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(De)formação esportiva é “legal”?

“O homem não é nada além daquilo que a educação faz dele.” (Immanuel Kant)

A formação desportiva é um tema bastante negligenciado no universo desportivo brasileiro. Em que pese a considerável melhora nas últimas décadas, inclusive das estruturas físicas disponibilizadas para isto, seja por clubes ou entidades de administração do desporto do país, de futebol e também das demais modalidades esportivas, geralmente a formação não aborda os elementos cognitivos e afetivos sociais, mas apenas os elementos motores.

É um direito constitucional de todo cidadão brasileiro o desporto, segundo o artigo 217 da Carta Magna. E o esporte é um fenômeno biopsicossocial. Por isso, o processo de formação desportiva de jovens precisa ser pedagogicamente bem elaborado, sob pena de se tornar um processo de deformação desportiva e humana. Entretanto, é muito comum que os cargos de treinadores desportivos sejam ocupados por pessoas que não foram preparadas para educar. Conhecem a modalidade desportiva, por terem tido alguma experiência no esporte, muitas vezes tendo sido profissionais desta, mas não sabem distinguir a forma de tratar uma criança ou um adolescente atleta de um adulto atleta. Por vezes, não sabem diferenciar nem mesmo o conteúdo a ser trabalhado na iniciação desportiva, na formação e no alto rendimento.

Infelizmente, é possível observar em competições de base os equívocos começam com os próprios familiares. Projetando que os jovens sejam grandes esportistas para compensarem suas frustrações, ou mesmo para mudarem de condição social, pais e outros parentes se tornam a maior fonte de pressão. Com o mesmo comportamento que o adotado em grandes clássicos desportivos, em que xingamentos, insultos, ameaças e cobrança exceção “normais”, estes acabam sendo os pilares da desistência de alguns talentos.

A Constituição expressa o dever da família, da sociedade e do Estado proteger a criança e o adolescente:

Art. 227. É dever da família, da sociedade e do Estado assegurar à criança, ao adolescente e ao jovem, com absoluta prioridade, o direito à vida, à saúde, à alimentação, à educação, ao lazer, à profissionalização, à cultura, à dignidade, ao respeito, à liberdade e à convivência familiar e comunitária, além de colocá-los a salvo de toda forma de negligência, discriminação, exploração, violência, crueldade e opressão.

Com a simples leitura do dispositivo constitucional acima, é possível indicar que a falta de zelo com a criação e o adolescente, ainda que em ambiente desportivo, não é “legal” e é ilegal. O Estatuto da Criança e do Adolescente (Lei 8.069/90), contém um dispositivo semelhante, ampliando a proteção, e também faz a previsão de sanção penal para a violação dos direitos dos menores.

A Lei Pelé (Lei 9.615/98), que trata das normas gerais do Desporto, destaca em dois princípios do esporte no Brasil a importância deste como ferramenta de educação e a proteção da integridade dos desportistas em outro:

Art. 2 (…) VIII – da educação, voltado para o desenvolvimento integral do homem como ser autônomo e participante, e fomentado por meio da prioridade dos recursos públicos ao desporto educacional; (…)

X – da qualidade, assegurado pela valorização dos resultados desportivos, educativos e dos relacionados à cidadania e ao desenvolvimento físico e moral;

XI – da segurança, propiciado ao praticante de qualquer modalidade desportiva, quanto a sua integridade física, mental ou sensorial;

Este último também dá suporte à ilegalidade do ambiente esportivo hostil. Ainda que culturalmente muitas práticas sejam coibidas em outros ambientes e permitidas ou toleradas em ambiente esportivo, o esporte não está à margem da sociedade e, portanto, não pode ser “terra sem lei”.

Por fim, é importante citar que a Lei 9.615/98 conceitua as manifestações desportivas e apresenta as diferenças do desporto educacional e de formação:

– Art. 3 (…)

I – desporto educacional, praticado nos sistemas de ensino e em formas assistemáticas de educação, evitando-se a seletividade, a hipercompetitividade de seus praticantes, com a finalidade de alcançar o desenvolvimento integral do indivíduo e a sua formação para o exercício da cidadania e a prática do lazer; (…)

V – desporto de formação, caracterizado pelo fomento e aquisição inicial dos conhecimentos desportivos que garantam competência técnica na intervenção desportiva, com o objetivo de promover o aperfeiçoamento qualitativo e quantitativo da prática desportiva em termos recreativos, competitivos ou de alta competição;

As manifestações acima têm pontos em comum, mas a diferença mais sensível é que o desporto de formação é aquele que tem a finalidade de preparar o atleta jovem para o desporto que visa o resultado e exige o melhor desempenho. A sequência natural é o desporto rendimento:

Art. 3 (…)

III – desporto de rendimento, praticado segundo normas gerais desta Lei e regras de prática desportiva, nacionais e internacionais, com a finalidade de obter resultados e integrar pessoas e comunidades do País e estas com as de outras nações.

Resta claro, então, que precisamos refletir sobre o futuro do processo de formação desportiva. A busca do alto rendimento de jovens passa por um planejamento adequado que possa respeitar a idade cronológica, biológica e também psicológica da em cada fase da criança e do adolescente, sem jamais agredir a saúde física e mental do desportista.

Sigamos Platão, para que o ensino tenha elementos de formação e não deformação.

“Não eduques as crianças nas várias disciplinas recorrendo à força, mas como se fosse um jogo, para que também possas observar melhor qual a disposição natural de cada um.” (Platão)

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