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Crise na CBF exige um “poder moderador”. STJD pode assumir essa responsabilidade histórica

A CBF passa por uma crise histórica. Uma disputa política, com ingredientes éticos e jurídicos que provocaram um racha poucas vezes visto na história do movimento esportivo brasileiro.

Nessa hora em que dois lados se posicionam de maneira firme, defendendo interesses e direitos contrários, e que o diálogo interno me parece impossível, é fundamental encontrar um mediador, alguém que tenha a imparcialidade e o conhecimento jurídico para devolver uma segurança institucional à entidade. Eu acredito que a Justiça Desportiva tem a oportunidade de exercer esse papel.

Não quero entrar aqui no mérito da disputa (quem tem ou não razão), mas quero refletir sobre o procedimento do caso e o papel da Justiça Desportiva nesse momento delicado do futebol brasileiro.

Rogério Caboclo está afastado pela Comissão de Ética da CBF desde 6 de junho, dois dias depois da acusação formal de uma empregada da entidade contra ele de assédio moral e sexual.

Ele nega as acusações e tem preparado um vasto material com uma equipe grande e capacitada de assessores.

Depois de uma decisão da diretoria por um novo afastamento por mais 60 dias, a Comissão de Ética se manifestou e prorrogou por mais 60 dias o afastamento.

A diretoria revogou a decisão anterior. Até porque ela foi alvo de ponderações necessárias.

Em um paralelo, poderia uma comissão de ministros afastar o presidente da República?

Pela nossa carta constitucional, essa decisão cabe ao Congresso Nacional. Pelo Estatuto da CBF, de maneira parecida, essa decisão caberia a Assembleia Geral, reunião de todos presidentes de federações nacionais.

Está no artigo 38 do Estatuto:

Art. 38. Compete, ainda, exclusivamente à Assembleia Geral Administrativa, sempre em escrutínio secreto, destituir o Presidente e Vice-Presidentes da CBF, havendo comprovada justa causa e observado o devido processo legal.

Pois, bem. A crise está aí.

Os dois lados têm argumentos juridicamente inteligentes.

Um deles defendendo o afastamento preventivo para melhor apuração dos fatos; outro, que entende que houve o descumprimento de normas internas e, inclusive, constitucionais no afastamento determinado.

Diante dessa confusão e disputa, a CBF sangra, com uma divisão interna histórica que provoca uma crise institucional que precisa de uma solução urgente.

Claro que a briga é eminentemente política, mas valores éticos e a legalidade não podem ser jamais esquecidos nesse processo.

E como proteger a instituição dessa disputa política?

Me parece claro que um “juiz” independente precisaria atuar.

E qual a instância maior da Justiça Desportiva brasileira, o “STF do esporte”?

O Superior Tribunal de Justiça Desportivo é a instituição mais importante do movimento jurídico brasileiro, a referência maior da Lex Sportiva em nosso território. E seria crucial ele assumir a responsabilidade histórica de tentar trazer luz e paz em um momento tão conturbado para o futebol, em que uma solução jurídica e institucional se faz urgente.

A questão que se coloca, antes de se entender mérito (o afastamento de Caboclo é legal ou não?) é de competência. Ou seja, o STJD pode analisar essa questão?

Entendo que sim.

E explico.

A Constituição Federal em seu artigo 217 reforça a autonomia das entidades esportivas e também determina a competência da Justiça Desportiva. Nesse artigo, a competência fica determinada para questões relativas à disciplina e competições esportivas

Na minha opinião, essa seria uma interpretação mais restritiva de competência, limitando um papel importantíssimo desse Tribunal na proteção do movimento esportivo. Por isso, acredito que não seria a interpretação apropriada devido ao momento que vive o futebol brasileiro. A própria legislação mostra que o papel da Justiça Desportiva é muito maior, devendo zelar pela Ordem Desportiva.

Vamos avançar.

