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Entendendo o Conceito de Nacionalidade Desportiva

Por Anna Flávia Gonzalez[1]

O conceito de nacionalidade, dentro de um contexto de direito internacional, remete ao vínculo que liga a pessoa ao Estado, identificando aquela como nacional deste e gerando entre ambos, a pessoa e o Estado, direitos e deveres[2]. Nessa linha, cabe ao Estado a definição de seus nacionais e critérios de admissibilidade, detendo, para tanto, legitimidade exclusiva, conforme esclarecido abaixo[3]:

A nacionalidade é atribuída aos indivíduos pelo Estado, sendo em princípio atribuição interna de cada Estado as regras para sua aquisição ou perda em relação a ele próprio. A matéria é de fundo constitucional, por se tratar de questão atinente ao Estado e sua existência intrínseca […].

De maneira geral, o elemento principal adotado pelo Estados para caracterização do vínculo de nacionalidade é o fenômeno do nascimento, de forma que seus naturais adquiram automaticamente a respectiva nacionalidade. É o caso previsto no artigo 12,I “a” da Constituição Federal brasileira de 1988, que confere aos nascidos em território brasileiro o vínculo de natural do Brasil.[4]

Outro elemento comumente utilizado para caracterizar a nacionalidade é o vínculo sanguíneo estabelecido entre pessoas nascidas de nacionais de um Estado, ainda que o nascimento tenha se dado fora do seu respectivo território geográfico. Tal característica é muito marcante em Estados de origem latina, como Portugal, Espanha e Itália, fato também observado na Constituição Federal brasileira de 1988, conforme artigo 12, I “c”[5].

Adentrando no contexto desportivo, contudo, o conceito de nacionalidade ganha contornos diferenciados, se desvinculando da ingerência estatal e podendo ser dissociado do conceito de nacionalidade legal. A definição dos critérios de elegibilidade para jogos representando seleções nacionais é de competência exclusiva de cada federação ou confederação internacional, podendo variar de modalidade para modalidade, ou seja, cabe à entidade federativa máxima de cada esporte a determinação dos critérios para obtenção da nacionalidade desportiva.

À título exemplificativo, nos termos do Estatuto da Fifa de 2022[6], qualquer pessoa que seja detentora de nacionalidade que não exija, para tanto, a residência permanente em território nacional, é apto a jogar pela respectiva seleção, tendo, portanto, nacionalidade desportiva. Para aqueles que possuírem dupla nacionalidade, contudo, cabe a escolha de qual seleção se pretende representar, observadas as regras do respectivo Estatuto, não havendo, diferentemente do contexto jurídico, a possibilidade de possuir ao longo da vida, simultaneamente, mais de uma nacionalidade desportiva.

Já na contramão na maioria das confederações internacionais, a World Rugby traz a possibilidade de representação de uma seleção por jogadores que não detém a respectiva nacionalidade jurídica do time que se pretende defender. Conforme Estatuto de 2022[7], podem jogar por uma determinada seleção, detendo a nacionalidade desportiva (i) os nascidos no respectivo país, (ii) os filhos ou netos, em pelo menos 1 lado da família, de naturais do respectivo país, (iii) o jogador que completou sessenta meses consecutivos de Residência imediatamente anteriores ao momento do jogo pelo respectivo país ou (iv) o jogador que completou dez anos de Residência cumulativa antes do tempo de jogo.

Ou seja, do acima exposto se depreende que, para o Rugby, a detenção de nacionalidade estatal não é requisito obrigatório para elegibilidade de jogadores por suas seleções, podendo, para tanto, ser adotados critérios sanguíneos ou de permanência territorial, sem prejuízo da tradicional elegibilidade dos naturais. Isso significa que é possível um atleta de Rugby deter nacionalidade desportiva distinta da sua nacionalidade jurídica.

Das breves considerações trazidas, portanto, tem-se que não apenas há uma desvinculação dos critérios de elegibilidade para obtenção da nacionalidade jurídica da nacionalidade desportiva, como os legitimados para estabelecimento de tais critérios são entes distintos, de forma que o primeiro compõe monopólio do poder público enquanto o segundo, do poder privado. Desta feita, é possível um atleta ser considerado, para fins jurídicos, nacional de um Estado, e para fins desportivos, nacional de outro.

