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Caso Fifa x Superliga Europeia

Análise das regulamentações desportivas que impõem limitações ou restrições à criação de competições e ligas independentes à luz do direito concorrencial

Por José Francisco Manssur e Tiago Gomes [1]

Introdução

No último dia 21 de janeiro, a FIFA e as suas seis confederações (AFC, CAF, Concacaf, CONMEBOL, OFC e UEFA) emitiram um comunicado oficial no qual afirmavam que, “à luz das recentes especulações da imprensa sobre a criação de uma ‘Superliga’ Europeia por parte de alguns clubes europeus, a FIFA e as seis confederações gostariam de reiterar e enfatizar, mais uma vez, que tal competição não será reconhecida nem pela Fifa nem pelas suas seis confederações.

E prosseguiu afirmando que “qualquer clube ou jogador envolvido em tal competição estariam, consequentemente, proibidos de participar em qualquer competição organizada pela FIFA ou suas respectivas confederações[2].

A ameaça de proibição de participação de atletas, árbitros e entidades desportivas em competições oficiais organizadas pelas entidades internacionais de organização do esporte como forma de impedir a criação de novas ligas, infelizmente, não é nova.

De fato, aliada à imposição de critérios pouco claros para a concessão de licenças para a organização de competições pelas ligas independentes, a imposição de sanções aos envolvidos nas competições organizadas por terceiros, costuma ser uma estratégia que, mesmo já tendo sido muito mais eficaz, ainda impede ou dificulta o movimento das entidades de prática desportiva em tomar para si a organização das competições desportivas de que participam.

Mesmo que cada vez menos, ainda há atletas e clubes, por mais atraídos que sejam pelo aspecto financeiro normalmente associado à participação em novas ligas (como novas estruturas de divisão das receitas de transmissão e a oportunidade de maior exposição de mídia que gera oportunidades de contratos mais vantajosos de patrocínio), que, confrontados com o risco de serem impedidos de participar das principais competições, onde de fato está a glória do esporte, tendem, por receio, a optar por participar das principais competições.

O esporte mundial é pródigo em histórias desse tipo. Entre nós, um dos exemplos mais conhecidos é o do jogador de basquete Oscar Schmidt, que tendo sido selecionado em 1984 para jogar pelo New Jersey Nets, e assim disputar a NBA, declinou do convite, pois até 1989 jogadores que disputassem a NBA eram proibidos de participar de torneios organizados pela FIBA e, portanto, de disputar as Olimpíadas pelas seleções de seus respectivos países.

Interessante notar, contudo, que a adoção dessa estratégia – que não impediu a criação de ligas em campeonatos de futebol de grandes centros da Europa e que, no Brasil, sequer foi tentada para impedir que a Liga Nacional de Basquete organize a principal competição da modalidade desde 2008 – para limitar ou impedir o acesso de novos competidores ao mercado de organização de competições esportivas começou a chamar a atenção de autoridades concorrenciais (particularmente nos Estados Unidos e na União Europeia) e uma nova linha de análise passou a existir sobre a questão da legalidade das regulações esportivas que limitam ou impedem o acesso ao mercado de novos organizadores de competições esportivas.

Na Europa e nos Estados Unidos, o direito concorrencial considera ilegais práticas adotadas no sentido de restringir a competição, a menos que tais práticas protejam certos objetivos legítimos e não sejam desproporcionais. De maneira muito simplória, na teoria econômica entende-se que essas restrições somente são possíveis se o agente a adota detém uma posição dominante ou monopolista no mesmo mercado, ou, considerada uma cadeia produtiva, em mercados à jusante (acima) ou à montante (abaixo).

Quando se considera o fato de que as federações desportivas internacionais detêm o monopólio do poder regulatório sobre as competições de suas respectivas modalidades – e, portanto, sobre os critérios de admissão de competidores, individuais e coletivos, e árbitros – a sua capacidade, ao menos em tese, de restringir a entrada de novos competidores no mercado de organização de competições esportivas fica evidente.

O que justificaria, novamente ao menos em tese, a necessidade de maior escrutínio por parte das autoridades concorrenciais, das regras e imposições feitas pelas federações desportivas internacionais no que diz respeito ao estabelecimento de competições desportivas organizadas por terceiros independentes.

Com base nesse fundamento, reforçado por decisões pontuais tomadas em outros casos envolvendo a análise de questões concorrenciais de regulamentos desportivos, nos últimos anos, dois importantes casos de disputas entre ligas independentes e federações desportivas internacionais foram levadas à apreciação de autoridades concorrenciais e os resultados dessas avaliações podem influenciar os destinos de disputas semelhantes envolvendo outras federações internacionais.

