Foi notícia no UOL. Pelo segundo mês consecutivo, o Santos fez um corte de 70% dos salários dos atletas e outros empregados. A decisão não tem o consentimento do elenco, o que mostra que o clube insiste em correr sérios riscos jurídicos. E financeiros.
O clube diz se apoiar na Medida Provisória 936, que autoriza uma redução salarial excepcional em função da pandemia. Em abril, o STF autorizou essa redução, e foi além, disse que ela poderia ser feita em um acerto entre empregador e empregado, dispensando o acordo coletivo como determina a Constituição Federal (e só isso já dá uma boa discussão jurídica).
O art 7º da CF, VI, determina que salário só pode ser reduzido por acordo ou convenção coletiva. E a CLT, no artigo 468, dispõe que só é lícita a alteração das condições contratuais por consentimento, e ainda assim se não resultar, direta ou indiretamente, prejuízos ao empregado.
A decisão do Supremo, tomada em função da pandemia, dispensa a negociação coletiva, mas deixa claro que precisa haver um acordo individual entre empregado (atleta) e clube (empregador) para que a redução salarial seja reconhecida, o que não aconteceu no caso do time paulista. O clube simplesmente parou de pagar 70% dos salários dos empregados.
Agindo assim, o clube abre caminho inclusive para que os atletas busquem a rescisão contratual na Justiça. A Lei Pelé estabelece que com 3 meses de salários atrasados, “no todo ou em parte”, o atleta pode buscar a rescisão indireta do contrato.
Esse risco jurídico pode trazer prejuízo financeiro gigante. Se a Justiça reconhecer a inadimplência do clube por três meses, e o rompimento do contrato, além de perder o atleta, o Santos teria que pagar ao atleta a clausula compensatória, uma multa pelo rompimento (normalmente o valor do contrato até o fim).
Conversei com colaboradores do Lei em Campo, e eles também acreditam que o clube toma um caminho perigoso. Luciane Adam, advogada especializada em direito trabalhista diz que “o clube não seguiu o que diz a MP 936. Os atletas podem acionar o Ministério Público do Trabalho ou judicializar”.
Theotônio Chermont, advogado especializado em direito esportivo, diz que entende “ser completamente ilícita a redução, pois em qualquer hipótese prevista na MP 936 é obrigatório que seja celebrada através de acordo, nunca de forma impositiva. Creio que não há como sustentar essa redução em juízo, pois muito provavelmente alguns empregados reclamarão o pagamento das diferenças suprimidas, que o Santos tomou um caminho perigoso, sem amparo legal”.
Maurício Corrêa da Veiga, advogado especializado em direito esportivo, vai na mesma linha: “Claro que estamos atravessando uma situação de anormalidade e a redução deverá ser acordada até mesmo para que o clube possa se manter. Porém, me parece que neste caso o patamar da redução é muito elevado e desamparado de base legal. O art. 503 da CLT autoriza redução, mas no percentual de 25%, na hipótese de um ato imprevisível (que a pandemia se enquadra), mas com a autorização mediante negociação coletiva. Entendo que a negociação coletiva pode ser dispensada nessa hora por força da decisão do STF”.
Agora, também se faz importante entender como o movimento esportivo tem enfrentado a questão contratual em função da pandemia.
No documento FIFA COVID-19, expedido em 3 de abril de 2020, a entidade mundial de administração do futebol reconhece que muitos contratos não serão cumpridos como originalmente previsto por nenhuma das partes, e que as legislações nacionais têm entendimentos diferentes sobre o tema, o que não pode ocorrer no futebol organizado, que tem que tratar de forma similar os casos similares.
O documento da FIFA tem com objetivo “garantir algum pagamento para jogadores e treinadores, evitar litígios, proteger a estabilidade contratual e garantir que clubes não declarem falência”, e lembra Felipe Mourão, advogado e professor, que ele “estabelece que rescisões unilaterais somente serão reconhecidas se realizadas da forma que prescreve a legislação nacional de cada país ou eventuais acordos coletivos e sindicais existentes.” Mesmo assim, Mourão pondera que “neste pontual e delicado momento de pandemia, que afetou drasticamente o futebol negócio e suas receitas, configura uma conjuntura em que pode ser invocado pelos clubes de futebol o instituto da força maior, que impede que obrigações contratuais sejam cumpridas da forma ajustada. Assim, entendo que eventuais pedidos de rescisão unilateral por inadimplemento salarial deverão ser analisados com maior cautela pela Justiça do Trabalho”.
Claro que a decisão do STF sobre a MP 936, que o Santos usa de apoio para a diminuição salarial, deu mais poderes aos clubes, mas não um poder absoluto. A decisão fala em negociação individual, e nunca em decisão unilateral.
Ou seja, o atleta não é obrigado a aceitar uma redução salarial. Como em todo contrato de trabalho, qualquer alteração tem que ser por consentimento das duas partes.
Caso ele não concorde, o clube pode, sim, demiti-lo, mas terá que arcar com os custos da demissão.
Negociar é fundamental nessa hora, e buscar alternativas. O Santos pode oferecer que uma parte do salário seja paga mais tarde, ou oferecer uma prorrogação do contrato. Ele precisa negociar com o atleta.
A crise é gigante. E nesse momento todos irão perder. Mas, quem tem responsabilidade e compromisso social, sabe que quem tem mais cede mais, e quem tem menos cede no limite do suportável.
Clubes e atletas precisam ouvir, conversar e analisar propostas. Apesar da decisão do STF sobre a MP 936, o Direito precisa estar sempre atento, pois mesmo em grandes crises não pode esquecer seu principal compromisso: ser justo.
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