1. No dia 18 de janeiro de 2018, foi conhecido um acórdão do Tribunal Europeu dos Direitos do Homem (TEDH) que decidiu que o interesse público subjacente ao combate antidopagem justifica restrições à reserva da vida privada dos praticantes desportivos, nomeadamente obrigando-os a fornecer informações detalhadas e datadas sobre a sua localização.
2. Por sua vez, em outubro de 2018, no âmbito do famoso caso Pechstein/Mutu, o TEDH também se pronunciou em torno da necessidade de os processos no seio do Tribunal Arbitral do Desporto, de Lausanne, se conformarem com o artigo 6º da Convenção Europeia dos Direitos do Homem (CEDH) – tema que daria para um artigo autônomo.
3. Mas essa linha jurisprudencial se insere num percurso de décadas. Com efeito, desde 1991, mas sobretudo a partir de 2000, que alguns agentes desportivos têm recorrido àquele tribunal invocando violação de direitos fundamentais consagrados na CEDH, como os direitos à vida, à liberdade; a um processo equitativo, ao pensamento e consciência religiosa, à liberdade de expressão; e à liberdade de reunião e associação.
4. Nesse percurso, algo me parece indiscutível: por uma razão ou por outra, os atletas acabam por ser o “elo mais fraco”, sendo sobre essa realidade que gostaria de convocá-lo, aqui, caro leitor, a uma breve reflexão consigo.
5. De acordo com a Carta Olímpica, um dos princípios fundamentais do Olimpismo assenta-se em considerar a “prática do desporto” como um “direito do homem”. Numa lógica semelhante, a Carta Internacional da Educação Física e do Desporto da Unesco enquadra a “prática da educação física e do desporto” como um direito fundamental para todos.
6. Atento o referido enquadramento e tendo presente demais normas desses instrumentos jurídicos e de outras fontes de Direito Internacional do Desporto, poderíamos afirmar que a tutela dos atletas está plenamente assegurada. Não obstante, a prática, muitas vezes bastante mediatizada, demonstra ainda um fosso grande entre a letra das normas e a realidade prática – seja porque a fiscalização e/ou o enforcement das normas não é ainda o melhor, seja porque muitas vezes o atleta surge como o “elo mais fraco”.
Senão, vejamos algumas situações práticas.
7. Em nome da maximização de resultados, e sobretudo em países que ainda procuram no desporto uma ferramenta de afirmação geopolítica, alguns atletas são pressionados com uma sobrecarga intensiva de treino, muitas vezes precoce (“treino excessivo de crianças”), com lesões e danos irreversíveis para a sua saúde e integridade física, do curto ao longo prazo.
8. Em abono do combate ao flagelo da dopagem, e inerente auxílio na proteção de bens jurídicos como a saúde pública e a ética desportiva, os atletas acabam, como o TEDH reforçou, por (ter de) aceitar a limitação da sua intimidade, da sua privacidade. A obrigação de informar a localização ou a realização de controles fora da competição na casa do atleta durante a madrugada são exemplos paradigmáticos de violação da reserva da vida privada dos atletas.
9. Por outro lado, com vista a proteger a credibilidade e o valor desportivo e comercial dos eventos desportivos de que participam, os atletas cedem em direitos previamente contratualizados. Por exemplo:
(i) Se o patrocinador oficial é X, deve ficar suspenso o contrato de patrocínio que o atleta havia assinado com o patrocinador Y, concorrente;
(ii) A nacionalidade legal do atleta cede à nacionalidade desportiva quando se estabelece um período de tempo mínimo que deve mediar entre a aquisição de uma segunda ou terceira nacionalidade e a elegibilidade desse atleta para competir sob novas cores;
(iii) Aos atletas impõem-se restrições à sua liberdade de expressão e de pensamento, ao seu direito de imagem, e mesmo à sua liberdade religiosa, não podendo exteriorizar pensamentos, convicções, críticas e juízos de valor, designadamente em declarações aos media e na intervenção nas redes sociais (blogues, tweeter, publicação de fotos pessoais, etc.), coartando-se, assim, aos atletas, o acesso a meios de expressão, desde a palavra oral ou escrita, à imagem ou ao gesto, não só em lugares públicos como também em privados.
10. Noutro contexto bem diferente, uma vez que os calendários desportivos exigem uma justiça célere, os atletas, para além de um ônus da prova muitas vezes difícil, deparam-se com procedimentos em que prescindem de diversas garantias de defesa/contraditório.
11. Como se não bastassem os exemplos acima identificados, diversos atletas, pela sua condição – mulheres, negros, cidadãos com deficiência, homossexuais e lésbicas –, convivem ainda com sérias discriminações, internas e externas, em razão do sexo, do gênero, da raça, da deficiência e da orientação sexual. Em pleno século XXI…
12. Evidentemente que os atletas não têm razão em tudo e que a especificidade do desporto também pode ser um reverso da medalha para os seus direitos. De igual modo, há obrigações inerentes à sua atividade, mais ou menos profissionalizada. Mas há que meditar no equilíbrio de interesses e na colisão de direitos fundamentais, procurando uma solução juridicamente adequada.
13. Aqui chegados, advogo que devem ser criadas e fomentadas instituições e/ou movimentos de defesa dos direitos fundamentais dos atletas, mas numa lógica diferente da habitual: não uma dicotomia entre “os atletas e os outros” – cenário que gera conflitos, em particular com os organizadores de eventos desportivos –, mas sim uma visão e representatividade integrada e holística: convém entender, de uma vez por todas, que a proteção dos direitos do homem só é efetiva se fugir a dinâmicas de fação e de maniqueísmos. E os discursos e as ações não podem confinar-se aos agentes desportivos: as iniciativas a criar devem ter, assumidamente, uma forte vocação pedagógica junto da sociedade civil.
14. Nesse sentido são de louvar iniciativas, certamente do conhecimento da maioria de quem me lê, mas que importa evocar e refletir sobre o seu conteúdo: a Declaração Universal dos Direitos dos Atletas (2017) e a Declaração dos Direitos e Obrigações dos Atletas (2018).
15. Há, pois, vários reptos a seguir.