Os casos a que referimos são a análise pela Comissão Europeia de Concorrência sobre as restrições de elegibilidade para atletas e árbitros impostas pela Federação Internacional de Patinação, em inglês a International Skating Union – ISU, cujo julgamento foi concluído em 2017, e a disputa iniciada perante as autoridades concorrenciais dos Estados Unidos, envolvendo as restrições impostas pela Federação Internacional de Natação (FINA) ao estabelecimento da liga independente de natação denominada International Swimming League – ISL, iniciada em 2018.

A interpretação da legislação concorrencial e a sua aplicação em ambos os casos envolvendo a administração e organização de competições esportivas por federações internacionais de esportes, podem oferecer precedentes sob os quais a ameaça feita pela FIFA à criação da Superliga Europeia deva ser analisada pelas autoridades concorrenciais europeias.

Por isso, analisaremos ambos os casos a seguir e buscaremos avaliar como ambos os precedentes podem influenciar a análise de uma eventual disputa envolvendo a FIFA e a Superliga Europeia. Na sequência apresentaremos nossa análise de como casos semelhantes podem vir a ser interpretados sob à luz do direito concorrencial brasileiro.

O Caso Comissão Europeia vs International Skating Union – ISU

O primeiro caso envolve um questionamento formulado à Comissão Europeia por dois patinadores profissionais holandeses sobre a legalidade das Regras de Elegibilidade  para competições de patinação de velocidade homologadas pela Federação Internacional de Patinação, em inglês a International Skating Union – ISU, formuladas em 2014 (as “Regras de Elegibilidade”), as quais previam que patinadores e árbitros que participassem de competições não sancionadas pela ISU ou suas federações membro, estariam sujeitos a punições variando de advertências a períodos de inelegibilidade para participar de competições oficiais que iam desde um período mínimo não especificado e poderiam chegar até a exclusão vitalícia dessas competições, que incluem os Campeonatos Europeu e Mundial e os Jogos Olímpicos de Inverno.[3]

A alegação dos patinadores era a de que as Regras de Elegibilidade, na medida em que estabeleciam punições vitalícias para atletas e árbitros que participassem de competições não autorizadas pela ISU, constituíam uma violação às normas concorrenciais da União Europeia (artigos 101 e 102 do Tratado) porque tais regras impediam que ambos participassem de uma competição de patinação em velocidade que seria organizada naquele ano pela Icederby International Co., e que oferecia aos atletas uma oportunidade de desenvolvimento financeiro, oferecendo prêmios significativos em dinheiro, além de outros benefícios como maios alcance a patrocinadores.

A Comissão Europeia entendeu, preliminarmente, que a despeito da especificidade da estrutura organizacional do esporte, as regras de organização do esporte estão sujeitas à aplicação das regras de direito concorrencial. Entendeu que o mercado relevante objeto da análise seria o de organização e exploração comercial de competições internacionais de patinação de velocidade, em nível global.

Entendeu, também, que por ser o único órgão responsável pelo estabelecimento e aplicação das regras relativas à patinação de velocidade, em nível global, a ISU detém uma posição muito forte no mercado relevante, o que se comprova, inclusive, pelo fato de que até aquele momento, nenhum terceiro independente havia sido capaz de ingressar no referido mercado relevante.

No mérito, a Comissão Europeia decidiu que a ISU violou a legislação concorrencial europeia ao adotar e aplicar as suas Regras de Elegibilidade, na medida em que essas restringem as possibilidades de participação dos atletas em provas internacionais de patinação de velocidade, privando os organizadores de competições potencialmente concorrentes dos serviços prestados por esses patinadores.

Nesse sentido, a Comissão Europeia entendeu que as Regras de Elegibilidade têm por objeto a criação de restrições a novos competidores no mercado de organização de competições de patinação de velocidade, visando a preservar os interesses econômicos da ISU mais do que a integridade do esporte ou a segurança ou saúde dos atletas. Considerou, também, que as regras tiveram por efeito restringir a concorrência naquele mercado.

Em um dos pontos mais importantes para futuros julgamentos, reiterando o precedente denominado Meca-Medina – que envolveu a avaliação da legalidade, sob a perspectiva concorrencial, de regras de dopagem em competições de natação em águas abertas pela Federação Internacional de Natação por requerimento de dois atletas europeus que testaram positivo em exame realizado em competição no final da década de 1990 –, a Comissão Europeia considerou que regras de organização de esporte competitivo estão, de um modo geral, subordinadas ao direito da concorrência, mas podem deixar de ser submetidas aos seus efeitos em certas circunstâncias em que:

o contexto global em que as regras foram adotas ou em que produzem seus efeitos e, especialmente, se os seus objetivos são legítimos;

os efeitos restritivos da concorrência decorrentes da adoção e aplicação de referidas normas de organização esportiva são inerentes à prossecução dos seus legítimos objetivos; e,

os seus efeitos são proporcionais em relação aos seus objetivos.

