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Direito de Arena e o princípio da vedação do retrocesso social

Por Domingos Sávio Zainaghi

Introdução

O presente trabalho tem por finalidade a análise das alterações introduzidas na Lei nº 9.615/98, no tocante ao Direito de Arena, demonstrando que a redução de 20% para 5% fere o princípio da vedação do retrocesso social, bem como que a natureza jurídica do instituto continua sendo remuneratória, mesmo com a lei afirmando o contrário.

Evolução legislativa

Arena é palavra latina que significa areia, sendo utilizada em razão de que na Antiguidade, no local onde os gladiadores se enfrentavam, entre si ou contra animais ferozes, o piso era coberto de areia, para facilitar a limpeza do sangue.

O Direito de Arena surge no ordenamento jurídico brasileiro em 1973, quando da edição da Lei nº 5988, de 14 de dezembro, que no artigo 100 afirmava:

Art. 100. A entidade a que esteja vinculado o atleta, pertence o direito de autorizar, ou proibir, a fixação, transmissão ou retransmissão, por quaisquer meios ou processos de espetáculo desportivo público, com entrada paga.
Parágrafo único. Salvo convenção em contrário, vinte por cento do preço da autorização serão distribuídos, em partes iguais, aos atletas participantes do espetáculo.

À época da promulgação da lei acima, o instituto do Direito de Arena foi considerado a maior ousadia do legislador, pois, ao enquadrar tal instituto na lei dos Direitos Autorais, equiparou a atividade de atleta profissional à dos artistas, estando o artigo 100 enquadrado no Título V, “Dos Direitos Conexos”.

Muitas críticas surgiram naquela época, pois a doutrina de então entendia que os atletas não poderiam ser enquadrados como artistas, até porque o art. 9º da Convenção de Roma¹ admite a extensão da proteção ali prevista a artistas que não interpretam ou executam obras literárias ou artísticas, mas tem em vista os artistas de variedades e os de circo. Vejamos:

Artigo 9º Qualquer Estado contratante, pela sua legislação nacional, pode tornar extensiva a proteção prevista na presente Convenção aos artistas que não executem obras literárias ou artísticas.

Em 1992, o Direito de Arena foi incluído na Lei nº 8.672:

Art. 24. Às entidades de prática desportiva pertence o direito de autorizar a fixação, transmissão ou retransmissão de imagem de espetáculo desportivo de que participem.
§ 1º Salvo convenção em contrário, vinte por cento do preço da autorização serão distribuídos, em partes iguais, aos atletas participantes do espetáculo.
§ 2º O disposto neste artigo não se aplica a flagrantes do espetáculo desportivo para fins exclusivamente jornalísticos ou educativos, cuja duração, no conjunto, não exceda de três minutos.

Já a Lei nº 9.615, de 1998, também tratou do Direito de Arena, estando assim redigido o art. 42 em sua primitiva publicação:

Art. 42. Às entidades de prática desportiva pertence o direito de negociar, autorizar e proibir a fixação, a transmissão ou retransmissão de imagem de espetáculo ou eventos desportivos de que participem.
§ 1o Salvo convenção em contrário, vinte por cento do preço total da autorização, como mínimo, será distribuído, em partes iguais, aos atletas profissionais participantes do espetáculo ou evento.
§ 2o O disposto neste artigo não se aplica a flagrantes de espetáculo ou evento desportivo para fins, exclusivamente, jornalísticos ou educativos, cuja duração, no conjunto, não exceda de três por cento do total do tempo previsto para o espetáculo.

A Lei nº 12.395/11, que alterou a Lei nº 9.615/98, modificou drasticamente o Direito de Arena, modificando-lhe (se é que seria possível) a natureza jurídica e reduzindo drasticamente seu valor. Vejamos:

Art. 42. Pertence às entidades de prática desportiva o direito de arena, consistente na prerrogativa exclusiva de negociar, autorizar ou proibir a captação, a fixação, a emissão, a transmissão, a retransmissão ou a reprodução de imagens, por qualquer meio ou processo, de espetáculo desportivo de que participem.
§ 1º Salvo convenção coletiva de trabalho em contrário, 5% (cinco por cento) da receita proveniente da exploração de direitos desportivos audiovisuais serão repassados aos sindicatos de atletas profissionais, e estes distribuirão, em partes iguais, aos atletas profissionais participantes do espetáculo, como parcela de natureza civil.

Como já estudado, o Direito de Arena é tradicional no meio desportivo desde os anos 1970, e sempre os atletas tiveram participação nos valores arrecadados pelos clubes.

