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A regra do jogo

De Jean Renoir, o famoso filme “A Regra do Jogo” (1939) mostra a decadência e a futilidade da sociedade francesa, retratada em final de semana festivo da burguesia num castelo, com direito à caça de animais indefesos, baile à fantasia e casais traindo-se mutuamente a todo instante.

Os ciúmes acabam provocando um assassinato que termina sem punição ao homicida diante da versão do anfitrião de que teria havido um acidente, provocado por um caçador desconhecido e estranho à festa.

Outro suposto crime cometido está longe dessa realidade e contradiz a própria realidade do esporte. É que o MP denunciou dirigentes do Inter de Porto Alegre e outras pessoas por suspeitas de desvios no clube, os quais responderão pelos crimes de organização criminosa, lavagem de dinheiro, falsidade ideológica e estelionato.

Porém, o que diferencia o case do Internacional do caso retratado no internacionalmente reconhecido filme de Renoir não é propriamente a presença ou ausência do Ministério Público na jogada, mas o interesse dos indivíduos em ver que determinado crime seja apurado e esclarecido.

Com efeito, enquanto em “ A regra do jogo” todos os presentes à festa puseram panos quentes a fim de dissimular o ocorrido, a diretoria do clube gaúcho colocou mesmo o assunto pra ferver.

De fato, o Conselho Deliberativo, referendando o parecer do Conselho Fiscal, reprovou as contas da gestão anterior por despesas não comprovadas na casa de R$ 9 milhões, em contratos não cumpridos com cinco empresas do ramo de construção civil. Após as conclusões de uma comissão especialmente designada para analisar o assunto, dirigentes foram punidos internamente e o MP foi instado a apurar o eventual cometimento de crimes.

Regras para punir quem estraga o jogo são o que não falta. Além daquelas previstas no Código Penal, a Lei Geral do Esporte (Lei n° 9.615/98) no caput do art. 27, diz que os bens particulares dos dirigentes esportivos responderão em caso de abuso da personalidade jurídica do clube, caracterizado pelo desvio de finalidade ou pela confusão patrimonial.

Da mesma forma, o dirigente que, sem consentimento escrito dos sócios, aplicar créditos ou bens sociais do clube em proveito próprio ou de terceiros, terá de restituí-los à entidade desportiva, ou pagar o equivalente, com todos os lucros resultantes, e, se houver prejuízo, por ele também responderá.

Além disso, o parágrafo 11 do Art. 27 prevê que os administradores de entidades desportivas profissionais respondem solidária e ilimitadamente pelos atos ilícitos praticados, de gestão temerária ou contrários ao previsto no contrato social ou estatuto.

Ocorre que tais regras raramente são aplicadas no esporte. Isto porque o Direito é a ciência do “dever ser” e não daquilo que efetivamente acontece. Ele prescreve condutas e suas consequências, mas para que o mundo do “dever ser” transforme-se no universo do “ser”, faz-se mister a presença de dois fatores fundamentais: a coerção e a consciência social.

Quanto ao primeiro, é bem de ver que, sem que exista o sentimento de que haverá punição em caso de descumprimento da regra jurídica, muitos tenderão a transgredí-la.

Basta notar que inúmeras condutas que são consideradas ilícitas há muito tempo só agora começaram a ser evitadas, como dirigir embriagado, conduzir sem cinto de segurança ou fumar em local proibido, haja vista que a chance de punição por tais atos aumentou consideravelmente nos últimos anos.

Todavia, no esporte os novos ares de fim da impunidade ainda não sopraram na sua plenitude, vide os rarissimos casos em que as penas da Lei n° 9.615/98 foram aplicadas, pois, por se tratar de entidades privadas e sem donos (já que se tratam de associações sem fins lucrativos), o controle praticamente inexiste.

Quanto ao segundo (e mais importante), é fundamental a consciência coletiva de que o respeito às normas constitui-se em elemento essencial para o equilibro da sociedade, até porque, quando as regras são cumpridas por todos, o jogo da convivência social fica muito mais facil de ser disputado.

Por mais que haja a chance de punição, o Direito não conseguirá cumprir seus objetivos se não houver o engajamento da sociedade. As autoridades não podem estar em todo lugar a todo momento, daí ser tão importante que os associados das agremiações velem para que as regras sejam cumpridas.

Veja-se o caso do filme de Renoir: A regra do jogo proposta pelo anfitrião para lidar com o homicídio foi convenientemente aceita por todos os convidados, a fim de evitar qualquer tipo de constrangimento. O desprezo coletivo diante do descumprimento da regra jurídica resultou na impunidade de um crime…

Na gestão esportiva hipótese semelhante costuma acontecer. Quase ninguém está lá muito preocupado com o destino do clube, mas com seus próprios interesses.

Lamentavelmente, no jogo da alternância do poder no esporte, a regra é a de que quem esteja no comando do clube finja que nada de errado aconteceu na gestão passada. Isso é conveniente para evitar que o adversário faça o mesmo no futuro contra o mandatário do momento, caso assuma o seu lugar.

O caso do Internacional constitui-se em exceção à regra que apenas a confirma. E isto não é um privilégio do Brasil. Basta ver o escândalo milionário da FIFA: apenas veio à lume por causa do FBI dos E.U.A, sem que qualquer órgão de controle interno tivesse feito algo para apagar o fogo da corrupção, que por décadas ardeu por lá.

Às vezes é preciso tempo para as pessoas perceberem o valor das coisas que estão em jogo. O filme de Renoir, por exemplo, foi um fracasso de público e décadas foram necessárias para o considerarem um dos 5 maiores da história do cinema mundial.

Talvez também leve tempo para que a iniciativa do Internacional passe a ser copiada. Seria imperioso que, o quanto antes, os sócios de todos os clubes tivessem consciência de que são igualmente responsáveis pelo destino de sua agremiação.

Mas se quiserem continuar olhando para o seu próprio umbigo, deveriam pelo menos lembrar que, quando não fazemos as coisas que precisam ser feitas, de alguma forma sofreremos os resultados de nossas escolhas.

Se tem algo inexorável é a regra da compensação (Lei do karma para uns ou de causa e efeito para outros), em que inevitavelmente experimentaremos as consequências positivas ou negativas dos nossos atos.

Dessa regra ninguém escapa.

Porque essa é a regra do jogo.

Do jogo da vida.

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