Por Dr. Cláudio Klement Rodrigues
A arbitragem é um dos pilares fundamentais da justiça desportiva, sendo regida por normas rígidas que garantem a imparcialidade e a previsibilidade das decisões. No entanto, quando há violação de normas essenciais, como a Regra 5 das Regras de Jogo da IFAB, a Justiça Desportiva deve intervir para garantir a integridade do esporte.
No recente jogo entre Caravaggio x Barra FC, ocorrido em 22/02/2025 pelo Campeonato Catarinense de 2025, observamos uma situação clara de erro de direito, na qual o árbitro validou um gol, apitou o final da partida e, só depois, anulou a jogada. Como veremos adiante, a súmula do jogo omite o ocorrido, mas os vídeos da partida confirmam que a arbitragem alterou uma decisão após o apito final, configurando erro de direito passível de impugnação, nos termos do artigo 84 do Código Brasileiro de Justiça Desportiva (CBJD).
O Erro de Direito na Arbitragem e a Regra 5 da IFAB
A Regra 5 das Regras de Jogo da IFAB estabelece a soberania do árbitro durante a partida, garantindo que suas decisões sejam definitivas desde que respeitado o momento processual adequado. Um princípio fundamental dessa regra é que o árbitro não pode modificar uma decisão após o reinício do jogo ou, em caso de apito final, após o término da partida.
A violação dessa regra configura erro de direito, conforme já decidido pelo Superior Tribunal de Justiça Desportiva (STJD) em precedentes que anularam partidas quando a arbitragem foi influenciada por interferências externas ou mudou uma decisão de forma indevida.
No caso Caravaggio x Barra FC, o vídeo da partida mostra claramente que:
✅ O árbitro validou o gol do Barra FC.
✅ O árbitro sinalizou para o meio de campo.
✅ O árbitro apitou o final da partida.
✅ Somente depois do apito final, o assistente se reuniu com o árbitro, que então mudou sua decisão e anulou o gol.
A decisão foi alterada fora do tempo regulamentar e sem base em regras que permitam essa reversão, o que caracteriza erro de direito.
Caso Ponte Preta x Aparecidense
O caso guarda forte semelhança com o Processo nº 027/2019 do STJD, no qual a Ponte Preta impugnou uma partida contra a Aparecidense pela Copa do Brasil. Naquela ocasião, o STJD entendeu que houve erro de direito porque um delegado da partida influenciou indevidamente o assistente, que depois alterou a decisão do árbitro, levando à anulação do gol da Ponte Preta e, consequentemente, à anulação da partida.
No acórdão do STJD, restou decidido que:
“Se restou provada a interferência externa na decisão, ou melhor, na revisão da decisão da arbitragem, e se tal, como cediço, configura erro de direito apto a subsidiar a impugnação da partida, nos moldes do art. 84 e ss. do CBJD, revela-se inadequada a invocação do princípio pro competione para ignorar o fato provado e sua subsunção à norma.”.
Aplicando esse entendimento ao caso Caravaggio x Barra FC, temos uma situação ainda mais grave:
- No caso da Ponte Preta, a decisão foi alterada antes do apito final, mas com influência externa.
- No caso do Barra FC, a decisão foi alterada após o apito final, o que torna a irregularidade ainda mais evidente.
Dessa forma, a reversão da decisão da arbitragem após o término da partida é um erro de direito incontestável, seguindo o precedente do STJD.
Aplicação do Código Brasileiro de Justiça Desportiva (CBJD)
O artigo 84 do CBJD estabelece que uma equipe pode impugnar uma partida quando houver um erro de direito que influencie diretamente o resultado do jogo. No caso concreto, houve:
- Violação da Regra 5 da IFAB, ao modificar uma decisão já consolidada após o apito final.
- Erro de direito, conforme o STJD já reconheceu em casos semelhantes.
- Influência indevida sobre o árbitro após o término da partida, alterando o placar do jogo.
Essa violação é grave e gera a consequência jurídica prevista no CBJD:
“Se o erro de direito for comprovado, a consequência natural é a anulação da partida, garantindo a isonomia e a lisura da competição.”
Portanto, nos termos do CBJD e dos precedentes do STJD, a partida deve ser anulada e remarcada, garantindo que o resultado seja decidido dentro das quatro linhas, sem interferências indevidas ou decisões tomadas fora do tempo regulamentar.
Princípio da Segurança Jurídica e o Erro de Direito
A doutrina esportiva reforça que o erro de direito não pode ser relativizado sob a justificativa da manutenção do resultado do jogo. O professor Paulo Marcos Schmitt[1], especialista em Direito Desportivo, comenta que:
“Os princípios têm a função de auxiliar no processo interpretativo das normas aplicáveis ao desporto, permitindo o adequado preenchimento de lacunas aparentes. No caso do erro de direito, não se pode simplesmente ignorar uma violação clara das regras sob a justificativa da estabilidade da competição.”.
Vale lembrar que os princípios são normas jurídicas por meio das quais se estabelecem deveres de otimização, ou seja, “são normas que ordenam que algo seja realizado na medida do possível, dentro das possibilidades jurídicas e reais existentes”[2]. (ALEXY, Robert. Teoría de los direchos fundamentales. Tradução: Virgílio Afonso da Silva. São Paulo: Malheiros, 2008 p. 86)
Por sua vez, como ensina DWORKIN[3]:
“as regras jurídicas não comportam aplicação parcial, sendo aplicadas no método tudo ou nada (all or nothing), ou seja, não sobrevivem à existência de regras que lhe são antinômicas. Se, em um caso concreto a ser analisado, o fato corresponde a uma situação narrada em uma regra válida, então será essa regra aplicada à solução do problema, em seu inteiro teor. As exceções das regras podem ser, em tese, todas previstas e listadas. Ao passo que os princípios – por possuírem a dimensão do peso ou importância – não determinam a decisão, mas contêm fundamentos, oriundos de outros princípios”.
Esse entendimento corrobora a tese de que a reversão do gol após o apito final é ilegal e deve ser corrigida por meio da anulação da partida.
Diante dos fatos analisados, da jurisprudência do STJD e da doutrina desportiva, conclui-se que a partida Caravaggio x Barra FC deve ser anulada, pois houve um erro de direito incontestável. O árbitro validou o gol, encerrou o jogo e, depois, alterou a decisão, contrariando a Regra 5 da IFAB e o artigo 84 do CBJD.
O TJD-SC deve seguir o entendimento já consolidado no STJD e determinar a anulação da partida e sua remarcação, garantindo que o Campeonato Catarinense de 2025 transcorra de maneira justa e dentro das normas desportivas vigentes.
A integridade do futebol depende do respeito às regras, e decisões como essa são essenciais para evitar precedentes perigosos que possam comprometer a credibilidade do esporte.
Crédito imagem: Caravaggio/Divulgação
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Cláudio Klement Rodrigues: Advogado especialista em direito desportivo, Presidente da Comissão de Direito Desportivo de Itapema, CEO do escritório CRK Advocacia Desportiva
[1] SCHMITT, Paulo Marcos (coord.). Código Brasileiro de JustiçaDesportiva Comentado. São Paulo: Quartier Latin, 2006. P. 23
[2] ALEXY, Robert. Teoría de los direchos fundamentales. Tradução: Virgílio Afonso da Silva. São Paulo: Malheiros, 2008 p. 86
[3] http://www.ambitojuridico.com.br/site/?n_link=revista_artigos _leitura&artigo_id=17877#_ftnref2