Nas últimas décadas, o ambiente econômico do futebol vem se transfigurando em velocidade exponencial, especialmente a partir da entrada de novos investidores e novos grupos. A FIFA, na qualidade de entidade máxima que governa o sistema associativo piramidal da modalidade, sempre buscou, por meio de seus regulamentos, das Federações continentais e também das ligas nacionais de clubes, interferir neste mercado para assegurar estabilidade contratual, garantir regras trabalhistas mínimas, limitar a transferência internacional de menores e a cessão de atletas por empréstimo (protegendo novos talentos e o desenvolvimento de suas carreiras), assegurar a integridade das competições e a imprevisibilidade do resultado, coibir a manipulação de resultados, etc. Mais recentemente, passou a investir no estabelecimento de normas relativas ao fair play financeiro e nas limitações daquilo que ficou batizado de transferência-ponte, no escopo de, respectivamente, limitar o endividamento dos clubes e evitar a utilização do futebol para fins lavagem de dinheiro e refrear transferências de atletas realizadas sem objetivo esportivo algum, implementadas apenas com vistas a burlar mecanismos de controle.
Mais recentemente, as atenções daqueles que militam no esporte passaram a gravitar em torno de um problema que muitas vezes pode se apresentar como de quase impossível solução: a questão das multipropriedades (multi-club ownership – MCO). Trata-se da situação na qual uma parte exerce controle e/ou influência decisória em mais de um clube, podendo, de alguma maneira, ser associada ao multi-club investiment, que seria o cenário onde uma parte possui investimentos em mais de um clube, podendo ou não exercer controle ou influência.
A questão é que, até pouco tempo, o mecanismo não recebia a devida atenção pelo fato de, até então, representar uma amostra reduzida do universo do futebol e muitas vezes envolver clubes de diferentes continentes vinculados a Federações distintas, como se fosse uma situação excepcional e menor que não demandaria um balizamento regulatório. Daí que a FIFA não vinha regulando a questão como o faz com outros aspectos do mercado. Ocorre que o quadro vem mudando rapidamente. Para se ter uma ideia, o último relatório de finanças e investimento da UEFA[1] apontou que, no final de 2023, já havia 230 clubes no mundo contando com algum tipo de estrutura de multipropriedade, ao passo que, há menos de 5 cinco anos, havia menos de 100. Ou seja, este tipo de estruturação vem se aproveitando da desregulamentação do mercado e da omissão da FIFA, que precisa mergulhar no tema com a devida atenção e energia, sob pena de, em pouquíssimo tempo, o ecossistema estar irremediavelmente contaminado.
No último ano, o tema que parecia latente e adormecido, voltou à tona. Isto porque a UEFA passou a pressionar a FIFA no sentido da criação de regras aplicáveis ao Mundial de Clubes de 2025, diante do risco de que clubes pertencentes ao mesmo grupo participassem da competição. Além disso, clubes como o Manchester City e o Girona (que fazem parte do grupo City) foram classificados para a próxima edição da Champions League, assim Manchester United e Nice habilitados para a Europa League (controlados por Jim Ratcliffe, bilionário britânico que é acionista majoritário do grupo INEOS). Tal quadro já havia se configurado em anos anteriores, com diferentes clubes.
Em outro contexto, o Fundo de Investimento Público da Arábia Saudita já controla 4 clubes na liga local e recentemente assumiu o controle do Newcastle United na Inglaterra, e continua em busca de novos negócios na Europa.
A UEFA já prevê em seus regulamentos a impossibilidade de que clubes sob o mesmo guarda-chuva participem de suas competições, ao passo que a FIFA assevera que cabe às Federações continentais exercer o controle da questão via autorização para participação sempre que a integridade das competições seja colocada em risco. Isto porque é sabido que em uma rede de multiclubes é natural que haja o estabelecimento de qual clube figurará no topo da cadeia e quais atuarão na qualidade de satélite. De fato, quando clubes parentes eventualmente se encontrarem em uma fase eliminatória decisiva ou caso a classificação de uma depender do resultado da outra na fase de grupos, não se sabe como serão seus comportamentos. Disputarão suas partidas normalmente? Pode haver manipulação de resultado? Não se sabe e nada pode ser garantido. A questão é que, independentemente da efetiva integridade, é preciso proteger a aparência da integridade das competições. Esta talvez já esteja irremediavelmente comprometida.