As peculiaridades acima se fazem relevantes, por exemplo, na medida em que, ao tratar de competições envolvendo nações, levanta-se o questionamento de como os procedimentos de naturalização e pleito de nacionalidade desportiva dissociado da nacionalidade estatal poderiam ter, ou não, o condão de, aos poucos, eliminar o vínculo de representatividade entre atletas e suas nações, fenômeno este que levou ao surgimento das chamadas “seleções mercenárias”.

Para fins de esclarecimento, são denominadas “seleções mercenárias” aquelas formadas por atletas que, por meio de naturalização ou outro tipo de exigência legal, adquirem a nacionalidade desportiva motivados exclusivamente pela possibilidade de maiores ganhos financeiros[8], sem que haja, contudo, um vínculo cultural e/ou emocional com a respectiva nação a qual se pretende defender.

Por fim, tem-se que outra consequência da desvinculação dos conceitos de nacionalidade estatal e desportiva acima trazida é a possibilidade do surgimento de naturais representantes de estados que não são politicamente reconhecidos.

Nesse sentido, o contexto acima é extremamente relevante no estudo da criação de “seleções alternativas” nas competições organizadas pelo Comitê Olímpico Internacional (“COI”), como por exemplo, o time de refugiados, presente nos Jogos Olímpicos desde a edição de 2016[9]. Veja-se que o COI, na qualidade de entidade privada, possui um número de filiadas reconhecidas distinto do número de Estados reconhecidos pela Organização das Nações Unidas (“ONU”): são 206 do primeiro versus 193 do segundo[10], fazendo prova de que as concepções de nação e seus naturais, nos âmbitos jurídico-estatais e desportivos, são independentes.

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[1] Anna Flávia Gonzalez Bruder é advogada graduada pela Universidade Presbiteriana Mackenzie, pós-graduanda em direito desportivo pela ESA OABSP e coordenadora geral e de pesquisa do Grupo de Estudos de Direito Desportivo Empresarial do Mackenzie (“GEDDE-MACK”).

[2] HUSEK, Carlos Roberto. Nacionalidade. 2022. Disponível em: https://enciclopediajuridica.pucsp.br/verbete/494/edicao-1/nacionalidade. Acesso em: 12 jul. 2022.

[3] ibidem

[4] BRASIL. Constituição (1988). Constituição Federal de 1988. . Brasília, Disponível em: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/constituicao/constituicao.htm. Acesso em: 13 jul. 2022.

[5] Ibidem

[6] FÉDÉRATION INTERNATIONALE DE FOOTBALL ASSOCIATION. Fifa Statutes: May 2022 Edition. May 2022 Edition. 2022. Disponível em: https://digitalhub.fifa.com/m/3815fa68bd9f4ad8/original/FIFA_Statutes_2022-EN.pdf. Acesso em: 12 jul. 2022.

[7] WORLD RUGBY. Regulations. Disponível em: https://www.world.rugby/organisation/governance/regulations/reg-8. Acesso em: 12 jul. 2022.

[8] Douglas De Almeida, W. y Rubio, K. (2020). Nacionalidade esportiva vs. nacionalidade estatal: o desafio de atletas transnacionais em um mundo global. Educación Fïsica y Deporte, 39(2) acesso em 01.08.2022. DOI: http://doi.org/10.17533/udea.efyd.v39n2a05

[9] EQUIPE Olímpica de Refugiados do COI: sintonize o anúncio ao vivo da seleção Tóquio 2020. Disponível em: https://olympics.com/pt/noticias-destacadas/watch-refugee-olympic-team-olympic-games-tokyo-2020-live-announcement. Acesso em: 01 ago. 2022.

[10] Douglas De Almeida, W. y Rubio, K. (2020). Nacionalidade esportiva vs. nacionalidade estatal: o desafio de atletas transnacionais em um mundo global. Educación Fïsica y Deporte, 39(2) acesso em 01.08.2022. DOI: http://doi.org/10.17533/udea.efyd.v39n2a05

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