Após a Corte Arbitral do Esporte (TAS) julgar improcedente o recurso da corredora Caster Semenya contra as regras determinadas pela Federação Internacional de Atletismo (IAAF) para controle de testosterona de atletas, a Associação Médica Mundial recomendou que os médicos não façam nenhum tipo de procedimento de redução hormonal em atletas, por considerar a medida antiética. Um dos métodos para a redução da testosterona é o uso de contraceptivos hormonais.
“Temos fortes reservas quanto à validade ética dessa determinação. Ela é baseada em evidências fracas de um único estudo, que atualmente está sendo amplamente debatido pela comunidade científica. Eles também são contrários a várias declarações éticas importantes da WMA, e, como tal, estamos pedindo sua retirada imediata”, disparou o presidente da entidade, Leonid Eidelman.
A IAAF é signatária do Código Médico do Movimento Olímpico do COI, que a obriga a seguir a Declaração de Helsinque, adotada pela Associação Médica Mundial.
Para especialistas, a decisão da WMA joga pressão na IAAF.
“Consideraram a decisão eticamente reprovável do ponto de vista médico. Mostra que a decisão já causa polêmica. Vários dos especialistas que atuaram no caso defendendo a Semenya têm publicado que a evidência científica apresentada pela IAAF não é válida pelos outros cientistas, que não conseguem reproduzir os resultados. A vantagem que a Caster teria não teria sido comprovada”, afirma o advogado Américo Espallargas, especializado em Direito Esportivo.
“Essa decisão dos médicos deixa evidente e ressalta a dificuldade que a IAAF vai ter para implantar essa medida. Acredito que teremos novos desdobramentos desse caso”, completa Vinícius Calixto, advogado especialista em Direito Esportivo e Direitos Humanos.
O regulamento aprovado pela IAAF, que passou a valer no último dia 8 de maio, exige que, para competir em provas de longa distância, de 400 metros a uma milha (1.609 metros), qualquer atleta que tenha o Distúrbio de Desenvolvimento Sexual (DSD) terá de reduzir a taxa de testosterona. Para a federação, as provas nessas distâncias são aquelas nas quais os níveis mais elevados de testosterona podem ter influência mais profunda sobre o desempenho, já que é quando atributos como velocidade, força e resistência são mais determinantes para indicar o vencedor.
Quem tiver hiperandrogenismo, ou seja, apresentar níveis elevados de testosterona, terá de reduzir o volume do hormônio que circula em seu sangue por seis meses antes de poder competir tanto nas Olimpíadas quanto em campeonatos mundiais. Na prática, a decisão significa que algumas mulheres deixarão de ser consideradas mulheres se quiserem participar das provas nessas distâncias.
Em um movimento que parecia antecipar a decisão do CAS, Semenya já vinha disputando os 1.500 metros, apostando que a distância não seria afetada. Ela tinha conseguido inclusive um bronze e um ouro recentemente nessa distância.
O CAS recomendou ainda que a IAAF não aplique a restrição para a prova de 1.500 metros até que haja mais evidências de que existe vantagem para mulheres com hiperandrogenismo nessa disputa. Porém, o presidente da IAAF, Sebastian Coe, já afirmou que a medida também será colocada em prática nos 1.500 metros.
“O mais grave são as violações aos direitos humanos. Ao proferir essa decisão, o CAS está ferindo preceitos básicos dos direitos humanos, inclusive o direito à dignidade humana; mulheres devem ter controle sobre seus corpos, é uma decisão afrontosa, e vai ter repercussão”, acredita Calixto.
Segundo a IAAF, a maioria das mulheres, incluindo as atletas de elite, apresenta níveis de 0,12 a 1,79 nanomol por litro de sangue. Nos homens a presença normal é de entre 7,7 e 29,4 nanomols. As novas regras afetarão atletas mulheres com nível natural de testosterona superior a cinco nanomols por litro de sangue.
Para Calixto, a decisão do CAS está cheia de contradições e foi tomada sem embasamento suficiente. Ele lembra que, se a decisão for mantida, pode interromper a carreira de uma atleta que está no auge – Semenya é bicampeã olímpica nos 800m.