A Justiça Desportiva é regulada por uma lei federal específica, a Lei 9615/98, conhecida como Lei Pelé, a Lei Geral do Esporte brasileiro.

Segundo a Lei Pelé, a competência da Justiça Desportiva está em processar e julgar processos referentes às infrações disciplinares e competições desportivas definidas no CBJD e regulamentos das entidades de administração do desporto, de acordo com o art 50.

E a mesma Lei traz os princípios norteadores desse Tribunal privado. Entre eles, o da legalidade e da moralidade.

Um pouco antes, a Lei Pelé traz o art 48:

Art. 48. Com o objetivo de manter a ordem desportiva, o respeito aos atos emanados de seus poderes internos, poderão ser aplicadas, pelas entidades de administração do desporto e de prática desportiva, as seguintes sanções:

IV – suspensão;

V – desfiliação ou desvinculação.

§ 1º. A aplicação das sanções previstas neste artigo não prescinde do processo administrativo no qual sejam assegurados o contraditório e a ampla defesa.

§ 2º. As penalidades de que tratam os incisos IV e V deste artigo somente poderão ser aplicadas após decisão definitiva da Justiça Desportiva

Ou seja, a Lei Pelé dá a Justiça Desportiva uma competência maior. Segundo a Lei, um afastamento só poderia ser decidido após decisão do Tribunal esportivo.

Avançando.

A Justiça Desportiva tem como guia o Código Brasileiro de Justiça Desportiva, o CBJD. A função primordial das disposições do CBJD é regular o funcionamento da Justiça Desportiva e o processo disciplinar.

Diz o art 111 do CBJD.

Art. 111. A imposição das sanções de suspensão, desfiliação ou desvinculação, pelas entidades desportivas, com o objetivo de manter a ordem desportiva, somente serão aplicadas após decisão definitiva da Justiça Desportiva.

O fato é: o STJD é a instância maior do movimento jurídico do esporte brasileiro e tem, entre tantas responsabilidades, aquela que me parece o cerne de todas elas juntas: manter a higidez, a paz, a segurança da Ordem Desportiva.

Não se manifestando, existe o risco iminente de o caso tomar o caminho mais perigoso para o movimento esportivo, o da judicialização. Ou seja, a questão ir para a Justiça Comum. Esse é um caminho que pode implicar em risco grande de punição para o futebol brasileiro, inclusive com intervenção da FIFA.

Claro que uma decisão do Tribunal esportivo não impede a busca do judiciário pela parte que se sentir lesada, direito consagrado pela CF, art 5º XXXV. Acontece que há julgados afirmando que, com a justiça esportiva analisando e decidindo o mérito, o judiciário só deve analisar questões processuais. Ou seja, questões internas e específicas estariam protegidas pelo movimento esportivo e a análise ficaria limitada ao campo da legalidade do processo.

Entregar questões internas do esporte ao Estado não me parece solução recomendável. E lembro as palavras de um dos maiores nomes do direito desportivo brasileiro, Prof Álvaro Melo Filho:

“não será possível definir direito e aplicar justiça em função de

matéria desportiva fora do mundo do desporto, sem o espírito da

verdade desportiva, sem o sentimento da razão desportiva. Aquele que

decidir questão originária do desporto imbuído do pensamento

formalizado nas leis gerais terá distraído a consciência da justiça”

Ou seja, as peculiaridades do esporte e a sua necessária autonomia fazem atrair a competência da Justiça Desportiva para dirimir conflitos na área. Para proteger a própria autonomia e seu movimento jurídico interno, repleto de especificidades e princípios.

Claro que existe interpretação, até à luz da CF, que entende que a Justiça Desportiva não entraria nesse momento do debate sobre a CBF. Mas diante dos fatos, do risco de judicialização e da urgência em dar uma resposta para proteger a Ordem Desportiva e restabelecer a segurança institucional do futebol, acredito que ela precisa assumir esse papel.

Caminho jurídico para isso existe.

Seria oportuno. Necessário. Histórico.

Crédito imagem: O Globo

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