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Apostas esportivas e as regras nos esportes de combate

Introdução

Na quinta, 15 de agosto, realizamos o XIII Jurisports, tradicional evento anual da Academia Nacional de Direito Desportivo.[1] Tive a honra de mediar o Painel 3, intitulado “Apostas Esportivas e Manipulação de Competições”, que foi composto pelos célebres doutores Udo Seckelmann, Luciano Pinheiro e Marilia Fontenelle.

Em debate, os painelistas discutiram a eficácia da Lei 14.790/2023, que trata da regulamentação das apostas fixas, diante da possibilidade de manipulação de resultados.

Fato é que, embora no artigo 26, § 1º, da lei, haja previsão de nulidade de aposta feita por atleta envolvido em competição da qual participa (já que este estaria inserido na figura prevista no inciso V do mesmo artigo, tendo condições de influenciar diretamente no resultado de sua competição), a penalidade prevista em lei parece por demais branda.[2]

Não obstante, cumpre relembrar tema já discutido nesta coluna acerca da reprovabilidade de conduta de artista marcial diante dos princípios éticos de sua arte.[3] Considerando recente decisão do STJ[4], o artista marcial que se envolve em manipulação de resultados poderia ter aumento de sua pena em eventual condenação criminal, lembrando que tal conduta de manipulação esportiva encontra previsão na nova lei geral do esporte.[5]

Isso ocorreria pelo fato de que contribuir, direta ou indiretamente, para um resultado injusto em um combate seria o contrário do que pregam os valores morais inseridos nas artes marciais.[6]

Os valores morais tratam do bem e do mal, dos comportamentos sociais, investigando sobre uma visão mais crítica a atividade social do homem, o seu agir, sobre atitudes agressivas e principalmente do respeito com o outro.

Nas artes marciais esses valores se expressam nitidamente nos comportamentos sociais, eles vêm enfatizando o respeito, a lealdade, a disciplina e a hombridade, na tentativa de desassociar a visão capitalista, onde visa-se somente o lucro, o interesse em vencer a qualquer custo.[7]

Porém, as apostas têm o seu papel na criação do lado esportivo das artes marciais, relativo à forma como algumas artes se desenvolveram profissionalmente, como veremos.

Artes Marciais e a criação de regras esportivas através das apostas: o dilema esporte x arte marcial

  No livro Disputed Pleasures: Sport and Society in Preindustrial England[8], Thomas S. Henricks afirma que “talvez a maior fonte de criação de regras no esporte tenham sido as apostas”.

Henricks, na mesma obra, também observa que certas regras que fizeram parte da criação de alguns esportes surgiram para que apostar fosse mais simples, servindo as apostas como forma de organização do próprio esporte.

Embora as apostas esportivas sejam frequentemente atacadas como “influências malignas no esporte”, talvez seja mais justo dizer que, sem elas, o esporte nunca teria existido.

Nesse ínterim, lutas e apostas estão interligadas. A luta coloca um homem contra outro. Dois homens, e somente dois homens, criam uma luta. Se houver mais participantes, a natureza do exercício muda de um esporte para uma briga. Uma briga é uma expressão de desordem; as regras que criam o esporte fazem dele uma expressão de ordem. Quando dois homens competem, há uma inclinação humana natural para favorecer um homem em detrimento do outro. Assim, a luta é ideal para o jogo de azar. O comportamento que inicialmente não se distinguia de agressão e agressão foi gradualmente transformado, sob a pressão dos apostadores, em um padrão previsível.

No caso do boxe, as regras que regiam o novo esporte surgiram das interações dos rufiões locais. Quando ocorria uma briga entre dois jovens, as multidões, guiadas por seu senso de fair play, começavam a determinar no local o que era uma conduta aceitável e o que não era. Quando foi determinado que, assim como na luta livre, os lutadores poderiam usar apenas seus próprios corpos, incluindo cabeças, mãos e pés, e nenhuma outra arma era permitida, a forma básica do boxe tomou forma. Depois que essas duas regras (que apenas dois homens deveriam lutar por vez e que nenhuma arma artificial deveria ser usada) foram estabelecidas, o esporte começou a atrair atenção e recebeu novos nomes.[9]

Naturalmente, a criação de regras não parou por aí. Cada luta de boxe pode ter resultado na criação de novas regras pelos espectadores. Por fim, foi estabelecido um código de regras básicas. Esse código de regras era muito rudimentar. Ele era mantido apenas na mente dos espectadores e não estava escrito. Ainda assim, ele permitiu que o boxe ganhasse um número substancial de seguidores como um esporte novo e empolgante.