Neste aspecto, considerou que as Regras de Elegibilidade não servem apenas a objetivos legítimos da ISU, como, por exemplo, a preservação da integridade do esporte, mas também aos interesses econômicos da ISU. Além disso, considerou que referidas regras não são inerentes à prossecução dos interesses legítimos da ISU e tampouco são proporcionais, considerando a possibilidade de exclusão vitalícia de atletas que participarem de competições não autorizadas e o fato de que a concessão de autorização para competições organizadas por terceiros independentes não é baseada em critérios claros, objetivos, transparentes e não discriminatórios.

Ao final, considerando que essa foi a primeira decisão tomada pela Comissão Europeia em relação a regras fixadas por entidades de organização do esporte, optou por não aplicar imediatamente uma punição pecuniária à ISU.

Estabeleceu, contudo, que a ISU disporia do prazo de 90 (noventa) dias contados da intimação da decisão para encerrar a infração à legislação concorrencial decorrente da aplicação das suas Regras de Elegibilidade e determinando que a ISU se abstivesse de praticar qualquer outra conduta que pudesse ter efeito ou objeto similar, decidindo que caso a ISU falhasse em cumprir com tais determinações, seria punida com uma multa pecuniária de 5% (cinco por cento) do valor de seu faturamento anual do ano anterior ao do descumprimento.

A Disputa envolvendo a International Swimming League – ISL e a Federação Internacional de Natação – FINA

Histórico do Caso [4]

A Federação Internacional de Natação – FINA é a federação internacional responsável pela regulação de seis esportes aquáticos, incluindo a natação.[5] É a entidade responsável pela edição das normas sobre a prática dos referidos esportes, e administra as suas disciplinas nos Jogos Olímpicos, além de organizar o Campeonato Mundial de Desportos Aquáticos e Copa do Mundo de Natação, entre outros dos eventos mais prestigiados da natação mundial.

Por sua vez, a International Swimming League – ISL é uma entidade independente criada em 2018 com o propósito de introduzir um novo e mais atrativo (para o público e, consequentemente, para transmissões de televisão) formato de competições de natação. Entre as novidades, os principais atletas do esporte de diferentes países, seriam divididos em equipes – com igual número de atletas do gênero masculino e feminino – em formatos de disputa coletiva que leva as equipes a uma grande final. Com a previsão de distribuição de grandes prêmios financeiros aos vencedores, mas também com pagamentos por participação (igualitária, independentemente do gênero do atleta), além de pagamentos de seguros e planos de previdência, a competição buscava atrair e reter os principais atletas da natação mundial. Além disso, um último estímulo, estava na vedação à participação de atletas anteriormente banidos por doping[6].

A ISL alegou em seus comunicados iniciais de imprensa que apesar de ser um dos esportes mais praticados no mundo todo, a natação recebe uma fração insignificante dos valores pagos no mercado de transmissão de eventos esportivos e quase nenhuma atenção da mídia entre nos períodos entre os Jogos Olímpicos. A ideia por trás era, portanto, aproveitar oportunidades pouco exploradas no mercado. De um lado, oferecer uma temporada regular de competições anuais, além de compensação e benefícios mais atrativos aos nadadores, que recebem salários muito menores e menos exposição midiática do que atletas de outros esportes igualmente populares. De outro, oferecer uma competição em formato mais atrativo para a audiência não especializada, objetivando aumentar a audiência global em 100 milhões de pessoas num prazo de 5 anos[7].

Apesar de os planos ousados terem sido bem recebidos pela comunidade da natação, em junho de 2018 a FINA editou um Memorando direcionado às 209 confederações nacionais de natação no qual informava que não reconhecia a ISL ou qualquer competição internacional por ela organizada[8].

Contudo, foram as referências ao artigo 4.1 de seu Regulamento Geral e ao artigo 9 de seu Código de Ética que causaram o maior impacto, pois foram vistas como uma ameaça direta a atletas e árbitros que participassem das competições organizadas pela ISL, na medida em que referidos dispositivos proibiam que atletas e árbitros filiados à FINA tivessem qualquer relacionamento com entidades não filiadas ou não sancionadas pela FINA, e a infração a tais dispositivos poderia resultar em exclusões de competições organizadas pela FINA pelo período de até 04 (quatro) anos[9].

Como consequência, a poderosa federação americana de natação, que vinha trabalhando com a ISL como co-organizadora da competição que ocorreria em dezembro de 2018, retirou o seu suporte. A federação britânica também se curvou à pressão da FINA.

