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É preciso falar de racismo (ainda e muito)!!

É preciso falar de racismo! Essa é uma constatação que carrego comigo, infelizmente. Essa chaga na humanidade dificilmente se dissipará, mas não se pode admitir como um axioma, como realidade ontológica e aceitá-la. Ao revés, a luta antirracista deve ser perene e constante, malgrado encontre óbices, sobretudo por incomodar a quem não quer reconhecer a sua existência.

Não me atenho somente ao Brasil, o racismo ele está espraiado em todo o globo, tem diversos matizes, não se volta apenas em desfavor das pessoas pretas, atinge os orientais e os de ascendência árabe, dentre outros. Mas, são os primeiros que mais padecem das agruras inerentes aos ataques de cunho racial na maioria dos países, em especial no Ocidente.

Voltando olhares ao mundo do Esporte tivemos mais um final de semana onde uma nova ocorrência traz o tema à baila, mostra quão importante é enfrentá-lo. Na partida entre Olympique de Marseille e PSG, Álvaro Gonzalez, atleta da primeira equipe, foi acusado por Neymar de haver proferido insultos de cunho racista, que foi expulso do jogo, por desferir um tapa na cabeça daquele[1]. Esse fato, curiosamente, me fez recordar um similar, que envolveu o zagueiro argentino Desabato e o atacante brasileiro Grafite, em 2005, em partida da Libertadores. Neste episódio, este registrou ocorrência policial, sendo efetuada, inclusive, a prisão daquele, gerando, à época, agitado debate sobre racismo.

Não se pode negar que, no sistema internacional do Esporte, em cada uma das suas modalidades, há rechaço normativo à prática de racismo.

Por exemplo, observando o futebol, tem-se no Código Disciplinar da FIFA, grafado no artigo 13, a tipificação da conduta proibida e o estabelecimento de sanções como castigo à iniquidade. As penas cominadas são gradativamente concebidas, iniciando-se com a pecuniária, perda de pontos, realização de partidas sem público, eliminação de competição ou até mesmo o rebaixamento de divisão[2]. A COMEBOL também prevê punição àqueles que pratiquem atos racistas no âmbito de sua jurisdição, embora não contemple, expressamente, espécies de penas severas como as citadas anteriormente[3]. Por fim, no âmbito nacional, o Código Brasileiro de Justiça Brasileira, prevê a proibição de condutas racistas, precisamente, no seu artigo 243-G, cominando pena de multa, suspensão por prazo (para pessoas físicas), perda de pontos, perda de mando e exclusão de campeonato.

A despeito do aparato normativo, o enfrentamento aos atos racistas dentro do Esporte não tem o vigor que se verifica noutras campos, por exemplo, como o inadimplemento de dívidas entre clubes no âmbito do sistema FIFA, ou, nos casos de invasão de campo e distúrbios em praças desportivas, na realidade nacional[4].

Há, com efeito, um tênue temor em se adotar posturas mais severas em relação à prática de atos racistas, sobretudo se alcançarem clubes na esfera desportiva (vide perda de pontos, por exemplo). As ponderações feitas me recordam deveras aqueloutras sustentações em desfavor do reconhecimento da responsabilidade objetiva do clube por atos de seus torcedores, em especial nos casos de arremessos de objetos em campo ou invasão para área proibidas nas praças desportivas. Ali, como aqui, dizia-se que o clube não poderia ser penalizado por ato isolado de um torcedor, sendo, portanto, injusto a imposição de sanção ao clube.

Hodiernamente, ninguém contesta tal responsabilização objetiva que adveio, no caso do futebol, de firme imposição da FIFA, extensiva aos congêneres órgãos de governo desta modalidade nos países. E sabe-se, deveras, que foi e é a melhor solução, que se comprova por meio de dados concretos.

Por que não cogitar e agir assim em relação ao racismo?

Me parece existir um leve constrangimento em relação ao tema, que nos força a revolvê-la, infelizmente, quando nos deparamos com mais um novo caso.

Apesar disso, o enfrentamento do racismo no Esporte ganhou novos contornos após o assassínio do americano George Floyd, que reacendeu nos Estados Unidos da América, principalmente, as marchas e protestos antirracistas. Naqueles conclaves – ocorridos mesmo em plena pandemia da covid-19 – e no mundo virtual, diversos atletas se posicionaram contra os seguidos atos de violência (principalmente a policial) praticados contra negros. Naceu ali a conhecida hastagBlackLivesMatter”.

Nada disso é novidade para os americanos e para nós. É de comum sabença o quão doloroso foi (aliás, foi não, é) o processo de efetivação de direitos civis plenos dos negros em relação aos brancos, seja na América acima dos trópicos, como na que está abaixo deles. Os índices de mortandade de jovens, por exemplo, indicam que são a de negros e pardos é três vezes maior do que dos demais[5]. Será isso mera coincidência?

Particularmente, não creio nisso, e sim em efetiva seletividade do sistema penal. Contudo, aqui, não pretendo discorrer sobre esta perspectiva.

Todavia, retomando o que asseverei para o mundo do Esporte, a irresignação dos atletas negros[6], em maior escala e representados por grandes nomes, como Lebron James e Stephen Curry, promoveu uma campanha que veio de dentro para fora das quadras e campos de jogo. Basta assistir partidas da NBA ou NFL que se verificará o emprego de frase de impacto na luta antirracial.