Essa esportivização nada mais é que o processo de mudança de certas práticas corporais para esporte institucionalizado. Nos dias atuais esse processo tem ampliado o número de modalidades esportivas em todo o mundo. Quando uma prática corporal recebe em seu seio a esportivização, normalmente ela passa a existir em duas formas: a sua forma original, não esportiva (mantendo seus valores originais), e em sua forma esportivizada (regras criadas para um campeonato).[10]

Inspirados no boxe, várias artes marciais passaram a serem praticadas como esportes de combate, inclusive com o uso de regras e proteções semelhantes, como lutas com rounds, luvas e capacetes. Foi o caso do kickboxing (que veio do Karate e do Muay Thai)[11] e do MMA, que deixou de ser conhecido como Vale-tudo.

Porém, a esportivização de artes marciais clássicas nem sempre são bem vistas aos olhos dos alunos e mestres conservadores. Muito de seu contexto e apelo vem justamente do foco tradicional no qual são embasadas. Nascidas em tempos de guerra, trabalham a mentalidade do aluno para o combate, mas acima de tudo, valorizam a preparação absoluta do praticante: o físico, o espiritual, o psicológico, o técnico e o estratégico. Para aqueles que buscam tais segmentos, pouco importa a aplicação imediata como defesa pessoal.[12]

Como exemplo, o Karate, que originalmente tinha o objetivo de desenvolvimento de técnicas eficazes para o combate real (pois floresceu e foi desenvolvido entre guerreiros e piratas de Okinawa) foi alterando-se fortemente desde sua disseminação para o restante do mundo.  E modifica-se ainda mais nas últimas três décadas, quando condicionada aos valores olímpicos –tal como proposto por Pierre de Coubertin (1863-1937) –passa a seguir as exigências do Comitê Olímpico Internacional (COI), visando fazer parte, como modalidade esportiva, do programa dos Jogos Olímpicos (JO). Dessa maneira, percebe-se uma descaracterização e afastamento dos objetivos originais.[13]

A partir daí, podem ser tiradas as seguintes conclusões: a instituição de regras, estimuladas para que fosse mais fácil apostar, tornou possível a existência e popularização de determinados esportes de combate, transformando artistas marciais em profissionais e lhes dando uma possibilidade de carreira dentro da própria arte marcial. Porém, as mesmas artes que geraram o esporte de combate acabaram por se descaracterizar – a despeito de se tornarem mais populares – pelo fato de que objetivo original de seus criadores nunca foi a competição em si, e sim a formação do caráter de seus praticantes e a defesa pessoal dos mesmos.

Considerações finais

Os jogos de azar transformaram o jogo aleatório em esporte. Os esportes de combate devem sua forma e popularidade ao controle que as apostas impuseram às suas regras, como o uso de luvas, número definidos de rounds e pontuação, não necessitando sempre que os atletas venham à nocaute para o fim da luta.

Porém, é digno de nota que muitos praticantes buscam hoje a arte marcial apenas pela prática esportiva.

Outrossim, embora o jogo de azar seja frequentemente ridicularizado como uma influência corruptiva, em um sentido mais amplo, devido à sua insistência em regras padronizadas, é inegável que este criou um ambiente seguro que fez do esporte a moda entusiástica da sociedade.

Ao evitar lutas até a morte como regra, as apostas ajudaram a preservar a integridade físicas dos atletas no esporte de combate.

Se não há como obrigar o indivíduo a priorizar o lado mais tradicional da arte marcial, fato é que ao menos existem regras que garantirão a sua segurança na prática esportiva, vertente esta que não pode ser ignorada.

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[1] Disponível em: https://www.youtube.com/live/27XonzZesXQ?si=pWNaLJIPmebkoH3X.

[2] Ver mais em: COSTA, Elthon José Gusmão da. Regulamentação de apostas nos esportes de combate. Consultor Jurídico, Brasil, 2 mar. 2024. Disponível em: https://www.conjur.com.br/2024-mar-02/regulamentacao-de-apostas-nos-esportes-de-combate/. Acesso em: 18 ago. 2024.

[3] COSTA, Elthon José Gusmão da. A prática desportiva e as artes marciais: a obscuridade na decisão do STJ acerca dos valores éticos na luta. Lei em Campo, Brasil, 22 jul. 2024. Disponível em: https://leiemcampo.com.br/a-pratica-desportiva-e-as-artes-marciais-a-obscuridade-na-decisao-do-stj-acerca-dos-valores-eticos-na-luta/. Acesso em: 18 ago. 2024.

