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A volta dos que não foram?

No final do último ano esta coluna ficou parada por questões de saúde. Mas o esporte não parou, e ainda há muito o que comentar. Uma dessas coisas ainda está pendente de julgamento por parte da Justiça Desportiva e poderia mudar a composição da primeira divisão do Campeonato Brasileiro de 2022. Sete ex-jogadores do Avaí, cujos contratos não foram renovados ao final da temporada comunicaram, por meio do sindicato, o inadimplemento salarial à Justiça Desportiva, e há uma previsão específica no Regulamento Específico de Competição (REC) da Série B de 2021 sobre isso. Mas o que de fato pode acontecer?

Primeiro é preciso entender que a possível punição é baseada em um artigo do REC, não do Código Brasileiro de Justiça Desportiva, e isso muda muita coisa. Guardem isso, pois será tratado no final do texto para não acabar com o exercício jurídico mais uma vez.

Começaremos a análise então pelo que diz o texto do REC. Em seu artigo 17 o REC traz o que segue:

“Art. 17 – O Clube que, por período igual ou superior a 30 (trinta) dias, estiver em atraso com o pagamento de remuneração, devida única e exclusivamente durante o CAMPEONATO, conforme pactuado em Contrato Especial de Trabalho Desportivo, a atleta profissional registrado, ficará sujeito à perda de 3 (três) pontos por partida a ser disputada, depois de reconhecida a mora e o inadimplemento por decisão do Superior Tribunal de Justiça Desportiva (STJD).

  • 1º – Ocorrendo atraso, caberá ao atleta prejudicado, pessoalmente ou representado por advogado constituído com poderes específicos ou, ainda, por entidade sindical representativa de categoria profissional, formalizar comunicação escrita ao STJD, a partir do início até 30 (trinta) dias contados do encerramento do CAMPEONATO, sem prejuízo da possibilidade de ajuizamento de reclamação trabalhista, caso a medida desportiva não surta efeito e o clube permaneça inadimplente.”

De forma resumida, os clubes que tiverem pendências salariais com atletas durante a competição estarão sujeitos à perda de pontos. Para isso, os atletas precisam, pessoalmente, por meio de advogado constituído ou por meio do sindicato, notificar o STJD do atraso até 30 dias após o término da competição. Até aí, a análise não é favorável ao Avaí. Os requisitos parecem cumpridos e a perda de pontos parece questão de tempo, desde que comprovados os atrasos salariais.

Mas o parágrafo segundo do mesmo artigo traz a primeira boia de salvação para o clube. Vejamos.

“§ 2º – Comprovado ser o Clube devedor, conforme previsto no caput deste artigo, cabe ao STJD conceder um prazo mínimo de 15 (quinze) dias para que o Clube inadimplente cumpra suas obrigações financeiras em atraso, de modo a evitar a aplicação da sanção de perda de pontos por partida, sem prejuízo às penalidades administrativas previstas no RGC.”

Se reconhecido o atraso salarial superior a 30 dias, conforme previsto no caput do artigo, o clube ainda recebe um prazo de 15 dias para liquidar as pendências sem correr o risco de perder pontos. Ou seja, além do prazo extra para pagamento, o clube ainda coloca o atleta em posição delicada perante o mercado. Mas, ainda que seja questionável, foi a forma definida em regulamento para a aplicação da punição.

Aqui cabe um breve apontamento: os regulamentos de competição são aprovados pelos clubes, então é lógico que esses regulamentos trarão consigo uma série de instrumentos para impedir que eles sejam punidos. Não há qualquer participação dos atletas ou seus representantes nesse processo.

No entanto, a infração definida no caput do artigo 17 pode ser notificada ao STJD por qualquer pessoa, natural ou jurídica, não apenas por aquelas indicadas no parágrafo primeiro. Isso porque há previsão expressa no CBJD, artigo 74, e essa previsão não pode ser limitada por disposição de regulamento, já que hierarquicamente, em termos formais, o CBJD deve prevalecer sobre os regulamentos, mesmo que estes sejam considerados normas específicas enquanto aquele é uma norma geral. Isso porque esse conflito não possui ligação com as especificidades da competição, mas sim com a atuação da Justiça Desportiva, que não pode ser limitada por força de regulamento.

Mas, depois dessa breve interrupção, seguimos com a análise do que traz o regulamento. Os parágrafos terceiro e quarto trazem disposições que colocam os clubes em situação delicada.

