é filiado direta ou indiretamente à FIFA, e ambos atuam no âmbito das atividades econômicas que cercam o futebol. No entanto, a FIFA – corretamente – admite a atuação de intermediários e regula suas atividades; destarte, resta cristalino que a FIFA pode, sim, regular atividades de terceiros relacionadas ao futebol e, sobretudo, que tem pleno conhecimento acerca da forma como deve fazê-lo. Por conseguinte, não se sustenta a ideia de que a FIFA não poderia regulamentar o TPO.

Caso o fizesse, inclusive, a FIFA poderia sanar boa parte (senão a totalidade) dos problemas por ela referidos como causa de sua proibição. No que tange à própria transparência, poderia, por exemplo, (i) vedar investimentos em TPO por pessoas jurídicas “opacas”, (ii) obrigar os clubes a indicar o beneficiário final dos direitos econômicos negociados e/ou (iii) limitar o percentual de TPO em relação aos direitos econômicos de um mesmo atleta. No entanto, infelizmente não foi essa a opção da FIFA ao decidir pela proibição do TPO – o que não parece ter elevado a transparência nas transferências¹⁸.

Portanto, resta evidente que a vedação ao TPO não foi uma ação eficaz para elevar o nível de transparência nas transferências de atletas, e que a regulamentação desse mecanismo consubstanciaria medida mais eficiente na busca por tal objetivo.

4. Conclusão

A partir da análise acima exposta, nota-se que a legitimidade dos objetivos aduzidos pela FIFA para justificar a proibição do TPO é, no mínimo, controversa, e que tal medida não se mostra adequada para o atingimento desses objetivos. Ademais, observa-se que a vedação ao TPO é claramente desproporcional se comparada à postura da FIFA em relação a outras atividades econômicas de terceiros relacionadas ao futebol.

Por conseguinte, não nos parece justificável a flagrante violação às liberdades fundamentais da UE, de modo que a proibição do TPO se afigura incompatível com o Direito da UE.

Muito embora a CAS não tenha decidido nesse sentido, a validade do artigo 18ter ainda pode ser questionada no âmbito da própria Corte. Afinal, outros árbitros em processos distintos podem chegar a conclusão diversa, sobretudo considerando a fragilidade dos argumentos apresentados pela FIFA.

Ademais, vale lembrar que tramita perante a Justiça belga ação ajuizada pelo mesmo clube acerca dessa questão, e o processo ainda pode ser encaminhado à apreciação do TJUE. É justamente nesse ponto que se deve ter em conta a importância história do TJUE como “moderador” da Lex Sportiva, notadamente a partir de conflitos entre normas emanadas de federações internacionais e o Direito da EU – sendo o Caso Bosman o mais emblemático.

Enfim, pode-se dizer que o TPO, hoje, encontra-se proibido pela FIFA. Mas é plenamente possível que venha a ser restabelecido no futuro, em função da incompatibilidade de sua vedação em relação às liberdades fundamentais da EU.

