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Comédia à italiana

Dos anos 1950 a meados dos 1970, o gênero “Comédia à Italiana” fez sucesso mundial. Com uma sátira social inteligente, reflexiva e engraçada, ela retratou o pós-guerra italiano, cuja sociedade convivia contraditoriamente entre o anseio à modernização e o apego a estruturas arcaicas.

Um dos sistemas mais obsoletos e que teimou por permanecer ao longo da transformação da nação foi a Inquisição Romana. Criada em 1542, pelo Papa Paulo III, ela tinha jurisdição sobre todo o mundo católico, julgando casos de heresia, feitiçaria, imoralidade, blasfêmia, bruxaria e etc. Um autêntico tribunal de terror que encheu o mundo de pânico e medo.

Essa Corte perdurou por longos 400 anos, tendo sido extinta em pleno século XX, apenas em 1965 (!), bem no auge dos filmes satíricos italianos. Embora tais películas não sejam mais produzidas, um fato atual reacende esse apego do “país da bota” ao passado empoeirado e apodrecido, sem possuir, todavia, nada que seja engraçado.

É que a justiça desportiva na Itália anda punindo atletas que citem o nome de Deus durante as partidas. Recentemente Matteo Scozzarella, do Parma, e Francesco Magnanelli, do Sassuolo, foram condenados por essa “blasfêmia”.

A postura lembra muito a Inquisição Romana, porém às avessas, porque enquanto aquela punia quem negasse a figura do Criador, esta castiga quem pronuncie o seu nome. Além de serem ridículas, tais penalizações são ilegais, uma vez que extrapolam os limites de atribuição da justiça desportiva.

Por coincidência, foi precisamente no Direito Canônico da Igreja Católica que surgiu a idéia de delimitar o âmbito de atuação dos magistrados, o que juridicamente atende pelo nome de competência.

Com efeito, quando no fim do século XI a igreja resolveu chamar para si o poder de julgar, ela houve por bem definir as fronteiras de sua alçada, uma vez que a jurisdição era exercida simultaneamente por bispos, senhores feudais, papas, reis e imperadores.

Para definir sua competência, o Direito Canônico valeu-se de dois critérios que utilizamos até os dias atuais: “Ratione Personarum” (em razão das pessoas) e “ratione materiae” (em razão da matéria).

Assim, em razão das pessoas, a igreja julgava membros do clero, miseráveis, judeus, cruzados, dentre alguns outros, enquanto, em razão da matéria, ela decidia sobre assuntos religiosos, disciplina e organização eclesiástica, sacramentos, testamentos, além de “pecados públicos”, como usura, heresia e adultério.

Os critérios de definição de competência da justiça desportiva são muito semelhantes, pois ela apenas julga os indivíduos que façam parte do regime federativo. Contudo, ela só entra em cena se os personagens estiverem envolvidos em questões estritamente esportivas. Há, portanto a combinação dos critérios “em razão da pessoa” e “em razão da matéria”.

Ou seja, não basta que o sujeito seja um jogador, treinador, dirigente e etc para que seja julgado por uma Corte do Esporte: é preciso também que o fato reprovável tenha índole desportiva. Se assim não fosse, a pessoa não seria mais julgada por qualquer outro tribunal na vida…

Não faria o menor sentido, por exemplo, que, se um atleta matasse alguém, roubasse uma motocicleta, ou tivesse que ser despejado de um imóvel, fosse julgado única e simplesmente pela Justiça Desportiva, a menos que estejamos diante de uma verdadeira tragicomédia jurídica.

Ocorre que na terra do Papa parece que estão querendo mesmo é fazer graça, julgando casos que, em essência, nada mais discutem a não ser supostas violações ao segundo mandamento do catolicismo, qual seja o de “Não pronunciar o nome de Deus em vão”, transformando a justiça desportiva num burlesco Tribunal Eclesiástico.

Para que a encenação ficasse minimamente bem feita, pelo menos deveriam saber o que significa esse preceito. Bastaria dar um pulo no Vaticano que fica bem pertinho da Federação Italiana ou acessar o seu site oficial para aprenderem sobre o mandamento que estão julgando.

Lá é dito (surreal termos de tratar disso aqui…) que o mandamento proíbe o abuso do nome de Deus, como usá-lo em promessas mentirosas, juras falsas (perjúrio), proferir palavras de ódio, censura, ou ainda usar sua figura para justificar crimes (blasfêmia).

O que os atletas costumam fazer não é nada disso. Eles invocam a divindade dentro de campo, assim como qualquer um de nós tem por hábito de agir em momentos difíceis, seja na hora de uma prova, no começo de uma audiência, ao seguir para uma mesa de cirurgia e daí por diante.

Aliás, o nosso constituinte bem no preâmbulo da Constituição, ao promulgar nossa Carta Magna, disse que assim o fez, “sob a proteção de Deus”, demonstrando o quão é inerente à natureza humana apelar para o Altíssimo em todas as coisas que faz.

E se isto é natural também é conforme o direito. Como salienta Heinrich Stoll “Se o legislador passa por alto ou deprecia a natureza das coisas e crê poder configurar o mundo segundo seus desejos, em breve terá que experimentar a verdade da máxima horaciana: Naturam expellas furca, tamen usque recurret: “Ainda que a expulses com um forcado a natureza voltará a aparecer”.

Seria inútil e sobretudo patético punir atletas por pronunciarem o nome de Deus em campo. Imagine-se por exemplo, castigar Jairzinho, que em todos os gols que fez na copa de 70, fazia o sinal da cruz. Pelas sucessivas “reincidências”, acabaria sendo banido definitivamente do futebol…

O fato é que estão extrapolando os limites da competência da justiça desportiva e nem adianta dizer que exista previsão no Código Disciplinar, porque se a regra aborda matéria estranha ao esporte, ela é manifestamente ilegal por transbordar os limites de sua esfera de competência.

O papel aceita tudo. O que não dá para aceitar é que um código regule temas bíblicos e ainda por cima, exponha o tribunal a passar vergonha por julgar errado um assunto que desconhece… É tudo tão absurdo que lembra mais os filmes italianos do tipo pastelão de péssima qualidade do que a divertida era de ouro do cinema que marcou aquele país.

Mas talvez ainda haja quem consiga dar uma risada diante do resultado absurdo dessa Inquisição Romana às avessas: é que se invocar a aura de Deus em campo é proibido, pronunciar o nome do diabo é totalmente lícito…

É isso aí.

Pelo menos juridicamente, não há problema algum.

Qualquer pessoa pode evocar o capeta à vontade.

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