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Álvaro Melo Filho: coerência, integridade e independência

Estamos no mês do aniversário do Prof. Álvaro Melo Filho, que se comemora no próximo dia 31 de julho. Será o primeiro sem ele, mas também o primeiro em que mais do que nunca sua presença será tão fortemente lembrada.

Proponho que se recorde de Álvaro Melo Filho em suas três e indivisíveis dimensões: humana, acadêmica e profissional. Todas sempre unidas tanto por uma história de coerência, integridade e, sobretudo, independência. Nunca se esquecendo, porém, de suas reconhecidas generosidade e humildade.

Álvaro consegue ser lembrado hoje por todos como um líder incontestável da área do Direito Esportivo. No meu entendimento, isso se dá em razão de ter sido antes de tudo um homem da academia. Professor Emérito da Universidade Federal do Ceará, onde dirigiu sua Faculdade de Direito, detentor de títulos universitários conquistados sempre com defesa de trabalhos científicos de reconhecida envergadura, Álvaro deixou um legado enorme em obras que tratam sobre esporte e direito, principalmente quanto à sua vertente constitucional.

Álvaro também nos é muito querido porque conseguiu manter-se independente para produzir academicamente e transitar no mundo do esporte. Atuava como consultor jurídico na área e, na advocacia, atuava ao lado de dirigentes esportivos, mas fazia isso por sua livre escolha e por entendimento intelectual de que era o correto. Ele não se sustentava financeiramente dos trabalhos na advocacia privada, visto que era professor universitário e procurador do Banco Central. Nem mesmo um escritório de advocacia formal mantinha nesses últimos tempos em que já estava aposentado no serviço público. Assim, não bajulava ninguém, não entrava em disputa mesquinha e muito menos deixava de lado o rigor acadêmico no que escrevia, mesmo quando contratado para escrever pareceres.

Esta independência profissional e científica do mesmo modo se ligava à forma pessoal com que se dirigia às pessoas. Nunca vi o Álvaro envolvido em disputas políticas menores, no cabotinismo das auto-homenagens e do carreirismo que infelizmente se perpetuam na nossa área. Nem muito menos o vi pedir reconhecimento de quem quer que seja.

Nos últimos anos vinha dizendo que se chateava com esses aspectos tristes que presenciávamos no setor, mas não levantava a voz. Apenas o vi se distanciando um pouco mais.

Ainda assim, o que o movia até o final era uma alegria enorme de atuar em nome do esporte, de estar ao lado dos jovens que produziam na área.

Presenciei o Álvaro sendo ofendido pessoalmente de modo bastante grosseiro em duas ocasiões, ambas em ambientes solenes. Ele não só ouviu em silêncio como não revidou os ataques.

Sempre que buscava se diferenciar de alguém fazia por meio de textos. Nos seus livros há belas repostas a infelizes personagens que passaram por nossa história.

Convivi mais de dez anos com o Álvaro. Trabalhamos em projetos importantes, como o novo Código Brasileiro de Justiça Desportiva (CBJD) em 2009, ainda vigente; a regulamentação da Lei Pelé (Decreto n° 7.984, de 2013), também em vigência; e, mais adiante, na luta contra as inconstitucionalidades da medida provisória que instituiu o PROFUT; assim como em nosso trabalho mais denso: a Comissão de Juristas do Senado Federal que elaborou o anteprojeto de Nova Lei Geral do Esporte, hoje PLS 68/2017 e PEC 9/2017, atualmente em trâmite naquela casa legislativa.

Álvaro foi durante todo este tempo um amigo próximo, terno e alegre. Daqueles que ligam para saber se está tudo bem com você. Nas últimas vezes em que nos falamos, sua principal preocupação era com a saúde de minha mãe. Ligava para falar de um remédio, uma vacina, ou somente para dar uma palavra de apoio.

Sobre ele próprio, nenhuma reclamação. Sempre mostrando-se disposto e feliz. Sua disposição era tão grande que, mesmo nos últimos anos, continuava a fazer as longas viagens de bate volta Fortaleza – Rio de Janeiro – Fortaleza para atender reuniões com clubes. Eu brincava que ele era mais jovial que eu próprio. Ele ria bastante.

Álvaro Melo Filho foi também para mim um professor dedicado e próximo. Foi não só o primeiro autor de Direito Esportivo que li, como quem mais me encaminhou na leitura de outros juristas de nossa área. Sempre que viajava para o exterior, voltava com um livro sobre o tema de minha pesquisa na Universidade de Brasília (UnB): a autonomia esportiva. Sem qualquer pedido meu, tirava cópia de textos esgotados e me enviava.

Tinha tanto rigor acadêmico que me apresentava aos autores que discordavam dele. Um dia me ligou e disse, “olha, tem uma professora do interior de São Paulo, de nome Márcia, escreveu um livro em que apresenta dissidência com minha linha acerca da autonomia desportiva. Importante que você leia”.

