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Data FIFA, COVID-19 e a confusão normativa

Por João Paulo Di Carlo Conde Perez

Na última semana, um dos temas mais comentados dos noticiários esportivos foi a não liberação dos jogadores que atuavam na Inglaterra às suas respectivas seleções, que faziam parte da lista vermelha de países emitida pelas autoridades britânicas, pois teriam que passar por uma quarentena de dez dias ao retornarem ao território inglês. Sendo assim, se fossem cedidos, acabariam desfalcando os times ingleses em alguns compromissos no início da temporada europeia.

Nessa lista, estavam incluídos jogadores de quase todos os países sul-americanos, além de países como México, Egito e Turquia[1]. Afetaria, portanto, o desempenho desportivo de várias seleções, principalmente a brasileira, que deixaria de contar com nove jogadores convocados.

Além disso, a polêmica teve como clímax os fatos ocorridos durante a partida entre Brasil e Argentina pelas Eliminatórias, em que as autoridades sanitárias brasileiras interromperam o jogo para retirar os jogadores argentinos que haviam mentido ou omitido informações ao entrarem no Brasil[2]. A seleção argentina, ao se deparar com os agentes sanitários e membros da Polícia Federal, resolveu abandonar o campo e o jogo foi suspenso pelo árbitro.

A Agência Nacional de Vigilância Sanitária (ANVISA) alegou que quatro jogadores tinham violado as restrições brasileiras, que impunham quarentena obrigatória de duas semanas aos passageiros que estiveram em solo inglês em até 14 dias antes da chegada ao Brasil, de acordo com a portaria 655, de junho de 2021[3].

Este artigo se concentrará, única e exclusivamente, em abordar os assuntos jurídicos relacionados aos acontecimentos e suas possíveis consequências aos personagens envolvidos, sem tecer qualquer juízo de valor sobre a atuação das autoridades públicas.

No ano passado, diante do crescimento exponencial do coronavírus, que impactou a vida e a rotina de toda a população mundial, a FIFA se viu obrigada a se adaptar às novas demandas da sociedade e, principalmente, das autoridades sanitárias, para que o esporte continuasse a ser praticado depois de uma longa pausa.

Para isso, após a emissão de várias circulares sobre o tema e debates com especialistas da área da saúde, a entidade máxima do futebol criou um protocolo definitivo para a volta do futebol em partidas internacionais, em setembro[4] e, no mês seguinte, editou o anexo 1 do Regulamento do Estatuto e Transferência de Jogadores da FIFA (RETJ)[5], para regular a questão da liberação dos jogadores para as suas respectivas seleções nacionais.

Primeiramente, deve-se destacar que não há nenhum conflito entre a normativa privada da FIFA e a normativa pública emitida pelas autoridades sanitárias de cada país. Em todos os seus pronunciamentos e em seus documentos, a entidade suíça reconhece a importância, soberania e competência de cada país para regular a matéria.

Nesse sentido, no documento sobre a volta do futebol em partidas internacionais, a FIFA preconiza que o protocolo da entidade deve ser feito em conformidade com as diretrizes de cada país e que, se essas forem mais restritivas ou exaustivas, deverão prevalecer sobre a normativa privada.

Igualmente, no anexo 1 do RETJ foram criadas várias exceções à obrigação de liberação dos jogadores para suas seleções durante as datas FIFA, justamente para coincidir com as normativas estatais, que, a princípio, seriam válidas até o final de 2020.

Entre elas: i) se houvesse um período obrigatório de quarentena de, ao menos, cinco dias no território que fosse celebrado a partida internacional ou no território onde se encontra o clube obrigado a liberar o jogador, ii) existência de restrições de viagem a um desses territórios, e iii) que as autoridades não tivessem concedido uma isenção especifica aos jogadores enquadrados nessas situações.

No ano de 2021, na edição de fevereiro[6], a FIFA repetiu as emendas temporárias, porém limitou o período de vigência dessas exceções até abril. Ocorre que, ao término da data estipulada, se criou uma verdadeira confusão normativa, pois o Regulamento está redigido de maneira incorreta, fornecendo bons argumentos para ambas as partes para a liberação ou retenção dos jogadores.

Isso porque, resumidamente, devido ao calendário prejudicado em virtude do coronavírus, as Confederações tiveram que acrescentar mais uma partida aos já tradicionais dois jogos, para poder terminar as Eliminatórias na data estabelecida, antes do Mundial do Catar.

O artigo 1º do anexo 1 do RETJ, fixa que o período internacional será de 9 dias, começando na segunda-feira pela manhã e terminando, salvo exceções, na noite da terça-feira seguinte, devendo o futebolista retornar ao clube, no máximo, na manhã de quarta-feira. Cada seleção poderia jogar o máximo de duas partidas (amistosos ou jogos oficiais).

Entretanto, a FIFA criou exceções para a UEFA, mais especificamente para os meses de março e setembro, aumentando em um dia o período internacional e aumentando o limite para 3 partidas disputadas. Do mesmo modo, para o período de junho, no caso de algumas confederações, como, por exemplo, a Concacaf e a Confederação Asiática de Futebol, ampliou para 4 o número de partidas e em 7 dias o período internacional.

