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Clubes não assumem responsabilidades na base, e problema com drogas aumenta

Quem busca ser um profissional do futebol precisa entender que vai lidar com algo gigante sobre os ombros: a pressão psicológica. A vigilância é permanente, a cobrança monstruosa, o êxito fugaz. E, para colocar mais peso nesses ombros, um jogador carrega com ele o próprio sonho e o de toda a família.

Sim, essa pressão emocional começa na base. Os clubes precisam assumir a responsabilidade que têm como formadores, não apenas de atletas, mas de seres humanos. Equilíbrio emocional é base na preparação esportiva.

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Não espere pela legislação, que fala de maneira genérica, no artigo 29 da Lei Pelé, que os clubes têm de “garantir assistência educacional, psicológica, médica e odontológica, assim como alimentação, transporte e convivência familiar”. A imensa maioria coloca um psicólogo de plantão e está cumprindo o que manda a lei. Até porque vigilância e cobrança sobre o trabalho de base pelas entidades esportivas e pelo poder público não existe.

O dever do clube não é só legal, é moral. O uso de drogas sociais no futebol aumentou e preocupa. E, sim, isso também está ligado à pouca atenção que o futebol, em especial, dá à formação desses meninos – não a formação da técnica do jogo, mas a de como lidar com o mundo.

Você vai entender melhor essa história com Thiago Braga, que conversou com especialistas sobre esse problema brasileiro.

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A alta exposição à qual os jogadores de futebol têm sido submetidos está trazendo um efeito colateral preocupante para os atletas. A pressão pelo máximo desempenho, as frustrações, a cobrança da torcida. Tudo isso somado pode desencadear um quadro clínico complexo e levar o jogador a ter a sua saúde mental afetada.

Na última semana, o São Bento, tradicional clube do interior de São Paulo, anunciou que o lateral direito Régis havia abandonado o tratamento contra dependência química iniciado sob supervisão do clube, em março. Ele faltou aos treinos de domingo e segunda-feira e desfalcou a equipe no jogo de terça-feira, contra o Coritiba, pela décima rodada da Série B. Na última sexta-feira (18), o clube divulgou que Régis tinha retomado o tratamento. Mas qual o papel dos clubes quando o problema é o uso das “drogas sociais”?

O apoio psicológico como uma obrigação só é descrito na Lei Pelé em relação aos clubes formadores, quando exige que o clube disponibilize para o atleta em formação um psicólogo. “Não existe uma especificação de que forma essa pessoa tem que atuar, quantos psicólogos você precisa ter a cada número mínimo ou máximo de atletas, se isso precisa ser do clube ou pode ser terceirizado, é uma obrigação prevista de forma genérica”, analisa a advogada Danielle Maiolini, especializada em Direito Esportivo. “Hoje os clubes que têm o Certificado de Clube Formador da CBF realmente têm um psicólogo. Mas a forma como isso acontece no dia a dia, esse acompanhamento, não dá para se dizer se está sendo feito de forma adequada ou não, porque fica de acordo com a ingerência de cada clube”, reforça a advogada.

Régis teve uma ascensão meteórica. Depois de ser destaque no Campeonato Paulista de 2018 com a camisa do São Bento, foi contratado pelo São Paulo, mas o vício em cocaína interrompeu sua trajetória de ascensão. Teve o contrato rescindido com o tricolor, passou por CSA, e retornou ao São Bento, onde finalmente aceitou se tratar.

Para o psicólogo do esporte João Ricardo Cozac, o acompanhamento psicológico para os jogadores é fundamental.

“No triângulo da preparação esportiva, de um lado temos a parte física, do outro a parte técnica, e a base dessa pirâmide é a parte mental e emocional. Tanto nas categorias de base como no profissional, é preciso fortalecer os atletas para encarar as pressões da carreira profissional, a expectativa da mídia, da torcida, para poder dar conta de uma rotina bastante cansativa de jogos, treinos e viagens”, esclarece o psicólogo, que é presidente da Associação Paulista de Psicologia no Esporte.

Quem deseja ser jogador profissional o faz, geralmente, ainda criança. Boa parte das vezes, esses meninos passam parte da infância e toda a adolescência longe de casa, sem referência familiar, sob cuidados do clube em que joga, justamente um dos períodos mais críticos na formação do ser humano, independentemente de se tornar atleta profissional ou não. Isso contribui para a falta de discernimento na hora de saber o que deve ou não deve ser consumido.

“Nas categorias de base, os atletas têm que abandonar um período importante da vida deles, que é a adolescência. No ciclo normal da vida, ninguém passa da infância para a fase adulta sem ser adolescente. E eles acabam tendo um déficit no desenvolvimento, vão viver essa adolescência aos 25, 30 anos, quebrando o ritmo natural do ciclo do aprendizado do conhecimento, de estar bem adaptado. O abuso de álcool e drogas está atrelado ao fortalecimento no plano psicológico. Falta aos clubes entenderem que um pequeno investimento em um departamento de psicologia no esporte poderia evitar grandes e desastrosos prejuízos, não só no plano humano, mas também no prejuízo financeiro que esses clubes têm ao investir em atletas talentosos com a bola nos pés, mas extremamente inábeis na condução de suas próprias carreiras”, avalia João Ricardo Cozac.

