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A segurança jurídica está nas mãos de todos

Por Cáscio Cardoso

Acordei em um domingo de junho de 1999, na plenitude dos meus 18 anos, ansioso pelo BA-VI que decidiria o Campeonato Baiano daquela temporada. No ano do centenário do Vitória, o Bahia teria a chance de conquistar um bicampeonato baiano, mesmo com o rival na 1ª divisão e com um craque vestindo sua camisa: Dejan Petkovic. Aquele campeonato teve muitos clássicos e sempre com muito equilíbrio e rivalidade. Eu fui a todos. O Bahia ganhou o 1º turno, o Vitória ganhou o 2º e na partida de ida da decisão, na Fonte Nova, o Bahia venceu por 2×0. Aquele campeonato aconteceu com estádios lotados, por conta do programa de incentivo da época, Sua Nota É um Show, do Governo do Estado, que permitia a troca de notas fiscais por ingressos dos jogos do campeonato baiano. Teve rodada dupla com Bahia x Galícia e Vitória x Juazeiro, na Fonte Nova, por exemplo, com mais de 80 mil pessoas.

Enfim, toda comunidade envolvida em futebol no estado parou para ver o que aconteceria naquele 13 de junho no Barradão, local agendado para o jogo da volta (O Vitória tinha vantagem de empate em 180 minutos, teria que vencer por 2 ou mais gols de diferença). O Vitória tinha Petkovic, o Bahia tinha Uéslei. Joel Santana, campeão estadual em 93, 94, 95, 96 e 97 por cinco clubes diferentes (Vasco, Bahia, Fluminense, Flamengo e Botafogo) estava no banco do tricolor, pronto para mais uma conquista. Como todo bom adolescente apaixonado por futebol vivi uma semana inteira de poucos estudos, muito consumo de jornal, tv e rádio, com a ansiedade lá em cima, esperando o bendito horário das 16 horas de domingo. Estava pronto para curtir a final, mas nada aconteceu. Aliás, aconteceu algo que é pior que qualquer derrota em campo: não teve jogo. Ele foi transferido para os tribunais da Justiça Desportiva.

Por conta de uma liminar do Clube de Regatas Itapagipe, alegando que o Barradão não teria condições de abrigar o clássico (que já tinha acontecido lá na própria edição do Baiano) os clubes se desentenderam, o Bahia foi para a Fonte Nova e o Vitória, alegando não ter sido comunicado, foi para o Barradão. Cada um, ao seu modo, comemorou o título de arquibancadas vazias e o saco do constrangimento cheio.

Em tempo: pouco menos de um mês depois, o Bahia jogou no Barradão, contra o Vitória, pela 1ª partida da decisão da Copa do Nordeste.

“Sim, escriba” , você deve se perguntar e me perguntar: “E daí? Que triste. Quer um biscoito?” Dispenso açúcar, só quero o que é certo: o jogo limpo.

E este foi violentado em 1999. A “genialidade” dos dirigentes quase me fez desistir de consumir futebol. Eu juro que pensei nisso. Só não consegui colocar em prática. A ideia tosca de deslocar uma decisão que deveria acontecer no campo para os tapetes dos tribunais, com toda aparência de ter partido do Bahia, derrubou piche no livro da história do futebol baiano. Sob que aspecto isso poderia ser bom para quem está no futebol? O Campeonato acabou com um vergonhoso duplo WO e, anos mais tarde, com dois campeões sem glória.

Trouxe este exemplo, com alguma riqueza dramática e de detalhes, para destacar o compromisso de todos agentes do futebol para o estabelecimento da segurança jurídica no esporte bretão brasileiro. É lógico que as brechas nas letras das leis (alô, SAF), alguns julgamentos cujo resultados não entendemos bem, as aparentes incoerências e injustiças, um tribunal bancado por entidade esportiva que pode estar no banco dos réus em alguns momentos, por exemplo, são elementos associados ao campo jurídico que pesam muito para a concepção da ideia de que tudo depende das pessoas “bem vestidas” dos tribunais esportivos.

Porém, quando um clube se movimenta politicamente, de forma isolada e individualista, pela medida provisória do mandante, a  MP-984, ele conduz o futebol aos tribunais numa disputa com emissoras e outras agremiações.  Quando uma instituição tenta uma liminar pra jogar com público mesmo tendo ciência de um acordo coletivo que determinava algo diferente, ela leva disputas para o tribunal. Quando um outro clube percebe que seu parceiro “vacilou” em momento de tratativas de negociação e fecha com um atleta “livre” que pertencia a este clube, em tese, parceiro, ele leva a utilização do atleta ao tribunal. Quando dirigentes não se entendem por causa das cores dos seus kits de uniformes em um jogo do campeonato brasileiro, que deveriam ser definidas com muita antecedência, eles correm risco de levarem o jogo ao tribunal.  A verdade é que muito da insegurança jurídica do futebol, que afasta investidores e firma barreira a menos de 9 metros do desenvolvimento da indústria como um todo, vem dos próprios clubes, da imaturidade e da falta de competência de muitos dirigentes. E é apoiada por torcedores cegos no “amor”, que mudam o conceito de “justiça” por conveniência e acabam influenciando esses mandatários.  Recomendo, fortemente, o programa Reunião de Pauta, que fizemos no Futebol S/A, com a advogada desportiva Fernanda Soares, para aprofundar o tema.

Precisamos sim, lutar por tribunais independentes, por leis e, principalmente, pela aplicação delas com clareza, transparência e lisura. Precisamos sim, cobrar profissionais do ambiente jurídico mais preparados e com dedicação maior, exigir um ambiente que permita essa dedicação. E precisamos, claro, do bom senso de toda a comunidade esportiva no que diz respeito à coletividade, à justiça, à ética e à honestidade. Não é só para ser ou parecer altruísta, é para ser rentável. Mais que isso: do jeito que as coisas estão hoje em dia, o futebol brasileiro precisa desses valores para ser viável. Se a gente plantar laranja, não vai colher um pomar.

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Cáscio Cardoso é apresentador e comentarista esportivo da Rádio Sociedade da Bahia, do Podcast 45 Minutos e do Futebol S/A. Acredita em um futebol melhor a partir do aprofundamento das ideias e do equilíbrio na relação entre paixão e razão na condução do esporte mais encantador do mundo. É sócio do Futebol S/A.

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