Ademais, a FIFA prevê que os clubes e as federações podem estipular, com a anuência de ambos, um tempo superior ao presente no Regulamento ou que podem chegar a diferentes tipos de acordo sobre a convocação. Esse sistema de negociação é, atualmente, a grande aposta do presidente da entidade para solucionar o impasse entre clubes e federações nacionais.[7]

Ato contínuo, a FIFA impõe que o jogador deve se apresentar ao clube em até 48 horas depois do prazo de término do período da convocação, no caso de futebolistas que atuem por confederações distintas da que o clube empregador esteja inscrito, sob o risco de sanções. Ou seja, se aplica perfeitamente aos jogadores sul-americanos que atuam na Europa.

O que se extrai dessa normativa é que, sem dúvidas, os clubes são obrigados a liberar os jogadores às suas seleções para o período previsto pela entidade suíça. A dúvida, não esclarecida pela redação confusa e incompleta do RETJ, é se os jogadores podem jogar 3 partidas e estar por um período superior ao determinado pelo Regulamento, quando não está expressamente previsto e quando não houver acordo entre seleções e clubes.

Desse modo, após uma análise perfunctória, ao mesmo tempo que a literalidade dos artigos impõe que serão ao máximo dois jogos, há uma permissão intrínseca para que o prazo de liberação seja estendido e que o jogador possa se apresentar um pouco mais tarde, realizando o terceiro jogo, desde que esteja à disposição do seu clube em até 48 horas depois do prazo de término do período da convocação

Portanto, há bons argumentos tanto para a não execução da terceira partida pelo jogador, como também para a extensão, de maneira excepcional, do período concedido às seleções e aos jogadores em sua apresentação aos seus respectivos clubes. Contudo, resta claro que os clubes devem liberar o futebolista para jogar, ao menos, as duas partidas pela sua seleção nacional.

No caso ora analisado, as autoridades inglesas não proibiam as viagens aos países da lista vermelha, apenas impunham uma quarentena de dez dias no retorno dos jogadores. Portanto, os clubes não poderiam reter os jogadores sob o argumento das medidas restritivas na volta ao país, já que não há respaldo jurídico, nem no âmbito privado, nem no âmbito público, para a não liberação dos jogadores para sequer uma partida.

Nesse contexto, algumas seleções já pensam em demandas contra os clubes ingleses pela não liberação dos jogadores para a data FIFA[8][9][10] e a entidade máxima do futebol terá que se pronunciar sobre o tema, com possibilidade, ainda que reduzida, de sanções aplicáveis aos clubes que se recusaram a liberar seus atletas.

No domingo, em outro acontecimento ligado ao cenário de incertezas criado pela pandemia, houve o ponto auge, com a suspensão do clássico entre Brasil e Argentina. Conforme já exposto, não há de se falar sobre conflitos entre normativa pública ou privada, já que a própria FIFA reconhece a prevalência da pública para tratar sobre os temas sanitários. Por isso, a normativa brasileira, que previa quarentena aos viajantes que estiveram na Inglaterra nos últimos 14 dias, deve prevalecer.

A CONMEBOL e a Federação Argentina de Futebol já haviam sido notificadas pela Confederação Brasileira de Futebol (CBF) sobre as restrições impostas pelo governo brasileiro[11] e, ainda que não fossem informados, deveriam ter buscado saber, por meio do seu departamento jurídico, sobre a normativa brasileira de enfrentamento ao vírus.

Todavia, surpreendidos pela presença de agentes sanitários, a equipe argentina resolveu abandonar o campo e o árbitro foi obrigado a suspender a partida. Essa conduta poderia ser considerada abandono ao campo de jogo, passível de sanção pecuniária de, no mínimo, 10.000 francos suíços e imposição de resultado negativo de 3 a 0, em consonância com os artigos 14 e 22 do Código Disciplinar da FIFA, sem prejuízo de outras sanções mais graves.[12]

Por sua vez, em sua defesa, a seleção argentina pode alegar que houve força maior para que se suspendesse o confronto, evitando assim a imposição de uma possível sanção. Ocorre que, entretanto, esse argumento é totalmente descabido. Para discorrer sobre o tema, faz-se necessário entender o conceito de força maior.

Com efeito, o motivo de força maior existe quando um determinado evento gera consequências, efeitos imprevisíveis, inevitáveis ou impossíveis de impedir, capazes de impossibilitar o cumprimento da obrigação. Outrossim, o agente não pode ter contribuído em nenhuma conduta idônea, seja por ação ou omissão, que pudesse ter gerado o evento lesivo superveniente.

A título de ilustração, o Código Civil e Comercial Argentino[13] acompanha o entendimento do conceito majoritário de força maior, igualando aos de caso fortuito, em vários artigos. Entre eles, o art. 1.730, estabelece o conceito de força maior, destacando a obrigatoriedade da existência da imprevisibilidade e inevitabilidade, e o art. 1.733, que determina que não se excluirá a responsabilidade se o caso fortuito ou a impossibilidade do cumprimento da obrigação se der em virtude de culpa do agente, por ação ou omissão.