A partir do final dos anos 1990, atribuiu-se ao Direito de Arena natureza jurídica remuneratória, ou seja, um direito genuinamente trabalhista, na parte cabível aos atletas. Foi uma construção doutrinária, com acolhimento judicial que levou quase duas décadas.

Os 20% destinados aos atletas surgiram desde 1973, ou seja, durante 30 anos não se discutiu esse percentual, a não ser quando um acordo judicial foi firmado entre sindicatos e clubes em um processo civil, que majoritariamente doutrina e jurisprudência acoimaram de apócrifo.

A alteração legal de 2011 tenta deitar por terra duas conquistas sociais, uma de quase quatro décadas e outra quase vintenária. Resta saber se tais alterações têm validade.

Não se tivesse chegado à conclusão de que a parte cabível aos atletas tinha natureza jurídica remuneratória, o percentual poderia ser alterado sem qualquer problema ou preocupação dos jus-laboralistas e constitucionalistas, por se tratar, se assim o fosse, um instituto de Direito Civil. Mas não é esse o caso. A partir do momento em que estamos tratando de um instituto de Direito do Trabalho, qual seja, remuneração, obrigatoriamente temos de estudar dita alteração sob as óticas do Direito Constitucional e do Direito do Trabalho.

Nosso entendimento é de que ocorreu flagrante ofensa ao princípio da proibição do retrocesso social. Mas o que vem a ser a teoria do não retrocesso de cláusulas sociais? A resposta é dada pelo mestre Canotilho²:

“[…] o núcleo essencial dos direitos sociais já realizado e efetivado através de medidas legislativas (…) deve considerar-se constitucionalmente garantido, sendo inconstitucionais quaisquer medidas estaduais que, sem a criação de outros esquemas alternativos ou compensatórios, se traduzam, na prática, numa ‘anulação’, ‘revogação’ ou ‘aniquilação’ pura a simples desse núcleo essencial.”

No Brasil, interessante citar a opinião de Ingo W. Sarlet³, que assim afirma:

“[…] ainda no que concerne à eficácia dos direitos a prestações de cunho programático, não se pode deixar de considerar a problemática dos direitos que já foram objeto de concretização pelo legislador. Neste sentido, impõe-se a indagação sobre se um dos efeitos inerentes às normas constitucionais que consagram direitos fundamentais desta natureza não seria também o de gerarem o que habitualmente se denominou de uma proibição de retrocesso, isto é, de impedir o legislador de abolir determinadas posições jurídicas por ele próprio criadas.”

Os direitos sociais na Constituição da República estão elencados entre os Direitos Fundamentais, que não podem ser abolidos por se tratar de cláusula pétrea, como a própria Lei Maior determina:

Art. 60. A Constituição poderá ser emendada mediante proposta:
4º Não será objeto de deliberação a proposta de emenda tendente a abolir:
[…]
IV – os direitos e garantias individuais.

Pois bem. Se nem a Constituição pode ser emendada para abolir direitos sociais, a lei infraconstitucional não poderá fazê-lo, nem, ainda, reduzi-los, como parecer ter sido o caso do Direito de Arena.

O art. 7º da Constituição da República deixa claro que ela traz um rol exemplificativo de direitos, pois, no final do caput, afirma que ao trabalhador são garantidos tais direitos “além de outros que visem à melhoria de sua condição social”.

E o inciso VI do artigo 7º determina:

VI – irredutibilidade do salário, salvo o disposto em convenção ou acordo coletivo.

Logo, nem lei poderá reduzir verbas salarias dos empregados, somente normas coletivas, e mesmo assim por certo período e em certas situações.

Por fim, Humberto Theodoro Júnior⁴ ensina:

“A lei não tem força, no tratar categorias jurídicas, de contrariar a natureza das cosias. A palavra final não é do legislador, mas da ciência jurídica.”

Assim é o entendimento pretoriano:

