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Erro de direito e erro de fato: casos recentes no Brasil e em Portugal

Rafael Teixeira Ramos & Ana Cristina Mizutori

Na quinta-feira, 4 de fevereiro 2021, o Fortaleza Esporte Clube disputou a 34ª rodada do Campeonato Brasileiro 2020 Série A contra a equipe do Coritiba Foot Ball Club.

Além da vitória do time cearense, a partida ficou marcada pela expulsão do goleiro do Coritiba – Wilson Rodrigues de Moura Júnior –, após ter recebido o segundo cartão amarelo por avançar na defesa, tirando os dois pés da linha do gol na cobrança de pênalti pelo atacante adversário, Wellington Paulista.

Para esta coluna, a análise que marca o jogo não se limita à expulsão do goleiro, mas à aplicação do segundo cartão amarelo pelo motivo citado acima.

Isso porque, segundo a International Football Association Board, órgão responsável pela regulamentação das regras do futebol, o arqueiro não pode tirar os dois pés da linha do gol no momento da cobrança do tiro livre direto, sob pena de incorrer em infração capaz de ensejar aplicação de advertência e o retorno da cobrança do pênalti. A International Board menciona a aplicação de cartão amarelo somente se a infração se repetir.

Na referida partida, diante da transgressão do goleiro do time paranaense, ao invés de adverti-lo, o árbitro aplicou cartão amarelo direto, o que, somado a outro cartão amarelo registrado em desfavor do goleiro, ocasionou na expulsão imediata deste.

Como é de ser, todos os acontecimentos do jogo foram anotados na respectiva súmula.

Considerando que a súmula da partida é registrada pelo árbitro, autoridade máxima do certame desportivo, esta possui presunção relativa de veracidade (iuris tantum) para fins de base na formulação da Denúncia do Processo Desportivo, nos termos do art. 58, caput, do Código Brasileiro de Justiça Desportiva (CBJD).

Pode-se afirmar, portanto, que a informação trazida na súmula se traduz em assunção de erro de arbitragem, uma vez que deixa de observar a recomendação da IFAB (International Football Association Board). E com isso, levanta-se a pergunta: a aplicação incorreta do cartão amarelo em infração que compreendia advertência é erro de fato ou erro de direito?

Para a resposta é importante que os conceitos estejam claros.

O erro de direito ocorre quando a arbitragem aplica e/ou interpreta equivocadamente a regra do jogo, possibilitando a anulação da partida. Diferente do erro de fato, o qual ocorre quando a arbitragem não consegue detectar o que de fato aconteceu e com base nisso, se equivoca na marcação disciplinar.

Em exemplos práticos, o erro de direito se caracteriza quando o árbitro não checa se as traves dos gols estão conformes as dimensões definidas pelas regras. Por seu turno, o erro de fato ocorre quando se aplica um cartão amarelo em situação em que, segundo as regras, regulamentos e demais normas federativas impostas, era para ser aplicado o cartão vermelho.

E em meio a estas duas definições, existe um terceiro cenário em que os erros de fato podem se transfigurar em erros de direito, impactando diretamente na marcação disciplinar do árbitro, acima descrita. São três as circunstâncias:

  • Quando o árbitro, intencionalmente, deixa de marcar a penalidade corretamente, ignorando as regras, após o que vem a ser comprovado que este havia recebido dinheiro par a manipular a partida. A exemplo do que ocorreu no Campeonato Brasileiro em 2005, com o árbitro Edilson Pereira de Carvalho, que posteriormente passou a ser réu confesso;
  • Quando restar comprovado que o árbitro deixou de atender aos critérios de arbitragem por preferências pessoais, discriminatórias, de estigma ou preconceito, e age em desconformidade com as regras para prejudicar uma equipe;
  • Quando o arbitro confessa que errou no mérito marcação/aplicação da chamada Lei do Jogo, regras, regulamentos, recomendações, etc., ou ainda, se excedeu em sua aplicação.

Na decisão do árbitro que resultou na expulsão do goleiro do Coritiba na partida contra o Fortaleza, compreende-se, inicialmente, um erro de fato que se transfigurou em erro de direito.

Nesse caso, como a referida marcação incorreta não provoca alteração direta no resultado da partida, então, entende-se pela possibilidade de anulação do segundo cartão amarelo, caso a entidade de prática desportiva se valesse da jurisdição desportiva para tanto (interpretação atenciosa do art. 259, § 1° do CBJD).

Cumpre dizer que a conversão de erro de fato em erro de direito, a depender das circunstâncias, é uma concepção minoritariamente aceita pela Justiça Desportiva.