Em meados de agosto de 2018 a ISL contatou a FINA revelando todos os detalhes da competição e informando que buscaria a ratificação de uma federação nacional. A FINA respondeu que era obrigação da federação nacional buscar a aprovação de qualquer competição internacional que buscasse organizar, e que a FINA não iria discutir tais procedimentos com um patrocinador como a ISL. Nas semanas seguintes as negociações prosseguiram e, então, a FINA exigiu a quantia de US$ 50 milhões a ser paga ao longo de dez anos, assim como que a titularidade da competição e os seus naming-rights pertencessem à FINA como condições para a concessão da autorização. Diante dos termos evidentemente não razoáveis, as negociações foram novamente interrompidas.

De modo a evitar o status de competição internacional, que exige a autorização da FINA, a ISL conseguiu que o evento fosse organizado pela Federação Italiana de Natação, como sendo de nível nacional, nos dias 20-21 de dezembro de 2018, na cidade de Turim[10]. Os convites para a competição a designavam como uma “competição nacional em que competidores nacionais e internacionais participarão individualmente, não representando uma federação nacional”. Com isso, e tomando o cuidado para evitar conflito de datas com o Campeonato Mundial de Piscina Curta, marcado para os dias 11-16 de dezembro daquele ano, o evento conseguiu garantir a adesão de 50 nadadores de elite, de diversas partes do mundo.

Contudo, no final de outubro de 2018 a FINA emitiu uma reinterpretação de suas regras, classificando o evento como uma competição internacional, porque ele teria sido planejada para ter uma maioria de participantes estrangeiros. A reclassificação exigia a aprovação da FINA, a qual os seus organizadores deveriam ter solicitado com 6 (seis) meses de antecedência[11]. Não foi, então, uma grande surpresa quando o evento foi cancelado por seus organizadores em novembro de 2018.

Ao mesmo tempo, em um esforço de reduzir a insatisfação geral entre os atletas, a FINA anunciou que os prêmios em dinheiro para o Campeonato Mundial de Piscina Curta, competição por ela organizada, seriam aumentados[12].

Os Processos Concorrenciais

Na sequência da divulgação do Memorando pela FINA, um grupo de três atletas (os americanos Thomas Shields e Michael Andrew e a húngara Katinka Hosszú) e a ISL ajuizaram simultaneamente duas ações por violações concorrenciais contra a FINA, na justiça da Califórnia,[13] em uma escolha permitida pela legislação americana e que reflete a intenção dos autores de perseguir as indenizações financeiras previstas na legislação concorrencial norte-americana, bastante mais rigorosa neste aspecto do que a legislação concorrencial europeia.

Como se vê das petições iniciais, os autores alegam que a FINA detém um monopsônio (um monopólio de compra) para a aquisição dos serviços de nadadores de elite, e utiliza esse poder para extrair, disfrutar e reter para si lucros substanciais a partir do trabalho dos melhores nadadores em atividade. Alegaram, também, que a FINA se utiliza de maneira ilegal de seu poder no mercado para impedir que organizações independentes criem novas competições de forma a expandir as oportunidades de trabalho para centenas de nadadores de elite ao redor do mundo e os milhões de fãs do esporte.

Tal restrição também afeta os negócios que orbitam ao redor da modalidade, os quais se beneficiariam de um maior número de competições de natação envolvendo a elite dos nadadores, incluindo os patrocinadores, transmissores dos eventos e fabricantes de produtos associados.

Ambas as ações citam o precedente da ISU perante a Comissão Europeia enfatizando que a mesma fundamentação seria aplicável ao caso envolvendo ISL e FINA, à medida que em ambos os casos as sanções para atletas que participassem de eventos promovidos pelo rival eram claramente desproporcionais e em ambos os casos havia o fechamento do mercado baseado em critérios arbitrários, não transparentes e desproporcionais para a concessão de licenças para a realização das competições independentes.

Em junho de 2019, uma decisão preliminar da corte californiana considerou necessária a realização de Discovery. Procedimento instrutório típico dos países de common law, na Discovery as provas são produzidas amplamente pelas partes com pouca ou nenhuma interferência do judiciário e que pode exigir que as partes em um litígio apresentem umas às outras uma grande quantidade de provas e documentos relacionados ao litígio. No caso da FINA, isso, em tese, poderia ensejar a abertura de informações comerciais relevantes que dizem respeito aos lucros obtidos pela entidade com a realização das competições esportivas.[14]

Em dezembro de 2019, a corte californiana rejeitou um pedido da FINA para indeferir preliminarmente ambos os casos e em janeiro de 2020 a ISL adicionou um pedido de indenização contra a FINA por reprodução ilegal de seu modelo de negócio por parte da FINA, que, segundo a ISL, teria imitado o seu formato de competição com a Champions Swim Series[15] – competição promovida pela FINA a partir de 2019, apenas para atletas convidados com base em critérios meritocráticos (são convidados o campeão mundial e olímpico, medalhistas de campeonato mundial, medalhistas olímpicos, o detentor do recorde mundial e os nadadores mais bem ranqueados no ranking da FINA em cada prova[16]), com o pagamento de valores para a participação de cada atleta, além do reembolso de todas as despesas, e generosos prêmios em dinheiro[17]. Segundo a FINA, os principais objetivos deste encontro internacional são oferecer aos nadadores de elite maior atenção e mais oportunidades de competição, gerando, assim, maior interesse internacional da TV, mídia e digital, e criar uma nova plataforma de nível mundial para competições de natação com periodicidade anual.[18]

O caso, com todos os seus desdobramentos, espera-se, deve ser julgado por júri popular em janeiro de 2022.