Em outras palavras, ao mentir ou omitir informações no formulário de chegada ao país e ao não obedecer às exigências sanitárias impostas pelas autoridades brasileiras[14], a seleção argentina provocou o evento ocorrido na tarde de domingo. Logo, não se pode alegar força maior para um fato em que a própria equipe teria contribuído para que ocorresse, seja por ação ou omissão, o que, diga-se de passagem, era totalmente evitável.

Por último, a tentativa de retirada dos jogadores argentinos não impossibilitaria a continuação do jogo, já que os jogadores poderiam ter sido substituídos durante a partida e submetidos ao cumprimento das normas sanitárias. Ou seja, não tornou impossível o cumprimento da obrigação, requisito fundamental para a configuração da força maior.

Por outro lado, nos últimos dias, se vislumbrou a possibilidade de aplicação de sanções ao conjunto brasileiro. Entretanto, o enquadramento dos acontecimentos no art. 16 do Código Disciplinar da FIFA, que versa sobre a responsabilidade da equipe local pela segurança e ordem da partida, é de difícil aplicação ao caso concreto, uma vez que, além de não ter sido negligente no dever de segurança, a CBF estava cumprindo ordens de agentes estatais e forças de segurança pública, de acordo com a legislação brasileira a qual está submetida.

Além disso, os argentinos podem argumentar que era responsabilidade da CBF, na função de federação anfitriã, garantir a operação e execução dos protocolos de saúde fixados pela FIFA e informar sobre qualquer questão que pudesse afetar negativamente a celebração da partida.

Por conseguinte, esse suposto inadimplemento da obrigação poderia gerar sanções à CBF, porém, como já demonstrado, a federação brasileira notificou todas as partes sobre as violações dos jogadores à normativa estatal e cumpriu com o protocolo estabelecido pela entidade máxima do futebol.

Até o momento, a FIFA ainda não se pronunciou sobre os dois temas (consequências para a seleção argentina/brasileira e para os clubes ingleses), que devem ter novos desdobramentos nos próximos dias. Contudo, é evidente que o Regulamento precisa ser alterado para que possa estar mais claro e preciso, de modo a evitar conflitos entre clubes e seleções e se adaptar ao cenário, ainda existente, de pandemia.

Por fim, é necessário que estipule algo já para as datas de seleções reservadas para outubro, sob risco de os fatos sucedidos nessa última semana voltem a ocorrer, dessa vez em maior escala.

Nos siga nas redes sociais: @leiemcampo


[1] Premier League não vai liberar atletas para as seleções (uol.com.br) – última consulta: 06.09.2021

[2] FAQs Brasil x Argentina: tudo que se sabe até agora sobre a suspensão do clássico pelas Eliminatórias | eliminatórias – américa do sul | ge (globo.com) – última consulta: 06.09.2021

[3] PORTARIA Nº 655, DE 23 DE JUNHO DE 2021 – PORTARIA Nº 655, DE 23 DE JUNHO DE 2021 – DOU – Imprensa Nacional (in.gov.br) – última consulta: 06.09.2021

[4] O regresso do futebol – protocolo de partidas internacionais FIFA –  xp88ex2drse65brjlyph-pdf.pdf (fifa.com) – última consulta: 06.09.2021

[5] Regulamento do Estatuto e Transferência de Jogadores da FIFA – Outubro de 2020 –  reglamento-sobre-el-estatuto-y-la-transferencia-de-jugadores-octubre-2020.pdf (sennferrero.com) – última consulta: 06.09.2021

[6] Regulamento do Estatuto e Transferência de Jogadores da FIFA – Fevereiro de 2021 –  v1jdhzu3kja3c6tdphke-pdf.pdf (fifa.com) – última consulta: 06.09.2021

[7] Após confusão em São Paulo, Infantino faz apelo por diálogo sobre calendário – 06/09/2021 – UOL Esporte – última consulta: 07.09.2021

[8] Yon de Luisa revela que la situación con el Wolverhampton ya está en manos de la FIFA | Marca: última consulta: 07.09.2021

[9] Eliminatorias Qatar 2022 | Selección chilena recurre a FIFA por liberación de Brereton y Sierralta (redgol.cl): última consulta: 07.09.2021

[10] CBF avalia pedir à Fifa para punir clubes ingleses por não liberar jogadores para a seleção | seleção brasileira | ge (globo.com): última consulta: 07.09.2021

[11] FAQs Brasil x Argentina: tudo que se sabe até agora sobre a suspensão do clássico pelas Eliminatórias | eliminatórias – américa do sul | ge (globo.com) – última consulta 06.09.2021

[12] Código Disciplinar FIFA – bxduspolstvl1fuwn8lb-pdf.pdf (fifa.com): última consulta 07.09.2021

[13] Código Civil e Comercial da Nação  – Argentina  – SAIJ – Código Civil y Comercial de la Nación – última consulta: 07.09.2021

[14] Documento da Anvisa mostra que membro da delegação argentina falsificou declarações sanitárias de jogadores | Blog do Octavio Guedes | G1 (globo.com) – última consulta: 07.09.2021

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