De fato, as ligas se veem compelidas, querendo ou não, a tratar do tema e ser sensível ao mesmo. Não sem razão, partidas dos torneios da NBA, MLS e MLB não foram realizadas como protesto pelas equipes em razão de novos fatos considerados como de cunho racista. Até mesmo a tenista Naomi Osaka não jogou partida válida pela semifinal do torneio de Cincinatti[7].

Impossível se jogar o racismo para debaixo do tapete ou realizar uma peça publicitária bacana e achar que está tudo bem. Lógico que o esporte não mudará a realidade por completo, mas estas ações apontam que os atletas e técnicos que estão engajados provam que o Esporte não é um mundo à parte, que vive uma bolha, isolados da realidade que a maioria das pessoas enfrentam. Ao revés, aponta o quão integrado está na sociedade e pode significar um agente de transformação e não mais alienação.

Destaco, ainda, duas questões, para não mais cansá-los, caros leitores: após o caso Floyd, alguns fatos foram merecedores de destaque sobre uma possível mudança de posição da FIFA em relação à vetusta postura de vedar manifestações que possam ter conotação política.

No campeonato alemão, em algumas partidas, as comemorações de gols foram em homenagem a George Floyd, inclusive, numa delas, o atleta foi advertido com cartão amarelo. Logo em seguida, o Presidente da FIFA, Gianni Infantino, contestou tal punição, por entender que as celebrações em forma de protesto foram lícitas, porquanto se pautavam na defesa de direitos humanos. A própria Federação de Futebol da Alemanha se posicionou de igual forma.

Mais recentemente, o piloto inglês Lewis Hamilton, após vencer uma prova na Fórmula 1, exibiu no pódio uma camisa com os seguintes dizeres: Prendam os policiais que mataram Breonna Taylor[8].  A mensagem é considerada de cunho antirracista pelo piloto, mas, possivelmente, a FIA instaurará procedimento para apurar eventual infração disciplinar por adoção de posicionamento político.

A questão posta é se falar de racismo é ou não um ato político. Ou mesmo, é possível debater racismo sendo apolítico?

Precisamos encarar o problema de frente e buscar sermos efetivos com combate ao racismo. É preciso dar voz.

Compreende-se o temor das federações esportivas em se afastar de temáticas de cunho religioso ou político, mas a recidiva das violências de cunho racial, dentro e foram do mundo do esporte, que malferem o mais fundamental dos princípios da civilização, a dignidade humana, devem ser objetadas! E com vigor e destemor!

O Esporte com a força da sua representação, com a imagem dos seus atletas e clubes e o poder de aglutinação da sociedade que tem, surge como um elemento surpresa, até então adormecido.

Vimos, no passado, como o Esporte foi empregado para disseminar valores ideológicos, agora é a oportunidade de se estabelecer um debate honesto, envolvendo os seus players, para cuidar de tema que é caro a todos, sobretudo na defesa de valores inerentes à humanidade.

Os tempos são outros e merecem leitura e resposta distinta, sobretudo das Federações Esportivas, bem como a percepção e engajamento efetivo de atletas para lidar com temas deste jaez.

Portanto, é preciso, sim, falar de racismo, melhor, é preciso ser antirracista.

……….

[1] Disponível em: <https://www.espn.com.br/futebol/artigo/_/id/7427420/neymar-sobre-acusado-de-racismo-apos-psg-x-marselha-unico-arrependimento-e-nao-ter-dado-na-cara-desse-babaca> Acessado em 14 set 2020.

[2] Disponível em: <https://resources.fifa.com/image/upload/fifa-disciplinary-code-2019.pdf?cloudid=itlg9zbqmrow5rf2h7dy> Acessado em 14 set 2020.

[3] Disponível em: <http://www.conmebol.com/sites/default/files/docs2020/Codigo-Disciplinario-2020-es.pdf> Acessado em 14 set 2020.

[4] Compartilha de idêntico pensar o jovem Matheus Laupman, como deixou consignado em seu escrito na Coluna JusDesportiva do IBDD. Disponível em: <https://ibdd.com.br/o-codigo-disciplinar-da-fifa-e-o-racismo/> Acessado em 14 set 2020.

[5] Disponível em: <https://www1.folha.uol.com.br/cotidiano/2019/11/homicidios-entre-jovens-negros-e-quase-tres-vezes-maior-do-que-brancos-e-chegam-a-185-por-100-mil.shtml> Acessado em 14 set 2020.

[6] Recentemente, o Colin Kaepernick, ex-jogador da franquia San Francisco 49ers, da liga NFL, desafiou o sistema ao ajoelhar-se durante a execução do hino americano antes dos jogos, gerando um movimento que levou à sua execração por parte dos donos das franquias. A partir dai, Colin lidera este movimento crítico em relação à violência contra negros como atos de racismo, na busca de maior equilíbrio nas relações e efetivação dos direitos civis consignado na Carta Política americana. Uma síntese da história dele pode se encontrar aqui: https://aventurasnahistoria.uol.com.br/noticias/reportagem/vidas-negras-importam-o-protesto-antirracismo-que-acabou-com-carreira-de-colin-kaepernick.phtml . Acessado em 14 set 2020.

[7] Disponível em: < https://noticias.uol.com.br/ultimas-noticias/afp/2020/08/26/jogos-da-nba-sao-adiados-devido-a-boicote-de-jogadores-em-protesto-contra-ataque-policial.htm> Acessado em 14 set 2020.

[8] Disponível em: < https://globoesporte.globo.com/motor/formula-1/noticia/apos-pedir-prisao-de-policiais-que-mataram-americana-hamilton-diz-nao-vamos-ficar-em-silencio.ghtml> Acessado em 14 set 2020.

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