“§ 3º – A sanção a que se refere o caput deste artigo será sucessiva e cumulativamente aplicada em todas as partidas do CAMPEONATO que venham a ser realizadas enquanto perdurar a inadimplência.

  • 4º – Caso inexista partida a ser disputada pelo Clube inadimplente quando da imposição da sanção, a medida punitiva consistirá na dedução de 3 (três) pontos dentre os já conquistados no CAMPEONATO.”

O parágrafo terceiro diz que, permanecendo a inadimplência, a pena será cumulativa. Isso quer dizer que, enquanto os clubes não regularizarem a situação, perderão 3 pontos por cada partida disputada após o reconhecimento da dívida pelo STJD. E o parágrafo seguinte traz que, mesmo encerrada a competição, o clube pode perder pontos, sendo punido com a perda de 3 pontos que tenham sido conquistados ao longo do campeonato.

Mas a bala de prata na norma vem logo em seguida.

“§ 5º – A regra valerá a partir do início do CAMPEONATO até 30 (trinta) dias após o seu término, não se considerando débitos trabalhistas anteriores e posteriores.”

A regra valerá até trinta dias após o término do campeonato. Ou seja, a regra já não é mais válida. Talvez aqui a intenção tenha sido limitar a notificação por parte dos atletas, mas o que o texto da norma diz é que a regra punitiva somente será válida até 30 dias após o término da competição, que em 2021 foi no dia 28 de novembro. Ou seja, no dia 29 de dezembro a norma já não era mais válida.

E aqui cabe destacar a diferença das normas temporárias desportivas, que é o caso, das Leis Penais Temporárias, como foi o caso da Lei 12.663/12, também conhecida como Lei Geral da Copa. Mas há uma diferença fundamental: a ultratividade das normas penais temporárias é garantida pelo próprio Código Penal, em seu artigo terceiro. Já no caso das normas punitivas desportivas, não há qualquer menção à ultratividade das normas, especialmente aquelas que resultam em perda de pontos. Isso porque é um dos princípios básicos do Direito Desportivo Disciplinar a prevalência, continuidade e estabilidade das competições, também conhecido como pro competitone.

Nesse caso, a norma limitar sua eficácia a 30 dias após o término da competição atende àquilo que é a essência desse princípio. Caso a questão não tenha sido resolvida até 30 dias do término da competição, os efeitos esportivos cessam, não sendo os direitos trabalhistas pertencentes aos atletas afetados.

Precisamos ressaltar, por uma coincidência de prazos, que a aplicabilidade da norma fica prejudicada não pelo prazo prescricional específico de trinta dias, definido pelo inciso I do artigo 165-A do CBJD, mas pelo término da vigência da norma, que acarreta sua inaplicabilidade, uma vez que considerar ultrativa norma punitiva desportiva não só não possui embasamento legal, mas vai contra os princípios gerais do Direito Desportivo.

Ou seja, não há mais qualquer norma vigente que possa resultar em punição ao Avaí. Mas, seguindo com o exercício jurídico, vamos supor que o STJD entenda pela ultratividade da norma. Ainda assim, eventual punição ao Avaí seria absolutamente ilegal.

Lembremos do que foi dito no começo do texto: essa norma está prevista em regulamento, não no CBJD. E segundo o artigo 52 da Lei 9.615/98, a Lei Pelé, a Justiça Desportiva tem “competência para processar e julgar as questões previstas nos Códigos de Justiça Desportiva”. E considerando que as penas disciplinares desportivas somente poderão ser aplicadas pela Justiça Desportiva temos que qualquer pena prevista em regulamento é inaplicável. Nesses casos, o máximo que pode ser feito pela Justiça Desportiva é aplicar a pena prevista no artigo 191 do CBJD, em razão do descumprimento do regulamento.

Caso as entidades de organização do esporte entendam fundamental a instituição de novas infrações disciplinares, podem apresentar ao CNE códigos próprios, como foi feito por exemplo pela Confederação Brasileira de Rugby. Apenas assim poderão os órgãos da Justiça Desportiva aplicar quaisquer penas diferentes daquelas previstas no CBJD.

Sendo assim, pode ficar tranquilo torcedor do Avaí. Não há base legal para que o clube perca pontos e volte para a Série B.

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