REDUÇÃO DO PERCENTUAL DE ADICIONAL DE PRODUTIVIDADE. DECRÉSCIMO REMUNERATÓRIO. IRREDUTIBILIDADE SALARIAL. OFENSA. Em face do princípio da irredutibilidade salarial, consagrado no artigo 7º, VI, da Constituição Federal de 1988, não é possível admitir a redução do percentual do adicional de produtividade que importou em decréscimo remuneratório. Dessa forma, revelam-se devidas as diferenças deferidas. (TRT5.RO 00007155820135050281. BA 0000715-58.2013.5.05.0281. Rel. Jefferson Muricy. 5ª. TURMA. DJ 11/11/2014).
TST – RECURSO DE REVISTA RR 1013002520095050034 101300-25.2009.5.05.0034 (TST) Data de publicação: 24/08/2012 Ementa: RECURSO DE REVISTA. PROFESSOR. REDUÇÃO DO NÚMERO DE AULAS. ALTERAÇÃO CONTRATUAL LESIVA. PRINCÍPIO DA IRREDUTIBILIDADE SALARIAL. DIFERENÇAS SALARIAIS DEVIDAS. 1. Esta Corte Superior posiciona-se no sentido de que, estabelecida a carga horária semanal ou mensal, o professor adquire o direito à sua fiel observância pelo empregador, salvo diminuição no número de alunos matriculados na instituição de ensino, reduzindo a receita, o que pode importar na alteração de turmas, com reflexos sobre a carga horária semanal ou mensal. 2. A possibilidade de se reduzir a carga horária do professor universitário, todavia sem o efetivo registro da diminuição do número de alunos, não deve ser invocada de modo isolado como motivo para validar a alteração da jornada; na forma, aliás, expressamente proclamada nos precedentes que originaram a Orientação Jurisprudencial nº 244 da SBDI-1. A causa da alteração – diminuição do número de alunos – há de ser demonstrada, não bastando a redução do número de aulas. 3. Logo, a redução do número de horas-aula implica alteração contratual lesiva, ante o disposto no art. 468 da Consolidação das Leis do Trabalho. 4. Consignada, no caso concreto, apenas a redução do número de aulas, porém sem o registro do pressuposto da diminuição do número de alunos matriculados na instituição de ensino, consideram-se devidas as diferenças salariais correspondentes. 5. Violação, que se reconhece, do art. 468 da CLT. Recurso de revista conhecido e provido.

Vemos que a irredutibilidade salarial é instituto sagrado para o Direito do Trabalho, pois é do salário que o trabalhador tira seu sustento e o de seus familiares.

No caso do Direito de Arena, a natureza é salarial lato sensu, não podendo ser, portanto, reduzido seu valor.

Como afirmamos, trata-se de ganho social do atleta que levou anos para se consolidar como direito trabalhista, sendo, em nosso sentir, um retrocesso social sua redução para 5%, quando há quase 30 anos tínhamos esse patamar mínimo de 20%.

Canotilho, agora citado por Vanessa Roberta do Rocio Souza⁵, entende que a constitucionalização de determinados direitos representaria uma espécie de garantia, de modo que qualquer medida legislativa posterior que buscasse restringir, anular ou revogar direitos já realizados sem contemplação de medidas alternativas compensatórias seria inconstitucional. A vedação do retrocesso representaria, assim, um limite à atuação do legislador, que precisaria se ater ao núcleo essencial dos direitos já realizados.

Entre nós, vale destacar o entendimento de Ana Paula de Barcellos⁶, que assim conceitua o princípio em questão:

“[…] invalidação da revogação de normas que, regulamentando o princípio, concedam ou ampliem direitos fundamentais, sem que a revogação em questão seja acompanhada de uma política substantiva equivalente”.

E Raphaella Benetti da Cunha⁷ arremata desta maneira o princípio da vedação do retrocesso social:

“cláusula geral de proteção dos direitos fundamentais, que se dirige ao legislador, cujo escopo é evitar a redução de conquistas sociais”.

Insistimos, reduzir “do nada”, sem qualquer fundamento, e, pior, sem contrapartida um direito fundamental, no caso o Direito de Arena, é flagrante retrocesso de conquistas sociais; é reduzir um Direito Fundamental, qual seja, um direito trabalhista (salário) intrinsicamente ligado à dignidade do trabalhador.

É ensinamento de Flávia Piovesan que os direitos constitucionais fundamentais são irredutíveis, providos de rigidez, tornando inconstitucional qualquer ato que tenda a restringi-los ou aboli-los.

Portanto, por se tratar inegavelmente de um direito social, ou seja, Direito Fundamental, a alteração da Lei nº 9.615/98 é flagrantemente inconstitucional, pois fere o princípio da vedação do retrocesso social, sendo que, até que a norma seja declarada inconstitucional, os atletas poderão cobrar a diferença de 15% em dissídios individuais.

E Vanessa Roberta do Rocio Souza⁸ arremata:

“Assim, uma vez prevista no rol de direitos constitucionais do trabalhador uma série de garantias mínimas, tais garantias merecem especial tutela, não podendo ser simplesmente abolidas ou desconsideradas sem qualquer ação complementar ou substitutiva que garanta a preservação do núcleo essencial dos direitos”.

Na mesma linha está Luís Roberto Barroso⁹, que afirma que “uma lei posterior não pode extinguir um direito ou uma garantia, especialmente os de cunho social, sob pena de promover um retrocesso, abolindo um direito fundado na Constituição”.

