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Atacando as comorbidades

Na última semana, o Lei em Campo publicou um artigo muito interessante, escrito pelo presidente do Instituto Iberoamenricano de Derecho Deportivo, Luiz Marcondes, falando sobre a doença financeira provocada pela pandemia de coronavírus. O texto propõe uma forma de utilização dos direitos econômicos dos atletas para financiar a retomada das atividades dos clubes. Como eu não sou bobo, vou pegar carona na discussão de quem entende e aproveitar para levantar mais alguns pontos importantes.

O primeiro ponto que merece destaque é que, assim como a doença, os impactos do vírus vão ser muito mais graves naqueles que antes da crise já possuíam comorbidades. Desequilíbrio financeiro, falta de transparência, gestão não profissional e tantos outros problemas que são sempre discutidos no Brasil, mas cujas soluções propostas raramente são postas em prática no Brasil. Para os clubes que estiverem com essas comorbidades, especialmente em casos graves, a vacina de nada adiantará. Para que o tratamento da doença seja minimamente efetivo, é necessário solucionar as comorbidades antes de qualquer coisa.

O equilíbrio financeiro deve ser o início do processo, não o fim. Não se pode pensar em injetar dinheiro como sendo um remédio sem que a gestão responsável por esse dinheiro tenha sido corrigida antes. Caso isso ocorra, é bastante provável que vejamos dois fenômenos.

O primeiro deles é o aumento da influência externa sobre a tomada de decisão dos clubes. Sim, porque ainda que seja vedada a interferência de terceiros na decisão sobre a negociação de atletas, é inegável que aqueles que participam financeiramente desses negócios interferem ativamente no processo. Mais que isso, ainda que exista uma regulamentação restritiva, em território brasileiro ela não pode se sobrepor à Constituição Federal. E aí a discussão será: aquele que possui participação nos direitos econômicos de um atleta pode ser obrigado a permanecer associado a outrem? Pessoalmente entendo que não e, nesse caso, sendo as partes todas brasileiras, o titular do direito poderá se socorrer do judiciário para desfazer a sociedade.

O segundo problema é que a vacina nada mais é do que a negociação de ativos, que hoje já pode ser realizada. Mas ao negociar ativos você não altera o patrimônio de um clube, apenas altera sua liquidez imediata, reduzindo a liquidez futura. Nesse ponto, seria necessário um cálculo bastante complexo das taxas de desconto aplicadas sobre as negociações, cruzando a informação com as taxas de juros do crédito tomado junto a instituições financeiras, para que uma decisão bem embasada possa ser tomada. E sabemos que esta não é a realidade da gestão do esporte no Brasil. Aumento da liquidez tem se mostrado, de forma geral, um incentivo para que os clubes gastem mais, não uma forma de equilíbrio do passivo. Dar liquidez sem que exista uma estabilidade financeira fará com que o dinheiro vá pelo ralo, com efeitos presentes e futuros.

Por isso, antes de aplicar a vacina é importante tratar as comorbidades.

Mas isso quer dizer que não devemos pensar sobre a vacina? De forma alguma! Como as vacinas para o vírus, a regulamentação proposta precisa passar por uma série de testes e debates até que seja liberada para o uso em larga escala. E a discussão sobre a regulamentação do TPO precisará se aprofundar muito, inclusive observando quais os perfis de investidores que se pretende trazer, qual a influência que cada um deles poderá ter sobre a gestão e como isso poderá se refletir na profissionalização da gestão.

O futebol deixou de ser uma atividade amadora há décadas, mas o mercado ainda está muito longe daquilo que deveria ser, especialmente em termos de complexidade de instrumentos financeiros. E precisamos pensar em como trazer esses instrumentos para fortalecer a vacina.

Fazer um cadastro de investidores e regular sua atuação é uma ideia que está ao menos duas décadas atrasada. Com um núcleo pequeno e controlado de investidores, estes investidores tendem a ter um poder maior dentro do mercado, influenciando os fluxos de atletas e mesmo os fluxos financeiros.

Por outro lado, se forem reduzidas as barreiras para o investimento, o capital financeiro não será concentrado, mas distribuído em uma série de investidores menores ou fundos de investimento. Isso provocará também uma distribuição do poder, e fortalecerá os clubes em eventual cenário de disputa.

A criação de barreiras aos investidores pode parecer inteligente, uma vez que tende a facilitar o controle desses investidores. Mas essas barreiras trazem consigo um efeito colateral bastante problemático, e que pode ser mais negativo que a própria crise original. É preciso trazer para o mercado do futebol ferramentas de controle que já existem no mercado financeiro, não privilegiar um grupo pequeno de investidores, que terão o controle do mercado e um poder de influência que não deveriam ter.

Precisamos tratar a doença, mas temos que tomar cuidado para que esse tratamento não acabe amputando as pernas dos doentes.

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