Nos últimos dias, o cenário do direito desportivo brasileiro foi surpreendido com a notícia de que a 4ª Comissão Disciplinar do TJD-MG (nos autos do processo 022-2025), ao julgar o atleta Gabigol e o dirigente Alexandre Mattos, ambos do Cruzeiro, por conta de atos de indisciplina praticados na partida contra o Atlético-MG, disputada no último dia 09 de fevereiro pelo Campeonato Mineiro, fixou o entendimento, nos termos do voto do auditor relator (seguido por unanimidade), de que as sanções disciplinares aplicadas em competições estaduais podem ser cumpridas nas competições nacionais, mesmo que organizadas por entidades diversas. No caso em tela, dirigente foi punido com 30 dias de afastamento, ao passo que Gabigol foi suspenso por uma partida.
De início, a reação da comunidade esportiva foi de perplexidade, pois toda a estruturação da decisão claramente ofende os parâmetros legais que regem o esporte. Nos termos do voto do auditor relator, em aperta síntese, seria necessária uma interpretação sistemática do art. 171, §1º do CBJD, pois limitar as punições disciplinares às competições organizadas pela Federação Mineira de Futebol (FMF) geraria inconsistências e esbarraria em óbices da estrutura organizacional (piramidal) do futebol brasileiro. Ficaram realçados pontos como a disparidade de tratamento e a fragilidade da disciplina (atletas punidos no Campeonato Mineiro poderiam disputar livremente as competições nacionais) e o desrespeito à hierarquia (a CBF exerce poder normativo e administrativo sobre as federações estaduais, acobertadas em uma estrutura de “guarda-chuva”).
Com a devida vênia, ousamos discordar dos referidos argumentos. É sabido que a cadeia esportiva do futebol brasileiro (com as devidas adaptações, a mesma estrutura é replicada em outros esportes) é organizada na forma piramidal, fazendo que as entidades que fazem parte do sistema associativo voluntário (e privado) governado pela FIFA sejam organizadas dentro de uma estrutura hierárquica e que gozam de relativa autonomia dentro de tal arcabouço. A FIFA é entidade máxima do futebol, cuja liderança e regulamentos próprios vinculam as entidades continentais, as quais, por sua vez, abraçam as federações nacionais, regionais e os clubes. Pelo regramento da Lei Pelé, os tribunais desportivos são vinculados e mantidos pelas federações, embora formalmente independentes delas. A questão é que o fato de a CBF exercer certo poder regulamentar sobre as federações locais não nos parece autorizar a conclusão externada na decisão do TJD-MG.
Vejamos.
O Código Brasileiro de Justiça Desportiva (CBJD), já em seu artigo inaugural, diferencia as entidades nacionais das entidades regionais de administração do desporto (federações). No mais, o art. 171 do CBJD, valendo-se da referida distinção, deixa claro que a sanção disciplinar de suspensão por partidas será cumprida na mesma competição na qual foi cometida a infração e que, em caso de impossibilidade, o cumprimento ocorrerá no próximo torneio organizado pela entidade de administração que, no caso, seria a Federação Mineira de Futebol. Não nos parece que a norma venha a franquear um espaço interpretativo que permita ao julgador extrapolar o âmbito da eficácia territorial de suas decisões. Neste ponto, é nítida certa simetria com as regras tradicionais de competência da justiça comum em relação ao processo individual, no sentido de que a eficácia das decisões judiciais fica restrita à abrangência territorial do órgão julgador. O art. 24 também deixa claro que os órgãos da Justiça Desportiva só podem atuar legitimamente nos limites da jurisdição territorial de cada entidade de administração do desporto e de sua respectiva modalidade.
A decisão em tela opera alguns “malabarismos” argumentativos, mas no fundo parece fruto de simples voluntarismo. Os tribunais desportivos não devem cair em tal tentação, mesmo que com a melhor das intenções, sob pena de cometer ilegalidades e trazer insegurança jurídica ao ambiente esportivo. Como viemos defendendo em vários escritos anteriores, a Justiça Desportiva precisa atuar de maneira minimalista, sendo a mais “discreta” possível para não alterar o curso das disputas para além do estritamente necessário.
Para o apreciador do futebol, muitas vezes movido por um compreensível senso pessoal de justiça, reconhecemos que pode parecer estranho e pouco pedagógico o fato de um atleta sofrer uma punição em uma temporada e acabar por cumpri-la, muitas vezes, em outra competição e até em temporada diversa. Trata-se de uma singularidade do nosso modelo de futebol, que convive com a coexistência de torneios nacionais e regionais organizados por diferentes entidades. Esta, definitivamente, não é a realidade de todos os países, cujo esporte foi se nacionalizando paulatinamente e fez com que tal discussão perdesse sentido em outros sistemas. Por exemplo, um atleta inglês que sofre uma sanção disciplinar por conta de ato de indisciplina praticado na Premier League, poderá cumpri-la imediatamente nas partidas seguidas, seja por esta mesma competição, pela FA CUP e ou pela Copa da Liga Inglesa, que são disputadas simultaneamente.
Enfim, entendemos que a decisão sob discussão padece de graves vícios, especialmente de legalidade. Não cabe ao julgador corrigir o sistema por via de seus julgados. Qualquer exceção que possa permitir a extensão territorial das decisões que impõem sanções disciplinares deve constar da própria regulamentação privada do esporte, o que ocorre, por exemplo, por meio do mecanismo de internacionalização das punições relativas à manipulação de resultados, previsto nos Estatutos da FIFA.
Caberá ao STJD sepultar a discussão caso a questão lhe seja endereçada por meio dos instrumentos processuais cabíveis.
Crédito imagem: Gustavo Aleixo/Cruzeiro
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