Acerca do erro de fato e do erro de direito, leciona o grande e saudoso professor Álvaro Melo Filho:

Insta detalhar-se quanto a esta candente temática jus-desportiva que o erro de direito categoriza-se como aquele decorrente da interpretação errada sobre as regras do jogo. Isso significa que, em ocorrendo erro de fato (error facit), tais decisões são definitivas, imutáveis e insuscetíveis de alterar o resultado da partida ou gerar sua anulação pela Justiça Desportiva, posto que ´el resutado del juego es intangible´ na hipótese do árbitro, por exemplo:

– validar um gol feito com a mão (casos Maradona ou Henry em mundiais de futebol);

– computar ponto no voley, quando a bola caiu fora da quadra;

– marcar penalty quando o zagueiro rebateu a bola dentro da área com o peito e não com a mão.

Já o mesmo não se dá com o erro de direito (error iuris) que decorre da inobservância da regra de jogo, que, se comprovado, importa na sua anulabilidade. Ressalte-se que a decisão do árbitro e o resultado da partida são finais e podem ser anuladas, contudo jamais alteradas. São exemplos de erro de direito que geram anulação da partida e punição do árbitro pela Justiça Desportiva:

– ter sido um jogo de futsal disputando com bola de handbol;

– permitir dois goleiros atuando em uma das equipes de futebol;

– disputar jogo de futebol com 12 atletas em uma das equipes.

Em suma, é possível concluir-se, de um lado, que o erro de fato é o engano ou falta de observação do árbitro a respeito da circunstância material do lance ou jogada, correspondendo a ato discricionário possibilitando ao árbitro interpretação subjetiva do fato ou da regra; e, de outra parte, o erro de direito decorre do descumprimento, desrespeito ou incorreta utilização da regra de jogo, correspondendo a ato vinculado na medida em que não outorga nem permite ao árbitro flexibilidade ou margem de interpretação.[1]

E não é só no Brasil que se registram tais ocorrências.

Recentemente, em Portugal, uma situação de erro de fato que transfigurou para erro de direito também chamou a atenção.

Na partida entre Sporting Clube de Portugal e Boavista Futebol Clube, o árbitro aplicou o quinto (5°) cartão amarelo ao meia João Palhinha, impondo a suspensão do atleta do jogo seguinte por acúmulo desse tipo de cartão.

Após a partida, o árbitro manifestou expressamente que teria se excedido na arbitragem, confessando o erro de mérito sobre a aplicação e interpretação das regras (Leis do Jogo).

Tal revelação do árbitro tem o condão de tornar o erro de fato em erro de direito, possibilitando a anulação do ato desalinhado às regras do jogo.

A demanda virou processo na Justiça Desportiva portuguesa, a qual entendeu, tanto em primeira, como em segunda instância, que se tratava de erro de fato.

Em sede recursal, o Tribunal Arbitral do Desporto (TAD) expressou que carecia de estrutura minimamente necessária para se reunir e julgar o caso antes da partida seguinte, o que permitiu ao jurisdicionado o ajuizamento da demanda na Justiça Administrativa lusitana, através do próprio regulamento do TAD.

Com efeito, o Sporting Clube de Portugal ajuizou processo no Tribunal Administrativo luso. Vale asseverar que, o ordenamento jurídico português possui jurisdição dúplice, em que a Justiça Administrativa compõe o Poder Judiciário lusitano, assim como ocorre na França (princípio da jurisdição dúplice).

Apreciado o caso, a justiça portuguesa identificou a declaração do árbitro como confissão do erro de fato, transvertendo-o em erro de direito, o que ocasionou na anulação do cartão amarelo aplicado, permitindo ao atleta a participação na partida seguinte.

Apesar da divergência jurisprudencial e doutrinária, há espaço no ordenamento jurídico para compreender que o erro na interpretação ou aplicação das Leis do Jogo podem acarretar a anulação da partida, por efeito de uma das três conjunções acima delineadas que transmutam o erro de fato (error facit) para o erro de direito (error iuris).

As reclamações e objeções quanto à arbitragem faz parte do futebol. Não há uma partida sequer em que os torcedores de plantão discutem sobre problemas em arbitragens, seja por divergência de entendimento, seja por erros efetivos na aplicação das regras.

Em síntese, permitir que um erro na arbitragem seja reparado deve ser observado com cautela, tanto para que não se torne uma praxe, retirando a integridade da modalidade esportiva, como para que os equívocos não se perpetuem, comprometendo, com isso, o bom andamento da competição (pro competitione), princípio elementar do desporto.

……….

[1] MELO FILHO, Álvaro. Novo código brasileiro de justiça desportiva: marcos jurídicos e destaques. São Paulo: Editora Executiva, [s.a], p. 28-29.

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