E mais, por ser salarial, o valor deve ser pago mensalmente aos atletas sem o desvio até o sindicato profissional, sendo, ao nosso ver, um absurdo o pagamento mensal do atleta passar primeiro pelo sindicato, e o trabalhador ter de se dirigir até este para receber. Agiria melhor o legislador se obrigasse que os clubes informassem aos sindicatos quanto recebem das emissoras de televisão, mas apenas como fiscalização, como ocorre hoje em dia com as verbas devidas ao INSS pelas empresas, que têm de enviar mensalmente a GPS comprobatória do recolhimento ao sindicato profissional.

Quanto ao legislador ter alterado sua natureza jurídica para civil, também entendemos ser impossível, pois a natureza jurídica de um instituto quem a dá é o Direito, e não a lei, pelo menos quando tratamos de Direito do Trabalho. Neste existe o princípio da primazia da realidade, em que fatos reais são mais importantes que a forma.

Américo Plá Rodriguez¹⁰ assim ensina sobre esse princípio:

“Entendemos que o princípio da primazia da realidade é algo mais que uma presunção; constitui um critério básico que ordena que se prefiram os fatos a papéis, às formalidades aos formalismos.”

Ainda que tal princípio seja mais usado quando se trata de documentos entre as partes, nosso entendimento é de que ele pode ser usado também quando é da lei a alteração de um fato de cunho trabalhista, e ela quer lhe dar caráter civil.

Se um atleta recebe valores de Direito de Arena a título de contraprestação do serviço prestado, a realidade irá deitar por terra os dizeres da lei que o tratam como de Direito Civil.

Um bom exemplo é o caso do art. 442, parágrafo único, da CLT, que afirma não existir vínculo de emprego entre os membros de uma cooperativa e esta, nem entre eles e os tomadores de serviços desta.

Os tribunais trabalhistas julgaram, quase na totalidade dos casos em que se via que uma cooperativa contratava trabalhadores como cooperados para serem “empregados”, pelo reconhecimento da existência de relação de emprego, sem contar a atuação do Ministério do Trabalho e do Ministério Público do Trabalho, que aplicaram inúmeras sanções a empresas e cooperativas que se valeram do permissivo celetista para fraudarem trabalhadores.

Conclusão

A alteração da lei quanto à redução quer nos parecer apócrifa, pois, como explanado, fere o princípio da vedação do retrocesso social.

Logo, ainda que se entenda válida a redução de 20% para 5% do Direito de Arena destinado aos atletas, entendemos que sua natureza é salarial, pois se trata de uma contraprestação pelo serviço prestado, ou seja, remuneratória (salarial lato sensu).
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¹ Roma, 1961.
² J. J. Gomes Canotilho, Direito Constitucional e Teoria da Constituição. 5. ed. Coimbra: Almedina, 2002, p. 338.
³ A Eficácia dos Direitos Fundamentais. 2. ed. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 1998, p. 275.
⁴ Comentários ao novo Código Civil. Rio de janeiro: Forense, 2003. V. III, t. 2, p. 158.
⁵ Flexibilização dos direitos trabalhistas & o princípio da proibição do retrocesso social. Curitiba: Juruá, 2011, p. 218.
⁶ A eficácia jurídica dos princípios constitucionais: o princípio da dignidade da pessoa humana. Rio de Janeiro: Renovar, 2002, p. 69.
⁷ Da proibição de retrocesso como forma de concretização dos direitos fundamentais. In Gunther, Luis Eduardo. (Coord.) Tutela dos Direitos da personalidade na atividade empresarial. Curitiba: Juruá, 2008, p. 321.
⁸ Ob. Cit., p. 224.
⁹ O Direito Constitucional e a efetividade de suas normas. 5. ed. Rio de Janeiro: Renovar, 2000, p. 158.
¹⁰ Princípios de Direito do Trabalho. 3. ed. São Paulo: LTr, 2000, p. 357.
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Domingos Sávio Zainaghi é doutor e mestre em Direito do Trabalho pela PUC SP; pós-doutor em Direito do Trabalho pela Universidad de Castilla, em La Mancha, na Espanha; pós-graduado em Comunicação Jornalística pela Faculdade Casper Líbero. Presidente honorário da Asociación Iberoamericana de Derecho Del Trabajo y de La Seguridad Social e do Instituto Iberoamericano de Derecho Deportivo; membro da Academia Nacional de Direito Desportivo, da Academia Paulista de Direito, do Instituto Cesarino Jr. de Direito Social, cronista esportivo, professor Honoris Causa em Humanidades da Universidad Paulo Freire, na Nicarágua, e advogado.

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