No clássico da literatura nacional “Dona Flor e seus dois maridos”, Jorge Amado leva ao fim o casamento de Floripedes e Vadinho com a morte do rapaz, pelos anos de vida boemia que o malandro levou. Embora suas safadezas tenham atormentado sua esposa durante a vida em comum que tiveram, ela gostava dele mesmo assim.
A recatada viúva acabou se casando um ano depois com alguém diametralmente oposto ao de cujus: Teodoro, um farmacêutico cerimonioso e equilibrado. O feliz casamento só não foi completo porque o novo marido não conseguia saciar sexualmente sua esposa, que começou a ter visões do fantasma do antigo parceiro que teimava em aparecer nú diante dela, passando a “conviver” com o casal para sempre.
A flor mais bela do esporte brasileiro também está dividida entre dois modelos: nosso futebol está na perspectiva entre permanecer casado com o regime associativo sem fins lucrativos ou se juntar com o modelo empresarial.
Hoje tem-se a impressão de que está tudo muito parecido com a estória de Jorge Amado: clubes podem atuar como associações ou empresas. Ocorre que a realidade é bem diferente. A desigualdade dos regimes, principalmente de ordem tributária, desestimula iniciativas para que se avance para um perfil empresarial definitivo.
O deputado Pedro Paulo, que supostamente mudaria o rumo desta prosa com um projeto de lei que converteria as associações em empresas, deu um spoiler de sua trama, semelhante ao desfecho de “Dona Flor”, sem, contudo, cativar a mesma admiração dispensada à obra do saudoso escritor baiano.
De forma paradoxal, sua ideia é a de transformar associações em empresas, mas ao mesmo tempo permitir que as elas possam permanecer como estão… Na sua visão, será possível a convivência de associações e empresas sob o mesmo teto, mesmo com as empresas tendo que arcar com despesas tributárias de grande monta.
Ele parece seguir o perfil bem brasileiro de resolver as contradições de nossa sociedade que é o de acomodar situações conflitantes sem tomar partido, tal como Dona Flor, que dividida entre o correto Teodoro e o erótico Vadinho, decidiu viver com ambos para tentar aproveitar o melhor dos dois mundos.
Para ele, associações poderiam manter as isenções tributárias atuais, caso sigam uma série de requisitos de boa administração. Se não conseguirem cumpri-los, passarão a ser tributadas da mesma forma que as empresas.
Para quem não está muito afeto a este assunto, poderá ter a sensação de que ele descobriu a pólvora, mas já houve quem tivesse tido essa ideia antes e constatado que ela não dá certo.
Assim, por exemplo, os portugueses, como bons descobridores que são, descobriram que não dá para o futebol conviver com maridos tão diferentes. Eles bem que tentaram seguir por aí, mas como se observa nos consideranda do Decreto-Lei n.º 10/2013, resolveram acabar com a bigamia:
Os clubes que optaram por manter o seu estatuto de pessoa coletiva sem fins lucrativos – […] – ficaram sujeitos a um regime especial de gestão, consistente, essencialmente, num conjunto de regras mínimas que pretendiam assegurar a indispensável transparência e rigor na respetiva gestão, e que era suposto ter efeitos penalizantes para os respetivos dirigentes. A prática viria, contudo, a desmentir essa intenção e a evidenciar uma desigualdade relativamente a entidades desportivas que haviam assumido uma forma jurídica societária, à qual urge pôr cobro.
Nem seria preciso atravessar o oceano atlântico para perceber isso. No Brasil, em 2003, numa das alterações da Lei nº 9.615/98, previu-se que as entidades de prática desportiva participantes de competições profissionais, independentemente da forma jurídica adotada, sujeitariam dirigentes a responder com seus bens particulares em caso de desvio de finalidade na condução de seus clubes. (art.27)
Em 2011, previu-se também que “Para os fins de fiscalização e controle do disposto nesta Lei”, as atividades profissionais dos clubes, independentemente da forma jurídica sob a qual estejam constituídas, estariam equiparadas às das sociedades empresárias. (Art. 27. §13).
Apesar de tudo isso, o fato é que raros foram os dirigentes punidos e essa suposta equiparação entre clubes e empresas nunca foi levada adiante, uma vez que os “fins de fiscalização e controle” jamais foram cumpridos, simplemente porque não há órgão fiscalizador nesse ramo…
Com efeito, após o término do Conselho Nacional de Desportos em 1993, não se cogitou criar alguma espécie de agencia reguladora do esporte, para que os clubes não chegassem ao nível falimentar em que se encontram hoje.
O resultado é que as associações esportivas ficaram muito parecidas com Vadinho. Quase todas estão “mortas” porque seus dirigentes se esbaldaram na esbónia perdulária e agora, despidas de patrimônio, perambulam por aí no cenário jurídico como verdadeiros fantasmas, assombrando a vida dos credores que tenham delas dinheiro a receber…
É fato que, assim como Teodoro, o modelo empresarial não é perfeito. Empresas também podem chegar à penúria, falir e deixar na viuvez aqueles que pensam que o casamento do futebol com o regime empresarial será eterno e sem crises.
Entretanto, é inegável que o mundo corporativo propicia muito mais segurança jurídica para investidores e credores do que o associativo.
Efetivamente, as empresas, em especial as SAs, têm que seguir várias regras de gestão profissional, compliance e transparência. Sua diretoria atua sob a vigilância da Comissão de Valores Mobiliários e de seus conselhos internos de administração e fiscal. Ademais, é acompanhada pelos próprios acionistas, que podem a qualquer momento destituir seus integrantes das funções em caso de gestão ineficiente ou irresponsável.
Sendo tão diferentes, a convivência de ambos os regimes no mesmo sistema esportivo decerto produzirá um efeito ainda mais grave, qual seja, o de violar o sagrado princípio da igualdade desportiva.
Dona Flor e Pedro Paulo cometem o mesmo erro de tentar reviver um passado que não deu certo e que irremediavelmente ficou pra trás.
Os fracassos da Timemania e do Profut deveriam ser o bastante para convencer o parlamentar de que a medida será para lamentar, mas parece que não haverá jeito.
Pois, assim como Dona Flor, que viveu com seus dois maridos, o futebol, ao que tudo indica, terá de conviver com dois regimes jurídicos.