“Uma das contradições é que o doping é todo baseado na noção do que não é natural. Então, é contraditório forçar um grupo de mulheres a tomar medicações para poder alterar o seu organismo natural ou a sua produção natural. Testosterona elevada não é sinônimo de melhor desempenho, é preciso mais estudos. As coisas são incipientes. Não podem pegar o meio da carreira de uma atleta e decretar o fim dela sem ter estudos suficientes”, argumenta Calixto.
Nem Américo Espallargas nem Vinícius Calixto acreditam que essa decisão do CAS tenha impacto na discussão sobre a participação de pessoas transgênero no esporte. A regra do Comitê Olímpico Internacional para mulheres transexuais, que permitiu que a jogadora de vôlei Tifanny atuasse na Superliga, prevê um limite de 10 nanomols.
“Hiperandrogenismo e transgêneros são diferentes. Pode haver regras de distinção e de diferenciação entre atletas. O CAS não opera com princípio de precedentes porque é uma corte arbitral. Não é certeza que novos regulamentos possam ter a mesma consequência jurídica. Joga mais lenha na fogueira e incerteza jurídica de como o esporte será feito no futuro”, explica Américo Espallargas.
“Ao meu ver, esse caso não representa derrota para a Tiffany. Ele evidencia o protagonismo que as entidades esportivas conferem à testosterona. Se as atletas trans estiverem com o nível de testosterona controlado, nada impede que elas compitam; não acho que esse caso reverbere na participação de atletas trans”, diz Calixto.
Segundo a IAAF, mulheres com testosterona entre 5e 10 nanomols por litro levam vantagem no desempenho, derivada de uma alta de 4,4% na massa muscular, de um ganho entre 12% e 26% de força muscular, e de uma alta de 7,8% nas hemoglobinas, que carregam oxigênio nos glóbulos vermelhos do sangue.
O advogado português Alexandre Miguel Mestre discorda da argumentação da federação de atletismo e cita outras vantagens em atletas de elite que não sucintam novos regulamentos por parte da entidade, como maior visão, mãos maiores, mais capacidade aeróbica, maior resistência à fadiga, uma variação genética que favorece em relação a ganho de músculos.
“Afronta o direito ao desporto ao restringir, a meu ver, de forma arbitrária, desproporcionada, a elegibilidade para participação de certas mulheres em determinadas competições. Ora, a Carta Olímpica, texto a que as federações internacionais devem obediência, enquadra a ‘prática desportiva’ como ‘um direito humano’, que não deve ser objeto de ‘discriminação de qualquer tipo’. Também a Carta Internacional da Educação Física e do Desporto da Unesco consagra o desporto como ‘um direito fundamental de todos’, dando, na sua nova versão, ainda mais enfoque a esse direito sob o prisma do princípio da igualdade, na vertente da não discriminação”, sustenta Mestre, que é doutor em Direito Europeu do Desporto pela Edge Hill University, em Liverpool, na Inglaterra, além de ter pós-graduação em Estudos Olímpicos na Academia Olímpica Internacional & Loughbourough University.
Em sua decisão, o CAS afirma que, por mais que a regulação seja discriminatória, “essa discriminação é um meio necessário, razoável e proporcional de alcançar o objetivo da IAAF de preservar a integridade do atletismo feminino”.
“Essa decisão altera o paradigma binário de como é o esporte hoje na hora de definir o critério para masculino e feminino. É uma situação que vira de cabeça para baixo a lógica de como o esporte funciona hoje”, diz Américo Espallargas.
Para tentar continuar a competir sem ter de baixar seu nível de testosterona, Semenya e sua equipe jurídica devem apresentar, em até 30 dias, um recurso ao Tribunal Federal Suíço. Além disso, existe possibilidade de ação na Corte Europeia de Direitos Humanos; é um caso que seria levado adiante. Existe possibilidade de questionamento na Corte Constitucional da África do Sul, porque envolve uma atleta sul-africana. “É o primeiro passo de uma longa batalha jurídica”, resume Américo.
“A rejeição da ciência médica moderna por parte da IAAF e do CAS não é o pior de tudo. Para essa estratégia ter sucesso, eles têm que atacar o gênero biológico (feminino) da Caster”, escreveu, em seu perfil no Twitter, Roger Pielke Jr., diretor do centro de governança esportiva da Universidade do Colorado e membro da equipe de advogados de Semenya.