A mudança de Postura da FINA

Em 15 de janeiro de 2019[19] a FINA emitiu um novo comunicado, revendo o seu entendimento a respeito da participação dos atletas nas competições promovidas por organizadores independentes:

FINA reconhece que os nadadores são livres para participar em competições ou eventos promovidos por organizadores independentes, nomeadamente entidades que não são nem membros da FINA ou a ela relacionadas de qualquer forma.

Qualquer organizador independente que pretenda ter seus resultados e recordes de qualquer competição ou evento devidamente registrados e reconhecidos pela FINA deve cooperar com e solicitar aprovação da FINA ou de qualquer federação membro relevante, conforme o caso, o procedimento de aprovação é definido pelo Estatuto Social da FINA item BL 12, que será inteiramente aplicável.

Se um organizador independente não obtiver ou não requerer a supra mencionada aprovação, todos os resultados e recordes de tal não-sancionada competição ou evento serão considerados nulos e ignorados pela FINA e não serão considerados para qualquer efeito pela FINA. Contudo, tal participação não será caracterizada como relação não autorizada em aplicação das Regras Gerais da FINA item GR4, e não dará margem à aplicação de sanções por parte da FINA.[20]

A mudança de postura por parte da FINA permitiu que atletas e árbitros participem dos eventos promovidos pela ISL nos anos de 2019 e 2020 e é considerado por especialistas uma alteração positiva e razoável nos critérios para os atletas, embora ainda restem dúvidas quanto aos critérios para a concessão de autorizações para competições independentes por parte da FINA.

Possíveis Impactos dos Precedentes da ISU e FINA vs ISL na Disputa FIFA vs Superliga Europeia

Embora a própria existência da Superliga Europeia ainda seja mera especulação, e, portanto, qualquer avaliação acerca dos possíveis desdobramentos da declaração da FIFA de 21 de janeiro passado mencionada no início deste artigo seja também especulativa, quando se coteja o comunicado emitido pela FIFA com os fatos descritos nos casos envolvendo a ISU e a FINA, parece haver elementos para justificar uma atuação das autoridades concorrenciais.

Em primeiro lugar, o claro reconhecimento pelas autoridades concorrenciais de que as entidades de administração do esporte estão, a despeito de sua estrutura especial de governança, submetidos à disciplina da legislação concorrencial é, sem dúvidas, um marco que não pode ser ignorado no reconhecimento de que o esporte é uma indústria econômica relevante e, como tal, está inserida no âmbito das atividades empresariais.

Demais disso, sob a perspectiva do eventual mérito de um caso tratando sobre este tema, de um lado, tem-se uma negativa de reconhecimento por parte da federação internacional de uma competição possivelmente organizada por terceiros independentes. Os fundamentos para a negativa de reconhecimento não constam do comunicado, de forma que não se pode compreender quais os critérios que a justificam, e assim analisar se são eles legítimos ou não. De toda forma, peca a FIFA em um critério considerado essencial pelas autoridades concorrenciais, que é o da transparência dos critérios para a ausência de reconhecimento.

Por outro lado, a ameaça de exclusão de clubes e atletas envolvidos na referida competição não sancionada, da participação de competições oficiais promovidas pela FIFA parece claramente exceder ao razoável para a preservação de qualquer interesse legítimo que eventualmente tenha fundamentado a ausência de reconhecimento por parte da FIFA.

Perante esses elementos, é possível antever que um eventual questionamento às autoridades concorrenciais possa ser norteado pelos fios condutores dos casos da ISU e da FINA para verificar se a FIFA está ou não agindo ilegalmente ao criar embaraços para a constituição e desenvolvimento de competições de futebol profissional promovidas por entidades a ela independentes, em particular a Superliga Europeia.

Potencial de Análise de Casos Semelhantes à Luz do Direito Concorrencial Brasileiro

 

No Brasil, o movimento de criação de ligas independentes, responsáveis pela organização de competições esportivas ainda é bastante incipiente. O que chega a ser paradoxal, sob o ponto de vista jurídico, pois a legislação brasileira é bastante evoluída a esse respeito.