[4] Brasil. Superior Tribunal de Justiça. AgRg no AREsp n. 2.053.119/SC, relator ministro Jesuíno Rissato (desembargador Convocado do TJDFT), Sexta Turma, DJe de 30/6/2023.

[5] LEI Nº 14.597, DE 14 DE JUNHO DE 2023

(…)

Art. 200. Fraudar, por qualquer meio, ou contribuir para que se fraude, de qualquer forma, o resultado de competição esportiva ou evento a ela associado:

Pena – reclusão, de 2 (dois) a 6 (seis) anos, e multa.

[6] Denominei de “compliance das artes marciais” a situação de que, em um combate esportivo, no caso de um atleta que resolva “entregar” a luta, este precisaria lidar com o mestre e colegas que o treinam e poderiam perceber que o atleta não está lutando para vencer, se deixando dominar pelos golpes do adversário. Isso poderia gerar um conflito ético no atleta e, mesmo motivado pela promessa de dinheiro que viria caso se deixe dominar pelo adversário, ainda poderia declinar de tal vantagem diante dos valores éticos que adquiriu na prática da arte e da obrigação moral que tem para com seu mestre e colegas de treino. Exemplo disso foi o caso do atleta Tae Hyun Bang. Lutando no UFC Fight Night 79 em Seul, na Coreia do Sul, Bang enfrentaria Leo Kuntz em uma luta no card preliminar. Quando houve uma grande oscilação nas chances de apostas da luta, o UFC o abordou antes da luta com perguntas. Com medo depois de ter concordado em perder a luta de propósito para que os apostadores pudessem capitalizar, Bang mudou de ideia e lutou normalmente. Ganhando uma decisão dividida sobre Leo Kuntz, Tae Hyun Bang foi contra os apostadores e teve sua vida ameaçada. Com medo e assustado, Bang procurou a polícia coreana e acabou sendo indiciado por manipulação de lutas. Após a conclusão de todo o processo, ele foi condenado a 10 meses de prisão, e 120 horas de serviço comunitário, embora a corte tenha levado em consideração que ele devolveu todo o dinheiro da luta e buscou vencer o combate.

[7] MAYER, CARLOS HENRIQUE SILVA; ANDRADE, PÂMELA NASCIMENTO. OS VALORES ÉTICOS DAS ARTES MARCIAIS E SUA PRESENÇA NA PRÁTICA. Orientador: Fábio Luiz Loureiro. 2015. Trabalho de Conclusão de Curso apresentado à disciplina Seminário Introdutório de Projetos do Curso de Bacharelado em Educação Física, Centro de Educação Física e Desportos, Universidade Federal do Espírito Santo, como requisito parcial para processo de avaliação. (Bacharelado em Educação Física) – UNIVERSIDADE FEDERAL DO ESPÍRITO SANTO – UFES CENTRO DE EDUCAÇÃO FÍSICA E DESPORTOS, Vitória – ES, 2015. Disponível em: https://cefd.ufes.br/sites/cefd.ufes.br/files/field/anexo/Carlos%20e%20Pamela%20-%20OS%20VALORES%20ETICOS%20DAS%20ARTES%20MARCIAIS%20E%20SUA%20PRESENÇA%20NA%20PRATICA.pdf. Acesso em: 18 ago. 2024.

[8] HENRICKS, Thomas S. Disputed pleasures: sport and society in preindustrial England. New York: Greenwood Press, 1991.

[9] ALLEN, Arly. The Beginning of Boxing in Britain, 1300-1700. North Carolina: McFarland, 2020, p. 125.

[10] MAYER; ANDRADE. Op. Cit., p. 14.

[11] BARCENA, David Leonardo. Historia del Kickboxing En Japón: del Muay Thai Al K-1. Espanha, 2020.

[12] MAYER; ANDRADE. Op. Cit., p. 15.

[13] Oliveira MA  de,  Frosi  TO, Sonoda-Nunes  RJS,  Pimenta  TFF,  Reis-Júnior  CAB,  Amstel  NA  van. De “maõs  vazias”  a  “mãos  com  luvas”:  Uma  análise  sociológica  sobre  o  Karate  e  os  Jogos  Olímpicos. Olimpianos –Journal of Olympic Studies. 2018; 2(1): 324-342.

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