Nós mesmos mantínhamos algumas discordâncias, sendo a principal registrada no julgamento da ADI 2937 pelo Supremo Tribunal Federal (STF), em 2012. Eu, enquanto Consultor Jurídico do Ministério do Esporte, instruindo a manifestação final da Advocacia-Geral da União (AGU) no processo, em defesa da constitucionalidade do Estatuto do Torcedor; justamente em oposição aos argumentos que o autor da ação utilizou, todos baseados na obra de Álvaro Melo Filho. O próprio Ministro Relator chega a citá-lo no voto que conduziu o Plenário contra as pretensões do partido que propôs a ADI.

Alguma indisposição por parte do Álvaro em razão de minha posição? Zero, nenhuma. Ao contrário, ele sempre se mostrava aberto ao debate, ao dissenso acadêmico ou profissional. Certo dia ele chega a Brasília com uma separata que havia publicado naqueles dias. O título era “Do homo futbolisticus e do Direito Futebolístico”. Ao me entregar, disse que nela ela se voltava um pouco à ideia de que no Brasil o “Direito Desportivo” não era um ramo totalmente vinculado ao “direito privado”, mas que estava como em um misto entre esse o “direito público”. Refletia, assim, que se aproximava mais do que eu estava defendendo àquela época, como quando da defesa judicial do Estatuto do Torcedor. Ensinava literalmente aprendendo. Hoje eu vejo que aprendi com ele que seus argumentos estavam em grande parte corretos. Sou mais filiado atualmente ao o que o Álvaro dizia estar se afastando em sua linha acadêmica.

Poucos sabem disso, mas não só é da autoria de Álvaro Melo Filho a redação inicial ao que hoje se consubstancia como a constitucionalização do esporte no Brasil (a Seção III, do Capítulo III, do Título VIII da Constituição Federal de 1.988, onde se insere o art. 217), que fez a pedido do então presidente do Conselho Nacional de Desportos (CND), o Professor Manoel Tubino, como deste seu mestre discordou tão frontalmente quando escreveu à Assembleia Nacional Constituinte em nome Confederação Brasileira de Futebol de Salão, à qual presidia àquela altura, requerendo que passassem a utilizar o vocábulo “desporto” ao invés de “esporte”:

Sugere-se, sem xenofobismo, que ao invés do vocábulo (do inglês “sport”), utilizem os constituintes o substantivo Desporto, consagrado não só na literatura especializada, como também na linguagem dominante entre dirigentes desportivos e atletas. (in PARENTE FILHO, Marcos Santos (org.). Esporte, educação física e Constituição. São Paulo: Ibrasa, 1989. pp. 67-68).

Imaginem a seguinte situação: Manoel Tubino, mundialmente consagrado professor universitário na área do esporte, dirigente internacional de entidades de educação física, de formação militar e todo poderoso presidente do temível CND, defendia a utilização do termo “esporte” ao invés de “desporto”. Além disso, ainda que soubesse da influência do pai fundador do Direito Esportivo brasileiro João Lyra Filho na cristalização da palavra “desporto” na legislação nacional desde 1941, escreveu no livro “O que é esporte” que: “Entretanto, pela sua universalidade, e pela tendência internacional de relacionar a teoria esportiva a uma ciência do esporte, continuo a preferir o termo esporte.” Não obstante, o seu “discípulo” Álvaro não só discordou do mestre como convenceu os constituintes a empregar o termo “desporto” na nova Constituição.

Ainda assim, seja nos nossos trabalhos na Comissão de Juristas do Senado Federal em 2015/2016 seja como membro de minha banca de defesa de tese de doutorado na UnB em 2017, Álvaro Melo Filho nunca discordou de que passássemos a utilizar o vocábulo “esporte”.

Aliás, Manoel Tubino fez reconhecimentos públicos quanto ao protagonismo que Álvaro Melo Filho teve ao seu lado na inserção do esporte na Constituição de 1988. Também se lembrou dele quando, em entrevista na ESPN, disse que foi de autoria do Álvaro o parecer submetido ao CND para resolver a disputa entre Flamengo e Sport quanto título brasileiro de 1987.

Álvaro me contou também que ficou surpreso quando o ex-jogador Zico, já como integrante do Governo, o convidou para não só continuar atuando no CND como para auxiliar na redação da lei geral sobre esporte que queriam aprovar e que ficou conhecida por Lei Zico.

Ainda sobre este período do início dos anos 1990, Álvaro gostava de lembrar que com uma só canetada conseguiu fazer anular toda a herança intervencionista e autoritária do antigo CND. Isso quando ainda atuava no órgão. Com sua Lei Zico acabou por conseguir extinguir o CND.

Isso dá a dimensão de que Álvaro Melo Filho estava na prática fazendo valer o comando do art. 217 da nova Constituição que ele ajudou a redigir, qual seja: autonomia esportiva. Ele denominou esta vitória como a “carta de alforria do esporte”.

Digo, por fim, que sem a labuta acadêmica e a insistência política de Álvaro Melo Filho, dificilmente teríamos um texto constitucional tão avançado também em matéria esportiva.

Por tudo isso, não tenho dúvida em dizer que Álvaro Melo Filho deve ser reconhecido como o pai fundador do Direito Constitucional Esportivo brasileiro.

Álvaro será sempre lembrado por seu sorriso e sua generosidade, mas também por um número: 217. E isso significa muito para a história do esporte brasileiro.

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