Diferentemente do ordenamento jurídico europeu, por exemplo, em que se reconheceu a possibilidade de intervenção por parte das federações internacionais na concessão de autorização para a organização de competições desportivas por terceiros independentes, a Lei 9.615/1998 contém disposição bastante completa e afirmativa autorizando a criação de ligas independentes bastando a mera comunicação às entidades de administração do respectivo esporte.

Há, também, a expressa previsão de que aqueles que participarem das ligas independentes poderão, se quiserem, disputar as competições organizadas pelas entidades de administração do desporto a que estiverem filiadas.[21]

A despeito dessa expressa previsão legal, prestes a completar 23 anos em março próximo, diversas tentativas de criação de ligas independentes para a organização de competições em diferentes esportes coletivos fracassaram. E, conquanto não se possa imputar totalmente a responsabilidade pelo fracasso dessas ligas independentes às entidades de administração dos respectivos esportes – porque outros fatores também foram importantes, desde disputas internas entre os dirigentes, até falta de habilidade na negociação de direitos de transmissão que acabaram por minar financeiramente referidas ligas – a verdade é que o papel desempenhado pelas entidades de administração dos respectivos esportes sempre foi um fator importante para o sucesso ou fracasso das ligas.

Houve, por exemplo, no futebol, tentativas de criação de ligas regionais – Liga Rio/SP, Liga Sul/Minas, entre outras – em relação às quais as federações e a confederação nacional criaram óbices desportivos, na classificação para torneios internacionais, por exemplo – que levaram os clubes participantes a decidirem pelo abandono da ideia. A Copa do Nordeste, exemplo de competição bem sucedida organizada, num primeiro momento, por uma Liga, hoje foi totalmente absorvida em sua organização pela Confederação Brasileira de Futebol.

Reforça-se essa convicção quando se percebe que das duas tradicionais modalidades de esportes coletivos, o futsal e o basquete, que têm os seus respectivos principais campeonatos nacionais organizados por ligas formadas e geridas pelos clubes participantes, ao menos em uma delas um acordo celebrado com a entidade de administração do esporte mostrou-se muito importante para o seu desenvolvimento.

Realmente, no caso do basquete, a assinatura de um Instrumento particular entre a Liga Nacional de Basquete e Confederação Brasileira de Basquete, ainda quando da criação da competição em 2008, garante um ambiente seguro para que o NBB seja organizado com sucesso e crescimento dos números relevantes desde então.

Dada a estrutura piramidal da administração do esporte, que, no Brasil, reproduz o modelo internacionalmente conhecido, mesmo nos esportes individuais como Atletismo, Natação ou Hipismo, por exemplo, para participar de competições oficiais os atletas devem estar filiados a um clube ou entidade de prática desportiva, a qual por sua vez é filiado a uma entidade regional de administração do esporte (federação estadual).

O já citado artigo 20 da Lei 9.615/1998 reproduz essa estrutura e afirma que as entidades de prática podem formar ligas independentes, de forma que nesses esportes individuais os atletas ainda dependeriam da participação de seus respectivos clubes para a formação de uma liga.

Parece-nos, contudo, bastante defensável a aplicação por analogia que sustente que em esportes individuais os atletas, independente da participação de seus clubes, poderiam associar-se para a formação de uma liga para administração de competições em seus respectivos esportes.

Mesmo porque a interpretação da legislação desportiva integrada à legislação concorrencial parece reforçar essa teoria. O que é extremamente importante, porque normalmente recaem sobre os atletas os instrumentos de pressão velada – o mais comum sendo o impedimento de convocação para defender seleções nacionais – que podem ser exercidos pelas entidades de administração desportiva para restringir o surgimento de competições administradas por terceiros independentes.

Pois bem. O artigo 36 da Lei 12.529/2011, que dispõe sobre a prevenção e repressão às infrações contra a concorrência, estabelece que “[c]onstituem infração da ordem econômica, independentemente de culpa, os atos sob qualquer forma manifestados, que tenham por objeto ou possam produzir os seguintes efeitos, ainda que não sejam alcançados:

 I – limitar, falsear ou de qualquer forma prejudicar a livre concorrência ou a livre iniciativa;

II – dominar mercado relevante de bens ou serviços;

III – aumentar arbitrariamente os lucros; e

IV – exercer de forma abusiva posição dominante.

Na sequência, o §3º do referido artigo 36, prevê que “as seguintes condutas, além de outras, na medida em que configurem hipótese prevista no caput deste artigo e seus incisos, caracterizam infração da ordem econômica:

(…)

III – limitar ou impedir o acesso de novas empresas ao mercado;

IV – criar dificuldades à constituição, ao funcionamento ou ao desenvolvimento de empresa concorrente ou de fornecedor, adquirente ou financiador de bens ou serviços;

V – impedir o acesso de concorrente às fontes de insumo, matérias-primas, equipamentos ou tecnologia, bem como aos canais de distribuição;

Como se vê, ao menos sob o ponto de vista normativo, o direito concorrencial brasileiro reconhece como ilícitas as tentativas de um concorrente que, dominando um mercado relevante, exerce essa posição dominante de maneira abusiva, para limitar ou impedir o ingresso de concorrentes, seja em seu próprio mercado ou em mercados adjacentes, em uma disciplina muito similar àquela que levou a autoridade europeia a reconhecer os ilícitos concorrenciais praticados pela ISU e que norteia os pedidos formulados pela ISL perante as autoridades americanas em relação às condutas alegadamente praticadas pela FINA.

