Conmebol escapa no sorteio, mas problemática do MCO deve ser debatida

Fernando Silvestre Filho

Eduardo Luz

Na noite de ontem (17/03/2025), foram sorteados os grupos da Libertadores e da Sul-americana de 2025. E um ponto que passou despercebido por grande parte da mídia, mas que poderia pôr em xeque a idoneidade da competição foi o (quase) sorteio entre Esporte Clube Bahia e Bolívar no mesmo grupo.

Ambos foram sorteados em grupos vizinhos e, por apenas uma “bolinha”, o confronto entre as equipes não ocorreu. No entanto, esse confronto poderia acontecer tanto na Libertadores quanto na Sul-Americana. Para quem se pergunta: qual o problema de essas equipes se enfrentarem? Respondo: ambas fazem parte do conglomerado de clubes mais famoso do futebol mundial: o City Football Group (CFG).

O Bahia, como é de conhecimento público, constituiu uma Sociedade Anônima do Futebol (SAF) em 2023, tendo alienado 90% de suas cotas sociais ao CFG. Já o Bolívar, embora não tenha nenhuma ação diretamente pertencente ao grupo, mantém uma relação formal de “clube parceiro”.[1].

Ademais, o sócio proprietário de 100% das cotas sociais do Bolívar é o Sr. Marcelo Claure que é sócio também do Girona Futbol Club*[2] e do New York City, ambos integrantes do CFG.

Diante disso pergunta-se, você, como consumidor, compraria um ingresso e acreditaria na lisura de uma partida entre “clubes parceiros”? Imagine um cenário em que o Bolívar já esteja eliminado na última rodada da fase de grupos e o Bahia precise da vitória para garantir a classificação. Alguém acredita que o Bolívar iria se empenhar ao máximo para derrotar um clube que é seu parceiro declarado?

Evidentemente, um sorteio assim colocaria em risco a idoneidade da competição, abrindo margem até mesmo para litígios judiciais envolvendo os clubes prejudicados.

No entanto, esse não é um assunto de baixa complexidade e com soluções simplórias. Muito pelo contrário. O conglomerado de clubes, mais conhecido pela sigla MCO (multi-club ownership) representa um problema global, pois estima-se que existam cerca de 50 diferentes tipos de MCO no mundo. Além do CFG, outros grupos conhecidos no Brasil incluem a 777 Partners, o Red Bull Group e a Eagle Football Holdings (John Textor). Há também a categoria MCI (Multi-Club Investment), em que, embora não haja controle direto sobre um clube, há interesses e investimentos significativos nele.

A UEFA, apesar de regular ainda de forma ineficiente e de trazer soluções “para inglês ver” é a entidade de administração do desporto que mais se aprofundou na problemática.

Em 2024, a UEFA formalmente afirmou que equipes com participação acionária da mesma entidade podem competir em diferentes competições europeias. No entanto, dentro da mesma competição, a UEFA delimitou o conceito de controle para definir se duas equipes podem ou não disputar a mesma competição. Vejamos o artigo 5º da “Uefa Competition Regulations” 2024/25:

Art. 5[3]. c) Nenhuma pessoa física ou jurídica pode ter controle ou influência sobre mais de um clube participante de uma competição de clubes da UEFA, sendo esse controle ou influência definido, neste contexto, como:

i) deter a maioria dos direitos de voto dos acionistas;

ii) ter o direito de nomear ou destituir a maioria dos membros do órgão administrativo, de gestão ou de supervisão do clube;

iii) ser acionista e, sozinho, controlar a maioria dos direitos de voto dos acionistas, conforme acordo firmado com outros acionistas do clube; ou

iv) ser capaz de exercer, por qualquer meio, uma influência decisiva na tomada de decisões do clube

Além disso, a UEFA estabeleceu os critérios para determinar, em caso de conflito entre classificados, qual equipe continuaria na competição:

Art. 5.02[4] Se dois ou mais clubes não cumprirem os critérios destinados a garantir a integridade da competição, apenas um deles poderá ser admitido em uma competição de clubes da UEFA, de acordo com os seguintes critérios (aplicáveis em ordem decrescente):

a) o clube que se classificar por mérito esportivo para a competição de clubes da UEFA mais prestigiosa (ou seja, em ordem decrescente: UEFA Champions League, UEFA Europa League ou UEFA Europa Conference League);

b) o clube que tiver a melhor classificação no campeonato nacional que dá acesso à respectiva competição de clubes da UEFA;

c) o clube cuja associação nacional estiver melhor classificada na lista de acesso (ver Anexo A).

Note-se que a todo momento a UEFA, corretamente, somente busca regulamentar e proteger a integridade da competição, sem se preocupar com a questão do MCO per se, até porque não é de competência da UEFA definir de que maneira cada pessoa deve investir seu dinheiro.

No entanto, apesar da UEFA ser o ente com uma maior profundidade no tema, ao menos do ponto de vista teórico, deixa bastante a desejar na adoção de medidas eficazes, nos casos concretos.