É sabido que não é algo simples interferir em algo que é resultado de fatores macroeconômicos e tendências do mercado de investimentos, mas a FIFA precisa agir, até porque somente ela tem jurisdição sobre todo o globo e sobre a atuação de qualquer grupo. Uma solução temporária seria a UEFA ou a respectiva entidade continental autorizar somente a participação de um único clube pertencente ao mesmo grupo na mesma competição, dando prioridade àquele que obteve a melhor colocação no respectivo campeonato nacional. Enquanto isso, a FIFA precisa criar normas mais específicas e claras sobre o tema, estabelecendo standards concretos de enfrentamento da questão pelas Federações ou ligas.
O problema é que, agora em julho de 2024, mais uma vez diante da inércia da FIFA, que vem perdendo sucessivas oportunidades de regulamentar o MCO de maneira mais definitiva e enfática, a UEFA optou por se render aos fatos. Evitando barrar participação de clubes de renome e prejudicar suas competições, preferiu flexibilizar seus regulamentos via “interpretação favorável”. Isto porque seu Órgão de Controle Financeiro (CFCB), assim como anos anteriores com outros clubes, autorizou a participação de Manchester City, Girona, Manchester United e Nice em suas competições para a temporada 2024/25 a partir de um acordo celebrado com as equipes no sentido da limitação de transferência diretas de atletas dentro da mesma rede até setembro de 2024 e de uma suposta redução de participação acionária em um dos clubes, com transferência de controle e tomada de decisões para uma parte independente, sendo vedada cooperação técnica, comercial e compartilhamento de dados. Não é preciso grande esforço para verificar que a UEFA fez vistas grossas e entrou no modo engana que eu gosto. A título ilustrativo, antes do referido acordo, o brasileiro Savinho já havia acabado de se transferir diretamente do Girona para o Manchester City, embora a contratação ainda não tenha sido oficialmente anunciada.
Como se não bastasse o desafio envolvendo a integridade das competições, não se pode olvidar que o MCO desregulamentado também pode comprometer seriamente o equilíbrio competitivo. Isto porque os clubes precisam se adequar às regras de fair play financeiro e às limitações de empréstimos de atletas, por exemplo. Os grandes grupos, além de normalmente deterem recursos muitas vezes virtualmente ilimitados, podem se utilizar do MCO exatamente no sentido de burlar ambas as regras. Um clube que opera em “carreira solo”, por exemplo, não pode simplesmente contratar todos os atletas pretendidos e promessas surgidas, mesmo que eventualmente possua os recursos. Isto porque correrá o risco de burlar as regras do FPF e sofrer punições, além de não poder deixar os atletas “encostados” no elenco sem a possibilidade de emprestá-los para ganhar minutagem. Já a rede multiclubes poderá “diluir” as contratações e os investimentos pelos clubes pertencentes ao grupo e distribuir os atletas, uma forma moderna de emprestar os jogadores sem travas ou limitações e, o melhor, mantendo-os sob sua supervisão e controle.
Não à toa os conglomerados vêm agora buscando mercados ainda mais desregulamentados. Basta verificar a chegada de novos grupos no futebol brasileiro, que manejam com muita habilidade as limitações às transferências-ponte. Alguns clubes brasileiros que se tornaram SAF´s já integram redes multinacionais de clubes e vem recebendo atletas que sabidamente partirão na próxima janela internacional de transferências.
A questão é complexa. Certamente a inércia da FIFA e a postura da UEFA de se render à realidade estimularão o crescimento de operações visando a ampliação e a criação de novas redes de clubes. O recado indireto parece simples: os clubes que não se estruturem em redes de MCO terão prejuízo competitivo. E talvez seja melhor correr antes que as regras sejam endurecidas.
Por enquanto, ainda são poucos os clubes disputando as mesmas competições na Europa. No ritmo atual, em poucos anos podemos chegar a um terço dos participantes e estaremos pertos de chegar a uma situação de irreversibilidade. Várias oportunidades históricas foram perdidas, mas ainda há (pouco) tempo de agir.
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[1] https://ecfil.uefa.com/2023. Acesso em 17/07/2024.