Jabuti é a denominação vulgarmente dada no Brasil para um tipo de réptil nativo da América do Sul. Ele faz parte da família dos quelônios, cuja principal característica é a presença de um casco envolvendo o corpo.
“Jabuti” é igualmente uma expressão vulgar conferida à artimanha de inserir num projeto de lei ou em uma medida provisória, norma que é totalmente alheia ao tema central da proposta a ser analisada pelo Poder legislativo.
Vira e mexe aparece um jabuti no Congresso. O último que se tem notícia brotou no Projeto de Lei nº 2125/2020. Dedicado a socorrer os clubes PROVISORIAMENTE com alguns benefícios até o fim do estado de calamidade pública decretado em decorrência do coronavírus, o PL traz no seu bojo um jabuti do tamanho de um elefante.
Trata-se de um artigo que pretende reduzir pela metade, DEFINITIVAMENTE, o valor mínimo a que faz jus o atleta de futebol a título de indenização, caso o clube decida rescindir o seu contrato de trabalho sem justa causa. Além dessa redução significativa, o projeto permite o pagamento parcelado dessa quantia.
Hoje a denominada cláusula compensatória desportiva dá ao jogador, como limite mínimo, o direito de receber o valor total de salários mensais a que faria jus até o término do contrato de trabalho e a ser pago de uma única vez pelo clube empregador.
O STF já decidiu ser inconstitucional o “jabuti” que é inserido pelo Congresso Nacional em medidas provisórias editadas pelo Poder Executivo, conforme decisão tomada no julgamento da Ação Direta de Inconstitucionalidade (ADI) 5127.
Embora o presente “jabuti” não seja inconstitucional, uma vez que é proveniente de projeto de lei iniciado pelo próprio Legislativo e não de emenda a uma medida provisória do Executivo, ele não deixa de ser repugnante, porque descaracteriza o projeto e o torna antidemocrático.
Com efeito, como o Projeto de Lei objetiva auxiliar os clubes em caráter emergencial, ele ganhou a condição de tramitar em regime de urgência, o que significa dizer que já pode ser votado direto em Plenário, sem a necessidade de que passe por uma discussão pública.
Como o “jabuti” veio ali bem no meio da proposta, a questão que ele regula acabou sendo subtraída do regular debate legislativo. Por se tratar de um tema que vai alterar para sempre as relações de trabalho no futebol, ele mereceria sofrer profunda análise por parte de comissões temáticas e ser debatido exaustivamente em audiências públicas.
Porém não é isto o que irá acontecer. Aliás, é lamentável também constatar que uma proposta dessa magnitude não tenha vindo acompanhada de qualquer embasamento técnico-científico e que descrevesse o impacto econômico, financeiro e social que ela proporcionará.
A única justificativa que consta no PL para o “jabuti” é o de “igualar o atleta de futebol profissional às demais categorias regidas pela Consolidação das Leis do Trabalho”, ou seja, submetê-lo à regra do art. 479 da CLT que prevê que “Nos contratos que tenham termo estipulado, o empregador que, sem justa causa, despedir o empregado será obrigado a pagar-lhe, a título de indenização, e por metade, a remuneração a que teria direito até o termo do contrato.”
As peculiaridades do trabalho do jogador de futebol tornam impossível equiparar sua situação jurídica à dos demais trabalhadores, o que seria o mesmo que confundir jabuti com tartaruga. Talvez poderia fazer sentido se o que se deseja é criar uma verdadeira fantasia, o que tornaria o projeto de lei um forte concorrente ao Prêmio Jabuti – o mais tradicional prêmio literário do Brasil – de melhor obra de ficção do ano…
Triste é verificar que o projeto iguala os atletas aos demais trabalhadores somente no ônus, mas não no bônus. Se o critério é o de equiparação sem levar em conta as peculiaridades de cada profissão, os jogadores de futebol devem fazer jus a hora extra, adicional noturno, remuneração adicional por dia de feriado ou domingo trabalhado etc.
Por outro lado, se é para equiparar a cláusula compensatória desportiva com a indenização do art. 479 da CLT, deve-se também igualar a cláusula indenizatória desportiva (que é a devida pelo empregado ao empregador quando decide rescindir o seu contrato) com o valor devido pelos demais trabalhadores ao empregador quando rescindem os seus contratos (art. 480 da CLT), acabando com os estratosféricos parâmetros previstos na Lei nº 9.615/98.
É importante frisar que a clausula compensatória serve como uma espécie de poupança, a fim de dar ao jogador condições de buscar recolocação profissional na faixa dos 40 anos. Conforme é por todos sabido, a inserção noutra atividade laboral nessa altura da vida, é extremamente desvantajosa em relação aos demais profissionais com experiência em seus setores de atuação.
Respeitar o princípio da igualdade não implica em passar a mesma régua sobre todos igualmente, pois tratar-se os homens sem levar em conta nenhuma das desigualdades de fato existentes, conduziria a consequências absurdas, como seria, por exemplo, exigir-se serviço militar de crianças ou impor-se a cadeia a um deficiente mental que tenha cometido um delito.
Já dizia Ruy Barbosa que “a regra da igualdade não consiste senão em tratar desigualmente os desiguais na medida em que se desigualam. Tratar com desigualdade os iguais, ou os desiguais com igualdade, seria desigualdade flagrante, e não igualdade real.”
Infelizmente nosso legislador não está preocupado com nada disso: aproveitaram o Covid-19 para sorrateiramente inserir um “jabuti” a fim de prejudicar os atletas. Se é então para aproveitar a ocasião, poderíamos inserir no projeto de lei outro “jabuti”, muito mais justo e razoável.
O segundo “réptil” teria a seguinte redação:
“Os deputados receberão apenas a metade da remuneração a que fariam jus até o término de seu mandato, ficando revogadas as demais disposições em contrário”.
Que tal?