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A sapo e a panela

Por Renato Gueudeville

 

O mundo vive hoje condições macroeconômicas extremamente desafiadoras.

A China com excesso de chuvas que ocasionaram problemas em suas minas de carvão, a Rússia num embate com a União Europeia no fornecimento de gás natural e a OPEP (Organização dos Países Exportadores de Petróleo) segurando a produção para forçar o preço do barril de petróleo a transitar em uma faixa mais valorizada, trazem forte pressão nos preços das matrizes energéticas.

Somado a isso, a cadeia de suprimentos de diversos segmentos industriais segue desbalanceada em função dos reflexos da pandemia e o ajuste do equilíbrio entre oferta e demanda. Em um mundo cada vez mais globalizado e conectado, a contaminação de determinados eventos é acelerada e amplificada.

O resultado disso é uma alta de preços global generalizada. Alemanha e EUA vivem a mais alta inflação dos últimos 30 anos. Não é diferente no Reino Unido, Espanha, Itália, Rússia, China, Índia e … Brasil.

Nosso país absorve e incorpora a pancada global e acrescenta os ingredientes internos que potencializam o efeito: instabilidade política, divergências entre os poderes e a questão fiscal. Tudo isso nos leva à uma inflação anual projetada em 2021 acima de 10%. Um horror!

E por que esse panorama todo vem à tona em um artigo sobre futebol? Guarde essa prévia acima porque voltaremos com ela mais à frente.

Existe uma fábula muito conhecida do sapo na panela. Ela conta que se o anfíbio for colocado em uma panela com água quente, ele vai se ajustando à temperatura e permanece lá dentro. A temperatura vai aumentando e ele continua se adaptando às condições do ambiente. E quando ela já está perto de ferver, ele tentaria saltar para fora, mas o seu organismo foi tão mobilizado para a adaptação que ele não tem mais forças e morrerá implacavelmente.

A panela é o macroambiente do futebol brasileiro. O(s) sapo(s) você já sabe quem é.

Grande parte dos clubes brasileiros continuam a negligenciar as relevantes mudanças que acontecem no mundo da bola e, em pleno 2021, eles insistem em tentar se adaptar ao meio postergando rupturas e decisões estratégicas, conservando práticas e dinâmicas de décadas atrás. É a procrastinação em seu estado mais puro.

O Flamengo atingiu receitas superiores à R$ 1 Bilhão em 2021. O clube fez o seu dever de casa, ao longo dos últimos anos, em uma imensa reestruturação administrativa-financeira, aumentou seu potencial de arrecadação, valorou melhor seus ativos de imagem, investiu fortemente em grandes atletas, entre tantos outros feitos.

Pois bem, esse mesmo clube já teve 5 técnicos nos últimos 3 anos, o que daria uma média de cada treinador sentado no banco por pouco mais de 7 meses. Esse mesmo clube foi buscar um técnico que insiste em desprezar a ciência, avesso às metodologias modernas de treinamento, alheio a inteligência do scouting para formação dos seus elencos. “Quem não sabe, estuda” e o “Quem precisa aprender, estuda, vai para Europa… quem não precisa vai para a praia”, nós já sabemos que são de Renato Gaúcho estes dizeres que conseguiu durar pouco mais de 4 meses e cair em todas as competições disputadas.

Qual foi o critério na contratação do técnico? Quais premissas e conceitos foram alinhados ao direcionamento do projeto de futebol do Flamengo?

O Grêmio, outro clube organizado e que também passou por um imenso trabalho de reorganização, transparência e governança colocou como Diretor Executivo de Futebol, em abril deste ano, um ex-integrante do Conselho de Administração do clube. Marcos Hermann durou pouco mais de seis meses no cargo e foi sucedido por Denis Abrahão, o mesmo que disse – 2 dias antes de enfrentar o Bahia – que a torcida do tricolor baiano resmunga com 20 minutos de jogo. O clube gaúcho está por um triz para ser rebaixado para a Série B.

Qual foi o critério da nomeação do diretor de futebol? Quais premissas e conceitos foram alinhados ao direcionamento do projeto futebol do Grêmio?

A transparência de um clube de futebol é fundamental para mostrar ao mercado – e seus torcedores – a real condição do seus números econômico-financeiros, sua governança, entre tantos outros objetivos. Rodrigo Capelo, jornalista do ge e especializado em negócios no esporte, publicou um artigo em que ele constrói um ranking dos clubes mais transparentes do Brasil.

O atual campeão brasileiro, o Atlético Mineiro, junto com São Paulo e Corinthians ocupam a segunda parte da tabela em posições constrangedoras. Se transparência é sintoma de governança e boa gestão, o que leva a esses clubes não praticarem a regularidade na divulgação das informações ao mercado? Já estava esquecendo de mencionar que o Athletico-Pr, atual campeão da Sul-americana e finalista da Copa do Brasil, é o 22º da lista.  Na figura abaixo, podemos perceber o tamanho da encrenca.

Se nós estamos falando da elite do futebol brasileiro e esses atores desprezam modelos de governança e escolhem peças fundamentais do seu negócio baseado em “oba-oba” de torcida ou articulações políticas, a água não está mais morna. Essa temperatura já está perto dos 100 graus.

Um negócio em que a estratégia de financiamento passou por se financiar com o Governo (o Profut está aí para dimensionar o impacto) e com seus colaboradores através do não pagamento de salários e postergar para Justiça Trabalhista mostra muito da natureza das gestões. E tantos outros exemplos de má condução do business, de desrespeito ao produto e ao seu consumidor.

A fábula nos traz a reflexão do porquê o sapo morreu. Ele se foi porque não pulou para fora da panela antes. Ele tentou se adaptar às condições potencialmente ruins e quando percebeu o tamanho do problema já era tarde demais.

E voltando ao início do artigo, um mercado global com condições macroeconômicas ruins tendem a ter aversão ao risco. O “flight to quality” (movimento do mercado financeiro em busca de ativos mais seguros em momentos de crise ou incerteza econômica) é ativado e o dinheiro que fica para projetos de longo prazo, como um clube de futebol, é especulativo. Essa conta será cobrada dos clubes que estão no movimento da SAF e o prêmio de risco será maior. Eles podem encontrar dinheiro, mas pode ter certeza que será caro e com exigências de retorno em um prazo mais curto.

A panela vem esquentando rapidamente ao longo dos últimos anos e os clubes insistem em negligenciar seus riscos. A cegueira coletiva é trágica.

E os sapos estão ali, curtindo a temperatura como se estivessem numa praia em um belo dia de verão e os torcedores engolindo cada vez mais essas espécies.

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Renato Gueudeville é administrador de empresas com MBA em Finanças Corporativas, conselheiro consultivo, gestor com conhecimento em reestruturação empresarial com atuação pelas principais instituições financeiras do país. Acredita que no mundo da bola, fora da gestão não há salvação. É sócio do Futebol S/A.

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Crédito imagem: Pixabay

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