A lista de jogadores que tiveram problemas com drogas, passando desde um dos maiores da história, Diego Armando Maradona, abrange Dinei, Mutu, Régis, Rodolfo, Michael, Caniggia.

“A pressão é inerente à vida, e a cobrança por desempenho também. O vício com álcool e outras substâncias é algo complexo e multifatorial. Não é necessariamente a falta de acompanhamento que leva o atleta ao vício. Mas a presença desse acompanhamento pode auxiliar esses atletas. Tão importante quanto o acompanhamento é a presença de profissionais capacitados, que entendam de esporte”, ressalta a psiquiatra Lívia Beraldo de Lima Basseres, mestre em Psiquiatria pela USP.

Recentemente, além de Régis, o goleiro Rodolfo, do Fluminense, e o atacante Gonzalo Carneiro, do São Paulo, tiveram problemas por conta do uso de cocaína. Para a advogada Danielle Maiolini, os clubes precisam estar atentos ao aspecto psicológico dos jogadores. “É responsabilidade de quem usufrui dessa prestação de serviço garantir que exista um ambiente saudável em nível psicológico. Quando a Lei Pelé dispõe, de forma genérica, sobre garantir as boas condições, abarca também a necessidade de apoio psicológico para o atleta profissional, não só os atletas das categorias de base”, diz a advogada.

O artigo 2, XI, da Lei Pelé fala “da segurança, propiciado ao praticante de qualquer modalidade desportiva, quanto a sua integridade física, mental ou sensorial”. No artigo 29, parágrafo 2º, a alínea “c”, afirma-se que os clubes têm de “garantir assistência educacional, psicológica, médica e odontológica, assim como alimentação, transporte e convivência familiar” aos atletas das categorias de base.

Para os especialistas, o descaso com a questão psicológica é um caso de responsabilidade socioinstitucional com os atletas, e a falta de um programa psicológico os expõe a riscos que um trabalho de prevenção poderia diminuir. “Apesar de a legislação obrigar o trabalho psicológico, vejo trabalhos apenas para isentar o clube da multa. [Há muitos psicólogos que] não conhecem o esporte, não sabem do dia a dia dos atletas. Se não partir dos clubes essa preocupação, os atletas continuarão reféns de suas fragilidades. Grande parte dos clubes não demonstra preocupação em realizar trabalhos profundos de prevenção à saúde”, dispara o psicólogo João Ricardo Cozac, especialista em psicologia no esporte.

Depois de vir e praticamente montar uma cidade no interior da Bahia com toda a estrutura possível para o melhor rendimento dos atletas na Copa do Mundo de 2014, a Alemanha mostra que o acompanhamento psicológico é fundamental para o crescimento dos esportistas.

“Acredito na ideia utilizada no futebol alemão, que tem um psicólogo para cada categoria: mirim, infantil, juvenil, juniores e profissional. Cinco por clube. Sempre que um atleta sobe de categoria, o perfil psicológico, todo o conjunto de informações, é passado de psicólogo para psicólogo. Um por categoria, criando uma noção de departamento psicológico, é o ideal. E tudo isso é acompanhado pelos médicos da seleção. Quando um atleta é convocado, chega à seleção com todo o seu histórico pronto”, revela o psicólogo.

Para a advogada Danielle Maiolini, não é despropositado que atletas de alta performance tenham problemas com uso de drogas. “O jogador vive em uma sociedade em que jovens estão sujeitos a isso, e o futebol não é um universo à parte. Futebol tem alguns ingredientes que podem contribuir para o aumento do consumo de drogas. Ainda que o clube muitas vezes possa proporcionar uma situação melhor do que a criança tem em casa, não é de se negligenciar que é uma vida nova, difícil, às vezes longe dos pais e dos amigos. Então é algo que deixa as crianças mais suscetíveis ao consumo. A depender de como a coisa vai evoluindo, desemboca-se em situações como essas que a gente tanto vê”, justifica.

Para evitar que a situação atinja níveis preocupantes, João Ricardo Cozac afirma que o acompanhamento psicológico tenha “uma periodicidade alta, de quatro a cinco vezes por semana”, e com o psicólogo devendo ser incorporado à comissão técnica, “para interagir de forma produtiva com os atletas”, analisa.

Por fim, se nada disso der certo, vai chegar o momento em que o atleta perde a capacidade de concentração e apresenta uma lesão emocional, e o clube vai precisar decidir o que fazer. “Acredito que a hora de afastar é quando há prejuízos na sua rotina. Melhor afastar antes de que algo mais grave aconteça”, finaliza a psiquiatra Lívia Beraldo de Lima Basseres.

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