Embora não se tenha conhecimento de que até o início dos anos 2000 as autoridades concorrenciais brasileiras tenham aplicado qualquer sanção ou imposto restrições a atos de concentração em função de efeitos decorrentes de restrições verticais[22], o histórico mais recente das decisões do Conselho Administrativo de Defesa Econômica – órgão responsável pela aplicação da legislação concorrencial no Brasil – é de grande consistência na verificação do que se convencionou chamar de hipóteses de fechamento de mercado.

Para aferir a ilicitude de condutas que tenham o potencial de fechamento de mercado, as autoridades concorrenciais brasileiras normalmente cingem a sua análise à verificação de três aspectos: (i) se o agente detém posição dominante (normalmente presumida por meio de uma elevada participação de mercado) em mercados a jusante ou a montante (acima ou abaixo); (ii) se a conduta é suficiente para impor prejuízo a concorrentes efetivos ou potenciais, por meio de restrição de acesso a insumos ou canais de distribuição; e, (iii) se da conduta não decorrem eficiências relevantes e suficientes para compensar os eventuais prejuízos.

São, portanto, muito semelhantes aos critérios adotados pela autoridade europeia para a verificação da ilicitude no caso ISU.

Diante desses critérios, e tomando-se por base o ferramental analítico que vem sendo construído a partir das avaliações dos casos ISU e ISL, ao menos em tese, há bons fundamentos para se defender pela possível constatação de irregularidade concorrencial em uma eventual avaliação por parte das autoridades concorrenciais brasileiras de possíveis condutas de entidades de administração do desporto que impliquem em punições ou restrições, ainda que veladas, a atletas e árbitros que participem de competições administradas por terceiros independentes.

Conclusão

 

A criação de ligas e competições esportivas independentes confere aos praticantes do esporte, sejam eles coletivos ou individuais, a prerrogativa de melhor negociar suas propriedades e gerir seus interesses econômicos, beneficiando-se de maneira mais completa do produto de seu trabalho e esforço.

Essa é uma realidade em diversas modalidades extremamente relevantes sob o ponto de vista da base de fãs e de repercussão econômica, e o sucesso alcançado nessas modalidades tende a incentivar que outras modalidades desportivas busquem mimetizá-las.

O reconhecimento pelas autoridades concorrenciais de que as regras de organização do esporte, a despeito de sua especificidade, estão sujeitas à aplicação das regras de concorrência significam um importante marco no sentido de conferir ao esporte o status de atividade empresarial. O que não é irrelevante.

Obviamente, esses novos paradigmas ainda enfrentam resistência dos antigos gestores das entidades de administração do esporte, que usam de argumentos e ameaças pouco democráticas para desincentivar a constituição e o desenvolvimento da concorrência.

Contudo, os impactos da decisão da Comissão Europeia no caso ISU e aqueles decorrentes da instauração de um litígio por descumprimento de regras concorrenciais no caso FINA vs ISL demonstram que mais e mais o esporte terá de se adequar a essa realidade, permitindo o desenvolvimento do esporte como negócio, de forma plural e participativa.

No Brasil, ainda que a realidade do esporte como negócio seja bastante incipiente, o enquadramento jurídico fornece o devido ferramental para que se empreenda nesse sentido.

 

……….

[1] José Francisco Manssur é graduado em direito pela PUC-SP. Tiago Gomes é graduado em direito e mestre em direito comercial pela Universidade de São Paulo. Ambos são sócios de Ambiel, Manssur, Belfiore, Gomes e Hanna Advogados.

[2] Cf. <https://www.fifa.com/who-we-are/news/statement-by-fifa-and-the-six-confederations> acessado em 31 de janeiro de 2021.

[3] A decisão completa da Comissão Europeia pode ser vista, em inglês, em <https://ec.europa.eu/competition/antitrust/cases/dec_docs/40208/40208_1384_5.pdf>, acessado em 31 de janeiro de 2021. Uma versão resumida da decisão, em português, pode ser lida em <https://eur-lex.europa.eu/legal-content/PT/TXT/PDF/?uri=CELEX:52018XC0427(02)&from=EN>, acessado em 31 de janeiro de 2021.

