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Duas Caras

“Duas Caras” é um personagem dos quadrinhos e do cinema, inimigo de Batman, do qual já foi seu grande aliado. Seu verdadeiro nome é Harvey Dent, um promotor público que enlouquece depois que o chefe da máfia joga ácido em sua face durante um julgamento, desfigurando o lado esquerdo do seu rosto.

Com a face deformada, ele desenvolveu um distúrbio de personalidade múltipla, tornando-se obcecado pela dualidade.

Dualidade é o que se vem observando na Diretoria do Flamengo em relação ao coronavírus. Desde o início da pandemia, seus dirigentes lideraram o movimento pela retomada das competições. Não pareciam se preocupar com a contaminação de seus atletas, tanto que a imprensa flagrou a equipe treinando escondida, quando havia expressa proibição das autoridades locais.

Contudo, no episódio do jogo contra o Palmeiras, um dos principais argumentos dos representantes do time para requerer o adiamento da partida foi o surto que poderia se alastrar e prejudicar seus profissionais, o que provocou surpresa de todos, pois tal atitude tentava revelar uma face de cautela e zelo que jamais fora manifestada até então.

Ter duas caras não é nada bem visto no direito, que reprova comportamentos contraditórios através da máxima “Venire contra factum proprium non potest” (não se pode ir contra os próprios atos) com o objetivo de proteger a estabilidade das relações jurídicas e confiança nos negócios que são realizados.

Referido princípio impede que uma parte adote um comportamento diverso daquele modelado anteriormente, trazendo surpresa à outra parte que passa a ter prejuízos, por acreditar que o que vinha sendo feito pelo seu consorte seria mantido.

Aldemiro Rezende Dantas Júnior ensina que:

A expressão venire contra factum proprium […] pode ser apontada, em uma primeira aproximação, como sendo abrangente das hipóteses nas quais uma mesma pessoa, em momentos distintos, adota dois comportamentos, sendo que o segundo deles surpreende o outro sujeito, por ser completamente diferente daquilo que se poderia razoavelmente esperar, em virtude do primeiro.

Os mandatários do clube da Gávea violaram claramente o princípio do Venire, adotando um comportamento contraditório em prejuízo da competição e demais equipes, mas que não passou despercebido pelo Presidente do STJD, tanto quando negou a liminar pleiteada para suspender a partida, quanto ao indeferir o pedido de reconsideração.

Embora não tenham mencionado expressamente o princípio, as decisões deixam evidente que estão inspiradas na aludida máxima, conforme se observa de alguns trechos a seguir:

Aliás, como é público e notório para aqueles que    acompanham o Futebol, dentre as Agremiações que sempre perseguiram, o quanto antes, a volta dos Campeonatos, o próprio FLAMENGO sempre ocupou posição de protagonismo.

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No que se refere ao risco de contaminação de terceiras pessoas, repita-se que a controversa decisão pela retomada das atividades do futebol profissional em meio à Pandemia Covid19 foi amplamente estudada e deliberada entre a Entidade Máxima de Organização do Desporto e os Clubes {…}

 

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Assim é que o Clube Requerente, que enquanto não lhe interessou, nunca impugnou o Protocolo Médico da CBF em momento anterior e oportuno – mas ao contrário, o subscreveu expressamente na pessoa do Chefe de seu Departamento Médico –  não pode agora pretender que a Justiça Desportiva, em sede liminar, e portanto superficial, prestigie um Parecer Médico em detrimento de outro trabalho científico e coletivo.

Aliás, tá na cara que não havia preocupação com saúde dos trabalhadores, mas unicamente com o fato de que a equipe entraria em campo desfalcada para a partida.

Isso ficou tão evidente não apenas na forma pela qual se posicionou o STJD, como também pela maneira como reagiram os demais clubes participantes do campeonato brasileiro, refutando com veemência a atitude da diretoria rubro-negra.

Os argumentos do Flamengo até que seriam razoáveis diante do número de jogadores contaminados. Entretanto, acabaram caindo por terra no STJD, em virtude de seu comportamento ao longo da pandemia, que contradiz as alegações feitas no processo, mostrando absoluta falta de coerência.

“Duas caras” igualmente jamais se preocupou com coerência e não por acaso se transformou num grande vilão. Sempre que tinha dúvidas sobre a forma pela qual deveria agir, jogava uma moeda para o alto e o seu comportamento bom o mau dependia de qual das faces caia para cima.

O episódio deve servir de lição para todos, pois não basta ter argumentos sólidos para defender esta ou aquela posição. É preciso que as pessoas tenham uma postura coerente com aquilo que sustentam, porque, de acordo com o que façam hoje, colherão os frutos amanhã não apenas na vida particular, mas também no âmbito jurídico.

Caso contrário, terão o mesmo destino de Harvey Dent.

Não serão bem vistos, nem pela sociedade nem pela justiça.

E acabarão quebrando a cara.

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