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A raiz do problema

“A Raiz do Problema” (2018), é um filme em que Frazer Beiley conta a sua experiência com um tratamento dentário de canal e os supostos distúrbios de saúde que ele enfrentou como consequência dessa terapia.

A película foi duramente criticada por odontologistas, pelo fato de apresentar teorias sem fundamento científico e por disseminar desinformação por toda a sociedade, o que redundou na sua remoção dos serviços de streaming da Netflix em fevereiro de 2019.

Outra “produção” mereceu inúmeras reprimendas nos últimos dias. Trata-se de algumas decisões produzidas por certos setores da Justiça Desportiva que fugiram da razoabilidade, atentaram contra o bom senso e violaram flagrantemente a Constituição.

Em que pese as “cáries” apresentadas recentemente, a ideia da criação da Justiça Desportiva (que é reconhecida pela Constituição, no art. 217, § 1º) é extremamente salutar por vários motivos.

A uma, porque assuntos próprios do mundo do desporto não são devidamente apreciados pela justiça comum, que não possui conhecimentos técnicos apropriados para julgar lides dessa natureza.

A duas, pelo fato de que a morosidade do Judiciário em dar desfecho definitivo às demandas tende a conferir uma incerteza no espírito de competidores e torcedores quanto à conclusão das disputas.

A três, a tutela cautelar obtida em juízo não raro assumia foros de provimento permanente, o que desvirtuava a própria decisão judicial requisitada. Tão doloroso quanto uma dor de dente, era ver que as liminares concedidas ultimavam por alterar definitivamente os resultados das competições, causando prejuízos irreparáveis à prática do desporto.

Por fim, não se olvide quanto à ineficácia das decisões proferidas pelo Judiciário no plano internacional, já que eventuais provimentos que se destinem a viabilizar a participação em competições fora do território nacional não são reconhecidos pelas federações internacionais.

Também não é adequada a concepção de que bastaria existir um mero “Tribunal de Penas”, como muitos leigos defendem, em que seria suficiente apenas e tão somente enquadrar um fato ou conduta à norma jurídica e aplicar uma sanção sem qualquer anestesia.

Isto porque nossa Constituição, em seu art. 5º, assegura aos litigantes, em processo judicial ou administrativo e aos acusados em geral o contraditório e ampla defesa, com os meios e recursos a ela inerentes, além de exigir o respeito ao devido processo legal.

Por tudo isso é que não dá para fugir da Justiça Desportiva, como um paciente medroso que corre da cadeira do dentista. O ponto não é a concepção da instituição em si, mas a forma pela qual se constitui e opera. É que a Lei nº 9615/98 dá ao órgão uma constituição paritária, com representantes dos árbitros, atletas, entidades de prática e de administração do desporto, além de membros indicados pela Ordem dos Advogados do Brasil.

Embora tenha tido boas intenções, a previsão legal incide em erro, na medida em que confunde órgão deliberativo com órgão judicial. O exercício da função deliberativa supõe escolhas que são feitas visando o futuro, em que se manifesta preferência entre as opções existentes para tornar algo melhor. Aqui,  a paridade é relevante, porque assegura a participação de todos os segmentos necessários na formação da vontade da entidade.

Assim, por exemplo, o Congresso Nacional, que é um órgão deliberativo por excelência. Para a constituição da vontade nacional, através da Lei, faz-se mister que haja a participação de representantes de todos os Estados a fim de que as normas sejam a expressão do anseio da nação.

O exercício da função judicial é, entretanto, diferente. Supõe a análise do passado, em que se busca a verdade do ocorrido com a utilização de táticas jurídicas apropriadas. Daí porque os julgadores não devem ser escolhidos politicamente, mas de maneira técnica, através de certame público que apure a qualificação profissional do indivíduo.

Dentro da natural relação de causa e efeito, julgadores escolhidos de maneira política tendem a produzir julgamentos políticos, enquanto que magistrados selecionados de acordo com suas aptidões tendem a produzir julgamentos técnicos.

O processo político de indicação não garante a qualidade do auditor e também não é salutar, porque sujeita o indicado à influência da entidade que exerceu a escolha, não dando ao ocupante do cargo a total independência de que tanto precisa para julgar os processos.

Se não é correto afirmar que um tratamento de canal seja a causa de doenças graves, é seguro dizer que a forma de composição dos tribunais desportivos é a principal fonte de decisões que escapam do raciocínio lógico jurídico em detrimento das partes processuais, do Direito e da razão.

Não adianta apenas trocar os auditores se o processo de escolha se mantiver o mesmo. Só mudarão os nomes e as imperfeições continuarão. É preciso fazer um  “tratamento de canal”, porque o problema da Justiça Desportiva é muito mais profundo do que parece.

Eis a origem de tantas decisões políticas, inconstitucionais e sem lógica.

A principal causa de todos os males.

A verdadeira raiz do problema.

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