Em 2017, a UEFA tomou a decisão de permitir que o Red Bull Salzburg e o Red Bull Leipzig participassem da mesma competição, tendo em vista que, segundo a entidade, a empresa de energéticos possuía apenas uma “relação de patrocínio” com o clube austríaco[5]. Ora, nem eu, nem você acreditamos nisso (ainda mais levando em conta as 17 transações de atletas que tais clubes já fizeram entre si, nos últimos 10 anos)!

Ademais, em julho de 2024, a UEFA permitiu a presença de Girona e Manchester City na Champions e de Nice e Manchester United na Europa League sob o argumento de que: “foram feitas mudanças significativas na propriedade, governança e apoio financeiro aos clubes, restringindo a influência dos investidores e o poder de decisão para além de um clube”.

Ou seja, a UEFA apesar de ter um regulamento que veda a presença de clubes partes do mesmo MCO na mesma competição, na prática, através de uma “maquiagem” ou de um “breve procedimento plástico” adotado pelos clubes, escancara a porta colocando em xeque a credibilidade do jogo.

Retornando a nossa confederação continental, no atual estatuto da Conmebol consta apenas que: “as suas associações membros (CBF, AFA, UAF etc)  devem estabelecer nos seus estatutos que nenhuma pessoa controle mais de um clube.”

Evidentemente, isso é bastante insuficiente para regulamentar um tema tão polêmico. Inclusive, no próprio regulamento da Libertadores de 2025 sequer há previsão sob tal problemática. Ressalte-se inclusive que o próprio CFG possui 100% do controle acionário de um clube membro da 1ª divisão uruguaia. Ou seja, há um grande risco que o Bahia e o Montevideo City disputem a mesma competição no próximo ano.

Portanto, a CONMEBOL deve, com urgência, regulamentar a questão do MCO para garantir a integridade da competição. Não basta seguir o exemplo da UEFA, é necessário adotar medidas concretas que proporcionem aos torcedores a confiança de que não haverá manipulação nos resultados das competições, protegendo os princípios mais fundamentais do nosso esporte.

A FIFA também deve dar o exemplo e regulamentar tal problemática a nível global, inclusive respondendo se o MCO representa uma violação aos artigos 18bis e 18ter do RSTP.

Por fim, destaca-se que esse texto não é uma crítica ao MCO, muito pelo contrário. É muito bem vinda a ideia de um conceito mútuo de colaboração entre clubes, com projetos desportivos sendo bem desenvolvidos mundo à fora como faz o CFG, bem como os grandes investimentos financeiros que tais conglomerados trazem para o desenvolvimento do nosso futebol. No entanto, é crucial que se esteja atento e que se sancione eventuais distorções, como a participação de clubes do mesmo grupo na mesma competição ou a utilização do MCO para contornar sistemas de controle financeiro como o Financial Fair Play.

Nos siga nas redes sociais: @leiemcampo


Fernando Silvestre Filho é sócio da EDL Advocacia, graduado pela UFPE, pós-graduado em Direito Societário pelo Insper, e mestrando em Football Law pela “ITTI-Barcelona”, sendo especialista atuante nas áreas de Esporte & Entretenimento e empresarial, buscando sempre agregar valor com soluções inovadoras aos seus clientes.

[1]https://ge.globo.com/futebol/futebol-internacional/noticia/maior-campeao-boliviano-bolivar-passa-a-fazer-parte-de-grupo-dono-do-manchester-city.ghtml

[2] *Em relação ao Girona inclusive, o CFG se viu obrigado a reduzir sua participação societária para que o clube pudesse disputar a Liga dos Campeões da Uefa de 2024/25.

[3] No individual or legal entity may have control or influence over more than one club participating in a UEFA club competition, such control or influence being defined in this context as:

  1. holding a majority of the shareholders’ voting rights;
  2. having the right to appoint or remove a majority of the members of the administrative, management or supervisory body of the club;

iii. being a shareholder and alone controlling a majority of the shareholders’ voting rights pursuant to an agreement entered into with other shareholders of the club; or

  1. being able to exercise by any means a decisive influence in the decision-making of the club.

[4] 5.02 If two or more clubs fail to meet the criteria aimed at ensuring the integrity of the competition, only one of them may be admitted to a UEFA club competition, in accordance with the following criteria (applicable in descending order):

  1. the club which qualifies on sporting merit for the most prestigious UEFA club competition (i.e., in descending order: UEFA Champions League, UEFA Europa League or UEFA Europa Conference League);
  2. the club which was ranked highest in the domestic championship giving access to the relevant UEFA club competition;
  3. the club whose association is ranked highest in the access list (see Annex A).

[5]https://ge.globo.com/futebol/liga-dos-campeoes/noticia/uefa-confirma-presenca-de-rb-leipzig-e-rb-salzburg-na-champions-201718.ghtml

Compartilhe

Você pode gostar

Assine nossa newsletter

Toda sexta você receberá no seu e-mail os destaques da semana e as novidades do mundo do direito esportivo.