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Autonomia federativa, autonomia dos clubes e o regulamento do Campeonato Carioca 2021

Rafael Teixeira Ramos & Ana Cristina Mizutori

A autonomia na organização e funcionamento, constitucionalmente conferida às entidades desportivas dirigentes, compreende o pilar de suas estruturas na ordem jurídica brasileira.

A objetividade jurídica do artigo 217, inciso I, da Constituição Federal, destina-se às especificidades exigidas pelo próprio segmento, aquiescendo a que o desporto se ordene conforme suas próprias necessidades.

Na teoria, parece inequívoco que o referido ditame constitucional seja imposto às atividades desportivas, mas na prática, o corolário desta auto-organização, quando carece de razoabilidade e proporcionalidade, podem obstaculizar o funcionamento do setor.

O debate neste texto não questiona a conveniência da autonomia esportiva. Muito pelo contrário, a autoadministração no desporto é necessária. Contudo, tão crucial quanto à capacidade política das entidades de administração do desporto de se governarem de acordo com as suas próprias especialidades de gestão, é garantir que suas normas se alicercem em critérios coerentes e equilibrados.

Feitas estas ponderações, percorre-se um fato recente, relacionados aos preceitos trazidos acima, e as possíveis implicações.

A Federação de Futebol do Estado do Rio de Janeiro (FERJ) publicou o regulamento do Campeonato Carioca 2021, prevendo que as agremiações desportivas devem utilizar a equipe principal nas partidas a partir da 3ª Rodada da Taça Guanabara, sob pena de serem multadas em valor correspondente a totalidade de sua cota fixa de direito de transmissão.  A exceção à regulamentação depende do reconhecimento do DCO da FERJ de um justo motivo para a não escalação dos atletas que compõem o elenco principal.

O teor do que dispõe o artigo 41 do regulamento do Campeonato Carioca 2021 foi debatido e aprovado anteriormente pelas associações desportivas participantes.

É compreensível que a entidade de administração do desporto pretenda potencializar o desempenho da competição. Além dos inúmeros motivos para impulsionar o interesse dos torcedores e aumentar o entusiasmo e engajamento no campeonato, a FERJ valeu-se de sua autonomia desportiva como forma de contornar impasses deparados nas competições anteriores, como o esvaziamento do campeonato.

É comum que grandes clubes estejam disputando mais de um certame, e dentre estes, alguns considerados mais importantes pela visibilidade e pelas cifras envolvidas.

Todos os campeonatos somam de alguma forma aos clubes. Afinal, as disputas compreendem o grande escopo da atividade esportiva.

Porém, é inquestionável que haja estratégias para acompanhar o calendário das competições e que certas prioridades sejam estabelecidas. Até porque, para o futebol acontecer, basta que haja jogadores em campo, mas as vitórias compreendem escolhas organizadas, disciplinadas e certeiras. E sobre isso, não se pode desconsiderar que os principais atores das partidas são seres humanos – os atletas profissionais.

A esse respeito, é importante levar em conta que esportes de alto rendimento impactam diretamente na fisiologia do atleta, cujo instrumento de trabalho é o próprio corpo.

Sem contar que em um país do tamanho do Brasil, ainda que o clube não esteja competindo por títulos continentais, apenas o Campeonato Brasileiro em si já confere considerável desgaste na logística de viagens, treinos e jogos. Consoante o já mencionado, muitos clubes disputam mais de uma competição simultaneamente.

A determinação no regulamento da FERJ vislumbrou o bom andamento da competição e a aderência do público ante à presença dos titulares absolutos, que são compostos normalmente pelas estrelas do elenco. Nessa ótica, até faz sentido que haja a referida imposição.

Entretanto, sob outro ponto de vista, questiona-se quão adverso pode ser à integração de atletas da base ou um elenco secundário, a ponto de haver vedação expressa para desestimular tal prática.

Relativizar as competições estaduais frente às nacionais pode assumir que as primeiras possuem uma dimensão menor em todos os aspectos. Portanto, por quê não se valer disso para preparar os atletas que não compõem o elenco predominante? Nessa perspectiva, levanta-se o exemplo dos atletas aspirantes, que através de suas participações em campeonatos de menor porte, tem a oportunidade de aperfeiçoar suas habilidades técnicas, bem como adaptar-se ao ambiente e à tensão de uma partida oficial, além de estabelecer o engajamento entre os colegas da equipe.