……….
¹ VAN MAREN, Oskar; DUVAL, Antoine; LA LIGA; POLI, Raffaele; RECK, Ariel N; GEEY, Daniel; DUVE, Christian; LOIBL, Florian. Debating FIFA’s TPO ban: ASSER International Sports Law Blog symposium. In: Int Sports Law J, v. 15, p. 234.
² LOMBARDI, Rosa; MANFREDI, Simone; NAPPO, Fabio. Third Party Ownership in the field of professional football: a critical perspective. In: Business Systems Review, v.3, p. 35.
³ MOTTA, Marcos e FIDA, Pedro. The FIFA ban on TPO in Brazil and the Maidana case. In: World Sports Law Report, Nov. 2016, p. 13-16.
⁴ PIRES, Luís Villas-Boas. A review of FIFA’s TPO ban and alternative financing models for clubs. Disponível em: <https://www.lawinsport.com/articles/item/a-review-of-fifa-s-tpo-ban-and-alternative-financing-models-for-clubs>. Acesso em: 21 dez. 2018.
⁵ VAN MAREN, Oskar; DUVAL, Antoine; LA LIGA; POLI, Raffaele; RECK, Ariel N; GEEY, Daniel; DUVE, Christian; LOIBL, Florian. op. cit., p. 236-237; 246.
⁶ TAS 2016/A/4490 RFC Seraing c. FIFA.
⁷ FIFA/TMS. Global Transfer Market Report 2017. Disponível em: <https://www.fifatms.com/data-reports/reports/>. Acesso em: 21 dez. 2018.
⁸ Por exemplo, o Santos e o Sevilla:
<https://www.fifa.com/governance/news/y=2016/m=3/news=several-clubs-sanctioned-for-breach-of-third-party-influence-third-par-2772984.html >. Acesso em: 21 dez. 2018.
⁹ FIFA. Regulations Club Licensing, p. 38 and 43 (Article 9.2.1, L.03 and Article 10.4, F.01). Disponível em: <https://www.fifa.com/mm/document/affederation/administration/67/17/66/club_licensing_regulations_en_47341.pdf >. Acesso em: 21 dez. 2018.
¹⁰ Disponível em: < https://www.nytimes.com/2017/09/09/sports/soccer/belgian-clubs-and-foreign-money-a-modern-soccer-mix.html >. Acesso em: 21 dez. 2018.
¹¹ Por exemplo, na temporada 2016/2017, a empresa de telecomunicações portuguesa “NOS” patrocinava, a um só tempo, a liga portuguesa (denominada “Liga NOS”) e o Sporting Clube de Portugal.
¹² Disponível em: < https://en.calcioefinanza.com/2017/07/03/gambling-companies-dominate-premier-league-sponsorship-deals-no-beer-sponsors-201718-first-time-ever/>. Acesso em: 21 dez. 2018.
¹³ Por exemplo, a Federação Inglesa de Futebol era patrocinada pela Ladbrokes; no entanto, a federação decidiu, unilateralmente, rescindir o contrato de patrocínio e declarou que não seria mais patrocinada por nenhuma empresa dessa natureza. Mais detalhes em: <https://www.theguardian.com/football/2017/jun/22/fa-announces-end-to-sponsorship-deals-with-betting-companies >. Acesso em: 21 dez. 2018.
¹⁴ Disponível em: <http://www.dw.com/en/could-rb-leipzig-be-banned-from-competing-in-the-champions-league/a-38027087>. Acesso em: 21 dez. 2018.
¹⁵ To ensure the integrity of the UEFA club competitions, the following criteria apply:
(…)
b. no one may simultaneously be involved, either directly or indirectly, in any capacity whatsoever in the management, administration and/or sporting performance of more than one club participating in a UEFA club competition;
c. no individual or legal entity may have control or influence over more than one club participating in a UEFA club competition, such control or influence being defined in this context as:
i. holding a majority of the shareholders’ voting rights;
ii. having the right to appoint or remove a majority of the members of the administrative, management or supervisory body of the club;
iii. being a shareholder and alone controlling a majority of the shareholders’ voting rights pursuant to an agreement entered into with other shareholders of the club; or
iv. being able to exercise by any means a decisive influence in the decision-making of the club.
¹⁶ Mais precisamente, à Adjudicatory Chamber, vinculada ao órgão de controle financeiro de clubes da UEFA (Uefa Club Financial Control Body).
¹⁷ Traduções livres do inglês. A versão completa da decisão, em inglês, pode ser encontrada em <https://www.uefa.com/MultimediaFiles/Download/OfficialDocument/uefaorg/ClubFinancialControl/02/48/50/34/2485034_DOWNLOAD.pdf>. Acesso em 21 dez. 2018.
¹⁸ Nesse sentido, são exemplos: (i) o escândalo envolvendo o então técnico da seleção inglesa de futebol, em 2016 (<https://www.telegraph.co.uk/news/2016/09/26/exclusive-how-sam-allardyce-tried-to-make-as-much-money-as-possi/> acesso em 21 dez. 2018); (ii) a polêmica envolvendo a transferência de Neymar Jr para o PSG e supostas violações ao fair play financeiro da UEFA (<https://www.theguardian.com/football/2017/aug/02/psg-200m-neymar-barcelona-financial-fair-play> acesso em 21 dez. 2018).

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Pedro Henrique Mendonça é advogado, especialista em Direito Esportivo, sócio do Camargos Advogados.

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