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Caster Semenya e o futuro do esporte como o conhecemos

Por Américo Espallargas e Beatriz Chevis

Está nas mãos do Tribunal Arbitral do Esporte (CAS, na sigla em inglês) uma das decisões mais importantes – e mais polêmicas – que o esporte deve enfrentar no século XXI. Caster Semenya, corredora sul-africana multicampeã e especialista nos 800 metros, apresentou um recurso na corte contra o regulamento da Federação Internacional de Atletismo (IAAF) que a obrigaria a tomar medicamentos para reduzir o nível de testosterona em seu corpo.

Semenya é portadora de hiperandrogenismo, uma condição biológica natural na qual a mulher produz andrógenos, destacadamente a testosterona, em patamares superiores ao padrão médio. No caso de Semenya, isso a torna uma incrível competidora no atletismo, proporcional ao criticismo que sofre em razão de sua condição.

É importante destacar que o hiperandrogenismo não se confunde com transexualidade no esporte: o primeiro é uma condição com a qual a pessoa nasce; o segundo, via de regra, passa por intervenção médica externa, especialmente no que diz respeito ao uso de suplementação hormonal.

O debate não é novo, mas segue sendo atual. Em 2015 o CAS decidiu um caso parecido envolvendo a corredora indiana Dutee Chand, também portadora de hiperandrogenismo. À época, a corte entendeu que não havia fundamento científico substancial para justificar uma regulamentação específica para o caso, tendo suspendido o regulamento da IAAF que tratava do tema. O caso chegou ao fim quando a IAAF decidiu implementar novas regras, agora questionadas por Semenya.

De lá para cá, a IAAF se dedicou a obter estudos científicos mostrando que de fato mulheres hiperandrogênicas têm uma vantagem competitiva. O valor de 3% de desempenho superior verificado pelo estudo da IAAF, porém, foi duramente criticado por especialistas na área e classificado como “cientificamente incorreto”. Nada obstante, a IAAF seguiu adiante com um novo regulamento, propondo a redução do nível de testosterona no sangue de 10 para 5 nanomols/litro. Para Semenya, isso representaria uma perda de 5 a 7 segundos em provas de alto nível, reportou o The Guardian ao ouvir o pesquisador Ross Tucker, escalado por Semenya como um dos experts a ser ouvido no CAS.

A atleta conta com o apoio de diversas personalidades, incluindo cientistas, dirigentes e políticos da África do Sul. A ministra do Esporte local, Thokozile Xasa, foi à Suíça para acompanhar Semenya na luta contra as novas regras da IAAF, descritas por ela como uma “violação ao corpo das mulheres”. Várias entidades de defesa dos direitos humanos e das mulheres também se manifestaram em favor da atleta sul-africana, ao passo que o próprio governo lançou campanha nas mídias sociais por meio de hashtag que faz referência à sua condição física naturalmente superior (#NaturallySuperior, na língua inglesa).

O assunto, que hoje ocupa posição de destaque na mídia, ultrapassa a questão meramente esportiva. É de se questionar se eventual proibição na linha da pretendida pela IAAF constitui violação aos direitos humanos, tendo em vista que a pauta abrange, por meio da definição de limites para competir, a exposição do corpo das mulheres e de sua própria identidade.

Ao fundo, o embate acaba por colocar na balança dois alicerces da prática esportiva: de um lado o fair play, a igualdade na competição, e de outro, o pluralismo e o combate à discriminação. As entidades de prática esportiva, por meio do controle antidopagem, sempre se preocuparam em coibir práticas manifestamente atentatórias à lealdade das competições. No entanto, em se tratando de variações biológicas, como na realidade de Semenya, cumpre indagar até que ponto a igualdade pode e deve ser privilegiada.

Em vista do cenário do esporte atual e do crescimento das pautas de luta e inclusão, é de se esperar que o caso de Semenya, que já não foi o primeiro, também não seja o último a desafiar as cortes internacionais. Trata-se de consequência natural da tentativa insustentável de dividir objetivamente seres humanos cujas particularidades não podem ser resumidas em categorias. Nessa linha, potencial (e polêmica) alternativa encontra-se na adoção de sistema semelhante ao do esporte paraolímpico, o que já vem sendo levantado por especialistas. Ainda que com as suas próprias dificuldades, não há como negar que o paralimpismo promove a igualdade ao considerar o grau das deficiências sem ter que sacrificar uma identidade para isso.

Em meio à infinidade de questionamentos, há que se considerar que a decisão, com o veredito marcado pelo CAS para o dia 26 de março, constitui marco fundamental para o destino do atletismo e, mais do que isso, para o futuro do esporte de alto rendimento como um todo.

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