Além disso, como operadora do Direito e antevendo que haja aplicação de multa com base no artigo 41 do regulamento do Campeonato Carioca 2021 a um dos clubes: qual a prova adequada para confrontar as imputações de que o time principal não foi escalado, como tal medida poderia ser impugnada, ou que o motivo pelo qual não se escalou o hipotético time principal não seria justo? Mencionada produção probatória remete-se ao que a doutrina denomina de “prova diabólica (diabolica probandi)”, portanto, impraticável.

O preceito legal em debate traduz-se em norma aberta, cuja análise depreende discricionariedade da autoridade que a impor.

Tendo em vista isto, o aludido justo motivo pode variar da ótica de quem o acusa ou o defende, e a depender da necessidade para que o motivo seja aplicado.

Com efeito, questiona-se se seria justo motivo poupar um atleta por questões fisiológicas preventivas, ao invés de não o incluir na equipe somente quando uma lesão já o acometeu?

Certamente, a definição de time principal e de justo motivo são critérios extremamente subjetivos e abrangentes, sobretudo no que concerne à tática de jogo. A comissão técnica pode definir o seu elenco de jogo visando o confronto com o time oponente, tendo em mente o esquema de campo do adversário.

Reitera-se, portanto, que a autonomia desportiva conferida aos entes para que se adaptem dentro das especificidades de seus membros é primordial para o funcionamento adequado do setor.

Contudo, para que haja efetividade nas medidas impostas nesse formato de autogovernação, é imprescindível a ponderação de proveitos, pautado sempre na razoabilidade, proporcionalidade e viabilidade prática, que se remete também à atividade econômica preferencial de cada clube, detentor também do direito à autonomia desportiva, garantida no art. 217, I, da CF/88 c/c art. 2°, II, da Lei n. 9.615/98 (Lei Pelé). Acerca do tema, sempre esclareceu Álvaro Melo Filho:

No plano do direito, a autonomia é concebida por ZANOBINI como ‘a faculdade que têm algumas associações de organizar-se juridicamente, de criar um direito próprio, direito não só reconhecido como tal pelo Estado, mas que este incorpora a seu próprio ordenamento jurídico e declara obrigatório como as demais leis e regulamentos’. Contudo, esta autonomia de ‘criar um direito próprio’ ou de dar-se leis, está atrelada às especificidades técnicas do objeto de atuação das entidades desportivas incondicionadas ao ordenamento jurídico estatal que não pode, por exemplo, determinar que o ‘penalty’ do futebol seja cobrado com a mão ou a ‘cesta’ do basquete convertida com o pé.

Infere-se, então, de modo claro o inequívoco, que autonomia não corresponde à independência, impondo afastar-se, de logo, qualquer confusão do conceito de autonomia (face interna da entidade) como de independência (face externa da entidade) ou, como assinala DURING ‘es claro que autonomia no significa independência ni separación’. Outrossim, qualquer exegese que procure transformar esta autonomia em independência é abrir caminho para o ‘caos desportivo’ e fazer das entidades e associações desportivas uma res nullius sujeitas às inclinações e caprichos do Presidente ou do grupo dirigente.

Realce-se, ainda, que a autonomia é recíproca, sendo injurídica a invasão dos respectivos campos de economia doméstica pelos entes desportivos, com interferências indébitas ferindo os recíprocos direitos de autodeterminação e autorregulação, sem perder-se de vista a imperiosidade de coexistência das entidades desportivas dirigentes e associações.

Na dicção do preceito constitucional (inc. I do art. 217), esta autonomia das entidades dirigentes e associações desportivas expressa-se no resguardo de administração própria, ou seja, do que lhe é inerente e exclusivo quanto ‘à sua organização e funcionamento’, sem discrepar das diretrizes legais federais, pela própria e fundamental necessidade de não permitir, no país, sistemas desportivos estanques, fechados, separados, gerando dificuldades e incompatibilidades que colocariam em risco a essencial e vital unidade desportiva nacional.[1]

Enfim, por outra dimensão, nada impediria que os clubes filiados, valendo-se de suas autonomias desportivas, se unissem contra a aprovação do regulamento do campeonato carioca 2021, pois são membros sobre os quais recaem a referida norma regente da competição.

……….

[1] MELO FILHO, Álvaro. Desporto na nova constituição. Porto Alegre: Sergio Antonio Fabris Editor, 1990, p. 46-52.

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