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A vulnerabilidade contratual do atleta da luta

Recentemente falamos de caso de atleta do ONE Championship que, por conta de descumprimento contratual por parte do evento, sinalizou o desejo de não mais ter relação de trabalho com a promoção, uma vez que esta não lhe oferecia lutas da maneira como fora contratado.[1]

A controvérsia presente na questão repousa no fato, já repisado em outros textos, de que o atleta é exclusivo da promoção, embora não afira salário para esperar lutas.[2]

Ou seja: o atleta, ativo exclusivo da promoção (ao menos é assim que o evento parece “enxergar” o lutador), espera que o evento lhe dê ao menos o mínimo de lutas previstas no contrato, não podendo lutar em concorrentes. O evento, que não paga salário ao atleta, não lhe usa quando deveria e deixa este â mercê de sua vontade comercial, por força da tal cláusula de exclusividade (ou clausula de não-concorrência).[3]

Alice Monteiro de Barros explica que a cláusula de não concorrência só pode prevalecer em situações excepcionais, quando necessária para a proteção dos legítimos interesses do empregador, limitada a determinado período, e mediante uma compensação a ser paga ao empregado.[4]

Destarte, tal cláusula se afigura abusiva. Consideram-se abusivas as cláusulas de contrato de consumo ou as condições gerais dos contratos que atribuem vantagens excessivas ao fornecedor ou predisponente, acarretando contrapartida demasiada onerosidade ao consumidor ou aderente e desarrazoado desequilíbrio contratual. Por meio delas, o fornecedor ou o predisponente, abusando da atividade que exercem e da debilidade jurídica do aderente ou consumidor, estabelece conteúdo contratual iníquo, com sacrifício do razoável equilíbrio das prestações.[5]

É a existência do poder contratual dominante, nos contratos de adesão e nos contratos de consumo, presumida pela lei, que converte uma cláusula em abusiva. Essa mesma cláusula, em contrato comum livremente negociado, que presume a inexistência de poder negocial dominante, pode ser considerada válida.[6]

Não é desconhecido do público em geral o poder financeiro dos eventos de luta, com destaque para o UFC, sendo que é quase impossível para a maioria dos atletas (à exceção de campeões já consagrados, como Jon Jones), negociar em pé de igualdade com a promoção e evitar a presença de cláusulas em seus contratos que podem ser consideradas abusivas.

Ainda, o pacto de não concorrência gera expectativa de indenização, de sorte que o contratante não possui o direito de renunciar ao acordado, pois, de modo contrário, estaria agindo em desacordo com a boa-fé objetiva que se espera dos contratantes (art. 422 do CC), bem como em desconformidade com o art. 122 do Código Civil.[7] Por isso, não seria lícito que o evento, que não paga o atleta valor algum antes que ele tenha lutado, deixe de convocá-lo para lutar sem justificativa ou ressarcimento algum.

Segundo explica Orlando Gomes, não cumprindo o obrigado, sem as dirimentes do caso fortuito ou da torça maior, configura-se procedimento culposo, ao menos como violação de um dever jurídico.[8]

Nessa perspectiva, entende-se que a liberdade contratual não pode ser ilimitada, o que, certamente, vem a favorecer a prática de abusos, exageros e exploração do mais fraco pelo mais forte, que buscará, sempre, através do contrato, obter vantagens que, socialmente, não podem ser aceitas.[9]

Poder-se-ia falar mesmo em “perda de uma chance”, uma vez que o lutador, credor do contrato quanto à possibilidade de exigir o mínimo de lutas previsto, ao deixar de lutar e não se ativar em outra promoção, vê sua carreira estagnar. Dessarte, o credor/lutador não conquista posição benéfica, cuja efetiva chance estava por vir, mas foi suprimida em função do inadimplemento absoluto imputável ao obrigado (evento de luta). Indeniza-se, assim, a oportunidade que poderia ter sido materializada tanto de auferir proveito quanto de evitar perda.[10]

No caso acima, o pagamento de um salário mensal ao atleta que o evento deseja que seja exclusivo elidiria tal obrigação da promoção em ressarcir o atleta por “perda de uma chance” em eventual ação judicial.

No entanto, isso ainda não é uma realidade no mundo da luta. Apenas uma mudança na legislação, provocada primeiramente pelos tribunais, poderia realmente criar um cenário mais justo e seguro para o atleta da luta profissional.

Crédito imagem: Depositphotos

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[1] https://leiemcampo.com.br/a-quebra-de-contrato-diante-da-falta-de-lutas-no-one-championship/.

[2] https://www.conjur.com.br/2024-set-13/counterfeit-liberty-a-falsa-liberdade-contratual-do-trabalhador-da-luta-com-base-no-modelo-dos-eua/.

[3] https://www.conjur.com.br/2024-mai-11/o-fim-da-clausula-de-exclusividade-em-contratos-de-atletas-da-luta/.

[4] BARROS, Alice Monteiro de. Curso de direito do trabalho. 5. ed. São Paulo: LTr, 2009, p. 259.

[5] LOBO, Paulo. Direito Civil – Volume 3 – Contratos. 11. ed. São Paulo: SaraivaJur, 2025, p. 111.

[6] Ibid., p. 112.

[7] NETO, Célio Pereira Oliveira. Cláúsula de não concorrência no contrato de emprego: efeitos do princípio da proporcionalidade. São Paulo: LTr, 2015, p. 124.

[8] Orlando Gomes, Obrigações, n.° 111, p. 164.

[9] ROBOREDO, Alda Regina Revoredo. Contrato: função social e cláusulas abusivas. Curitiba: Juruá, 2007, p. 124.

[10] NANNI, Giovanni Ettore. Inadimplemento absoluto e resolução contratual: requisitos e efeitos. São Paulo: Thomson Reuters, 2021, p. 338.

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