[4] Para relatos mais detalhados da controvérsia, confira-se https://www.swimmingworldmagazine.com/news/a-quick-overview-of-fina-and-the-isl/ e https://www.lawinsport.com/topics/competition-law/item/fina-s-decision-to-allow-market-access-to-rival-competitions-a-turn-of-the-tide-in-professional-swimming?category_id=125#references, ambos acessados em 04 de fevereiro de 2021.

[5] Os demais são o salto ornamental, o salto de plataforma elevada, o nado artístico, o polo aquático e a natação em águas abertas.

[6] Cf. <https://swimswam.com/international-swimming-league-2018-event-to-launch-with-2-1-million-in-prize-and-appearance-money-2/> acessado em 04 de fevereiro de 2021.

[7] Confira-se o vídeo contido em <https://isl.global/about> acessado em 04 de fevereiro de 2021.

[8] Disponível em <https://www.fina.org/sites/default/files/fina_memorandum_to_all_fina_members_-_05.06.2018-2.pdf> acessado em 04 de fevereiro de 2021.

[9] Disponível em <https://www.fina.org/sites/default/files/fina_memorandum_to_all_fina_members_-_05.06.2018-2.pdf> acessado em 04 de fevereiro de 2021.

[10] Cf. <https://isl.global/meet-announcement/> acessado em 04 de fevereiro de 2021.

[11] Cf. <https://swimswam.com/isl-fina-delaying-agreement-because-they-know-time-is-critical/?fbclid=IwAR1Kb_UONk6ngx5x6PgOWYEPEZhpNMDMhlm-VmaQrsqstt_yAuPIcgMQQAE> acessado em 04 de fevereiro de 2021.

[12] Cf. <http://www.fina.org/news/pr-88-fina-increases-prize-money-hangzhou-2018> acessado em 04 de fevereiro de 2021.

[13] A publicação especializada em natação Swimming World publicou uma cópia das petições iniciais em seu site. Confira-se em <https://swimmingworld.azureedge.net/news/wp-content/uploads/2018/12/isl-lawsuit.pdf> e <https://swimmingworld.azureedge.net/news/wp-content/uploads/2018/12/shields-andrew-hosszu-lawsuit.pdf>, acessados em 04 de fevereiro de 2021.

[14] Cf. <https://www.swimmingworldmagazine.com/news/international-swimming-league-wins-latest-round-against-fina-court-backs-discovery/>, acessado em 04 de fevereiro de 2021.

[15] Cf. <https://www.swimmingworldmagazine.com/news/international-swimming-league-updates-legal-claims-with-copycat-charges-against-fina/>, acessado em 04 de fevereiro de 2021.

[16] Cf. <https://www.fina.org/sites/default/files/general/css2020_rr_v1_20191203_0.pdf>, acessado em 04 de fevereiro de 2021.

[17] Cf. <http://www.fina.org/event/fina-champions-swim-series-2020>, acessado em 04 de fevereiro de 2021.

[18] Cf.<http://www.fina.org/event/champions-swim-series-2020/details>, acessado em 04 de fevereiro de 2021.

[19] Cf. <https://www.natlawreview.com/article/fina-changes-its-stance-after-world-champion-swimmers-antitrust-claims-throw-it-deep>, acessado em 04 de fevereiro de 2021.

[20] Comunicado divulgado em <https://www.fina.org/print/50461>, acessado em 04 de fevereiro de 2021.

[21] Art. 20. As entidades de prática desportiva participantes de competições do Sistema Nacional do Desporto poderão organizar ligas regionais ou nacionais.

1o(VETADO)

2oAs entidades de prática desportiva que organizarem ligas, na forma do caputdeste artigo, comunicarão a criação destas às entidades nacionais de administração do desporto das respectivas modalidades.

3oAs ligas integrarão os sistemas das entidades nacionais de administração do desporto que incluírem suas competições nos respectivos calendários anuais de eventos oficiais.

4oNa hipótese prevista no caputdeste artigo, é facultado às entidades de prática desportiva participarem, também, de campeonatos nas entidades de administração do desporto a que estiverem filiadas.

5oÉ vedada qualquer intervenção das entidades de administração do desporto nas ligas que se mantiverem independentes.

6oAs ligas formadas por entidades de prática desportiva envolvidas em competições de atletas profissionais equiparam-se, para fins do cumprimento do disposto nesta Lei, às entidades de administração do desporto.

7oAs entidades nacionais de administração de desporto serão responsáveis pela organização dos calendários anuais de eventos oficiais das respectivas modalidades.

[22] Cf. AZEVEDO, Paulo Furquim, Restrições Verticais e Defesa da Concorrência: A Experiência Brasileira, em SCHAPIRO, Mário G.; CARVALHO, Vinícius M.; CORDOVIL, Leonor (org.), Direito Econômico Concorrencial, São Paulo, Saraiva, 2013, v. 1, pp. 199-244.

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